Suplício esquecido

Em busca de um escape da monotonia maçante e triste de minha medíocre existência -preocupado com o vazio da minha mente que persistia em me fazer beirar a insanidade -, deixei minha casa, procurando, sem um destino específico, um local que desse fim à inquietude de minha alma.

Vagando pela estrada, deixei que meus olhos derivassem despretensiosa e inconscientemente, até que os mesmos acabaram por repousar no local mais assustador e atraente que jamais avistara. Eu encarava uma casa tão macabra quanto bela; tão rusticamente trabalhada, com adornos antigos, uma fachada constituída de pedra pálida e altas janelas francesas; em seu contorno, um jardim exótico, dotado de plantas tão incomuns, que me deram a convicção de que nunca antes contemplara a verdadeira beleza. Esta casa me repelia de modo tão devastador e, ainda, eu não conseguia recusar o seu chamado, tal como num encanto, enquanto observava suas portas maciças e trabalhadas, escancaradas sem reserva perante a mim.

Deixado, momentaneamente, o deleite pela vista tão admirável, tomei consciência de meus arredores, notando que nunca tinha estado ali e que não podia nem mesmo dizer como lá havia chegado. O lugar – um lugar tão arruinado quanto meus pensamentos, repleto de construções decadentes e destruídas, que faziam contraste à clássica e conservada casa, que brilhava tal como um organismo vivo – era deserto de vida que não a da própria casa.

Voltando à casa, retornei ao prazer da vista, esquecendo novamente do quão perdido estava e do repúdio intuitivo que a casa me provocava. Sentindo-me intimamente afeiçoado àquela casa, adentrei o recinto que tanto me chamava, sem nem mesmo lembrar de me importar com o fato de que invadia uma residência desconhecida. Estranhamente, seu interior era tão distintamente peculiar quanto sua parte externa, com um chão tão caprichosamente lustrado que chegava a mostrar meu reflexo; uma escadaria opulenta e magnífica, deitando gloriosamente em sua grandiosidade perante a entrada, dominando a casa e morrendo em um circundante mezanino esculpido em madeira, que deixava mostrar a pompa maior ainda dos cômodos íntimos da casa. À lateral do pé da escada jazia um reluzente e sofisticado bar – decorado por espelhos, junto de uma bancada que parecia tão cara quanto o resto dos componentes do cômodo, bebidas luxuosas e bancos altos e adornados de couro -, que combinava com o brilho restante das janelas, pórticos e mobília rústica daquela residência. Quanto aos habitantes da casa, ao que parecia, davam uma festa e, por essa razão, não pareceram notar minha presença, o que, devo dizer, me surpreendeu, em razão de meus trajes tão maltratados, em contrassenso à elegância de seus trajes.

Em um daqueles assentos do delicado bar, sentei-me e me dediquei a assistir aos frequentadores do local. Divaguei por entre seda e cetim esvoaçantes, lábios delgados e corpos ternos trabalhados em cortes sob medida, música orquestrada em um ritmo envolvente..Descansei os olhos, por fim, na decoração das paredes, onde quadros à óleo de pessoas eram sustentados; em que um, especificamente me chamou uma efêmera atenção.

Em seguida, minha percepção fora repentinamente interrompida num intervalo entre um piscar e outro, quando senti minha mente acometida por um estupor, tão intenso que acabei desfalecendo. Ao retornar do desmaio, me encontrei em um vasto campo verde e isolado, novamente, sem nem a mais relapsa ideia de onde estava.

Após uma dolorosa e longa caminhada, com perguntas à contragosto de direções, acabei em minha casa novamente, apenas com a confusa lembrança da casa e de meu apagão remanescendo, com a pungente sensação de que, de algum modo, estava sendo enganado.

E assim se foram dispendidas as semanas, comigo indo dormir em minha casa e acordando naquele maldito campo, perdido e sem lembrar de meus apagões. Finalmente, mesmo tendo evitado por um longo tempo, decidi reencontrar a estranha casa, apesar de não saber como tinha a achado. Por alguns dias, vaguei apenas e, quando quase perdia a fé de que minha visita havia sido real, encontrei novamente casa ou, pelo menos, quase ela.

Me dei conta de que passei várias vezes pela casa em minhas buscas, que só não a percebera por conta de seu estado alterado: a beleza anterior não mais passava de uma sombra, em suas ruínas e abandono, degradada e quase derrubada em sua vida arcaica. As janelas não existiam mais, assim como também seu ostentante jardim, agora composto apenas por galhos secos.

Completamente perplexo, corri para a cada despedaçada, avançando por sua quase inexistente porta caída, dando assim com um interior mais arruinado ainda: a escada caía em sua metade, uma ou duas paredes continuavam em pé, a casa não passava de um esqueleto desnudo de toda sua graça.

Em uma das paredes que ainda continuava em pé, lembrei-me dos retratos e, com um rápido insight, soube que foram eles o que culminaram em minha crise. Sabendo disso então e, sem entender do porquê conseguia ver a casa como realmente era, encarei concentradamente o retrato, de modo que não perdesse a consciência.

No instante em que achei que nada me chocaria mais do que no presente momento, o quadro me mostrou o quão presunçoso fui: a imagem que me encarava era constituída por minha própria face e, a mesma acabou instigando as memórias que reprimi por anos de inquietude e dúvida.

Em uma inspiração divina, somada ao choque que sugou minha respiração, uma carga de lembranças desceu sobre mim, me apontando que, na verdade, eu era o dono da casa, eu vivi por anos nela, eu dei uma festa nela, eu fui atacado nela, eu consegui fugir dela, eu fui morto no campo em que acordo todas as manhãs. Vi que ansiei por tanto a morte quando, na realidade, morto já estava há muito tempo. Eu vagava. Eu derivava meus olhos buscando por um sentido. E acabava aqui.

Nas visões vi, lembrei, que em cada apagão, quando estava prestes a lembrar do terrível desenrolar de minha morte, entrava em colapso furioso e saía em matança desregrada por onde conseguia chegar, abafando minha dor com o gosto do sangue nobre, tal como o meu que outrora fora derramado.

E, agora, quando acabei de perceber o quão errante fora a vida que pensei que tinha, o fio tênue de meu pensamento se perdia e a dor entre meus olhos retornava, dessa vez, pelo que posso sentir, mais grave que a anterior naqu.. Acordei em um campo verde e isolado, novamente, sem nem a mais relapsa ideia de onde estava. Não sei porque digo isso, mas sinto que alguém está me enganando.

Luiza W
Enviado por Luiza W em 31/10/2012
Código do texto: T3960927
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