O Inferno

Tratando-se de condições existenciais, você pode ter dois tipos de vida

na hierarquia que estabeleci: ou você é um tipo notável, mesmo que por

interesses implícitos ou, você é eu, um ser declarado perdedor e desistente, lembrado apenas pelas pessoas a quem devo dinheiro.

Posso me gabar de que sempre fui um ser invisível, deixado à parte da

sociedade, simplesmente ignorado. Aquele pária que as pessoas acreditam ser perca de tempo direcionar algum esforço, mesmo desprezo. Minha mãe me ignorou, as pessoas donas da casa em que minha mãe me abandonou me ignoraram, o melhor amigo que não cheguei a conhecer me ignorou, a governanta do orfanato me achou estranho demais para me dar atenção. Ou seja, irrelevante demais para ser notado. Ao menos nas situações convenientes.

Já trabalhei de assistente de garçom, assistente de lavador de pratos,

assistente de entregador de gás, assistente de babá de cães, assistente do vendedor de jornais. Esta lista é infindável, por isso decidi contar-lhe apenas as profissões consideráveis. Por agora, estou trabalhando de ajudante do assistente do secretário do chefe de uma subdivisão de uma empresa medíocre.

Neste dia banal, como todos de minha vida, saio ao amanhecer para

tomar os cinco ônibus até meu trabalho. Meus passos solitários ecoam pela rua, enquanto observo a magnitude do sol, se fundindo em diversas cores ao límpido céu azul. As aves, ainda em pose de descanso, ao se sobressaltarem com minha passagem, se assustam e voam para longe, uma delas bombardeando-me no processo.

Sentia-me totalmente à vontade e feliz, até o incidente dos pássaros; e

esses sentimentos pareceram se perder no esquecimento quando um robusto homem mal encarado surge como se da fumaça em minha frente.

Sem meias-palavras, o sujeito dispara doze tiros em meu peito, só não

me pergunte como eu contei. Que modo digno de um insignificante morrer,baleado em um beco abandonado à imundície e com fezes de pomba em minha cabeça!

Carregado pela inconsciência por um bom tempo, ao despertar, meu

primeiro pensamento irracional é: “Devia ter pago aquele cara”. Essa é a minha conclusão pelo motivo da execução, desde que até onde posso me lembrar, devo até para o macaco alfabetizado e vigarista da minha vizinha.

Depois de alguns delírios e ponderações, opto por uma decisão de

efetividade imediata, olhar para mim mesmo. Como já não é de grande

surpresa, evidentemente, estou morto. Entrego-me então, à fascinação, pois finalmente, mesmo que por um método não tão prazeroso, sei como é o suposto outro lado.

O outro lado não parece ser tão excitante como do modo que nos é

ensinado. Fico sentando ali mesmo, estaticamente, aguardando por alguma luz etérea, pelo chão se abrindo, o veredicto de ações de uma vida inteira.

Continuo ali, sem me mover e posso jurar, se alguém pudesse me ver,

me acusaria por demência. Vã espera. Tudo que ainda vejo é aquele sórdido beco, sem minha forma imaterial se desfazendo ou o que quer que aconteça.

Encaro novamente minhas mãos translúcidas com certa consternação

contra a ordem divina, afinal, quem merece viver como vivi? Ou ter que

continuar, miseravelmente, vivendo morto? Dou início então a uma bateria de risos histéricos, afinal, fui sempre invisível perante a sociedade e agora sou literalmente assim.

Após aliviante praguejo, com xingamentos que escandalizariam e

encabulariam a mãe que não conheço, acabo adotando minha usual postura derrotista. Até porque, eu estou morto, não tenho o que fazer que não ser um morto. E é claro, estando morto, não devo nada para ninguém e posso vagar livremente.

Saio caminhando, à procura de outros infelizes como eu, derivando sem

realmente ter consciência disso e aguardando por outro como eu. Termino por me deparar com um grande edifício, cheio deles. É um lugar ostensivo e superlotado, o que é irrelevante observar, já que aqui dois corpos ocupam o mesmo lugar.

Aproximo-me esperando abordar alguém, mas sou abordado primeiro

por um simpático senhor, translúcido como eu. Ele certamente causou uma impressão, pois a morte não pareceu ter feito algo por ele. O velho mostrava sua magreza, suas roupas abraçam seu corpo, profundas cavidades eram perceptíveis em seu miúdo rosto. Ele era a morte personificada.

- Quer comprar algodão-doce, senhor? – Diz ele, timidamente.

- Eu? Não está vendo que estamos mortos?! Me diga criatura, como espíritos comem? – Eu perguntei, escandalizado.

- Senhor, esse algodão-doce é feito com o melhor ectoplasma do mercado e supre todas as necessidades pós-morte de nós espíritos, senhor!

Estava indignado e um pouco irritado, mas ainda assim achei aquele

senhor útil, pois poderia me explicar o que era aquele prédio imponente e o que faziam lá todas aquelas formas desesperadas. Ele então respondeu:

- Minhas palavras custam senhor. Sem algodões-doces, sem respostas.

- Como eu compraria algo - eu disse-, se não tenho dinheiro? Estou morto, não consegue ver?

- Ah senhor, não se preocupe senhor. Seu saldo bancário é todo transferido para o banco de nossa cidade, Deadcity. – O velho ostenta um pequeno aparelho e continua: - Também aceito cartão de crédito, senhor.

Fico sem palavras, não posso acreditar no que estou ouvindo e não

acredito no absurdo que é a pós-morte. Imploro para o velho que me dê

respostas, prometo pagar depois por suas palavras. Ele, se por compaixão ou fé que eu o pagaria mais tarde, começa a me explicar a complexa existência desses seres.

-Senhor, este prédio é uma agência de empregos. Aqui, você é avaliado e eles decidem o seu cargo de acordo com suas competências. Ah, e é claro, os débitos que o senhor deixou na sua antiga vida são todos contabilizados aqui e o senhor terá que trabalhar e, eventualmente, pagar por eles.

- E o céu, o que é o céu? – Pergunto ao espírito senil.

- O céu é uma outra cidade que as pessoas de eminência alcançam cargos com maiores salários. E, nós somos o proletariado, servimos a eles. O senhor me pagará ainda, certo?

Pobre velho, achava que eu o pagaria! Tendo menos de um dia de

morto, já estava devendo e nem morto eu descansaria das dívidas que deixei.

Então, esse é realmente o inferno. Ofícios, até morto você tem de ter um. Maldito capitalismo. Onde quer que você vá, não estará livre dele. Mesmo os mortos não escapam dele!

Luiza W
Enviado por Luiza W em 31/10/2012
Código do texto: T3961478
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