Sangue na barbearia
 
 
A cidade está plenamente nua, sem a frenética agitação dos dias comerciais, deixando as ruas e sacadas descobertas para que se possa observar e apreciar melhor a beleza das sacadas arduamente trabalhadas num passado colonial. O silêncio que passeia dentre essas ruas desertas é devido hoje ser feriado nacional, ofertando aos trabalhadores um refúgio prolongado, iniciado nesta sexta-feira donde a grande parte da população só retornará ao trabalho na segunda-feira pela manhã. Mas por que então abrir uma barbearia numa rua que provavelmente não surgirá vivo cristão nesses lados do centro da cidade?

Alguns pombos sobrevoam as sacadas e descem até o chão para catar alguns vestígios de alimentos que possam matar-lhes a fome do estômago corrosivo. O sol penetra dentre os prédios e consegue se embrenhar em determinados pontos da rua, enquanto Regis se posiciona sentado, olhando-se no espelho, denotando expressão fria e um tanto angustiante.
O moço de trinta anos encara os próprios olhos pretos no espelho que reflete sua pele clara e cabelos crespos. Ele se mantém imóvel e a mente arde perante a turbulência interna que o atinge nestes instantes torturantes, que o fez desde muito cedo abrir a barbearia sem a intenção de trabalhar, mas, apenas para refugiar-se nalgum lugar onde pudesse ficar sozinho na sua desilusão.

O ocorrido em sua vida na noite passada o deixou de tal modo fora de si que a loucura que fizera, arde em seus miolos e ainda não sabe se se sente culpado ou mesmo arrependido da brutalidade que cometeu. Regis está consciente que não tem como voltar atrás, o acontecido certamente modificará sua vida para sempre e agora pouco importa qualquer coisa que venha a acontecer.
As batidas na porta da barbearia roubam Regis de suas perturbações. O mesmo vira-se veloz para saber quem ousa incomodar-lhe neste dia deserto, no centro da cidade, e pensa em não abrir a porta. Porém, subitamente acredita que seja interessante distrair-se nalguma conversa com o intruso inoportuno, e que o mesmo possa ser oportunamente bem vindo.

 Assim, posiciona o intransigente cliente na poltrona e ambos se encaram seriamente por alguns segundos no espelho como se se contassem uma faceta da vida nessas expressões sigilosas de seus mundos internos.
- Estranho esta barbearia aberta neste lugar impróprio para um dia deserto como este.
- Minha intenção era ficar só e não ser incomodado por ninguém, mas você apareceu e eu pensei que talvez pudesse aliviar o meu estresse enquanto corto os seus cabelos loiros, que você não devia cortá-los, pois os acho perfeitos, e depois que eu cortá-los talvez eles possam não se restabelecer como antes, nunca mais.
- Nossa! Do modo como você fala, parece que esta é a última vez que corto os meus cabelos.
- Como você pode saber que não é?
- Verdade. A cena seguinte é sempre inédita. Mas prefiro arriscar. Gosto de correr riscos. Então faça o seu trabalho e faça bem feito, pois hoje eu tenho um encontro muito especial com alguém que vai mudar minha vida para sempre.
- Uau! Então quer dizer que sua vida pode mudar radicalmente a partir de hoje? Engraçado. A minha já mudou, está mudada, não poderá mais ser como antes, nunca mais.
- Que bom que nós estamos vivenciando situações ímpares.
 
Sem mais palavras entre o barbeiro e o cliente, reinando só algum silêncio perigoso no pequeno espaço da barbearia. Os olhares de ambos se encontram e se encaram numa raiva inexplicável, que parecem querer sorrir de suas desgraças e também da desgraça do outro.
O chão do salão vai ficando colorido pelos cabelos loiros de Lucas que, também não chegou neste local ao acaso. Sabe muito bem que ao sair da barbearia algo de terrível terá acontecido, haja vista que precisa fazer o seu trabalho de aniquilar com a vida do simples barbeiro Regis, o qual impede seu relacionamento com a linda Brida, esposa de Regis, pois planejou com a amante assassinar o barbeiro para poderem concretizar a relação de amor. O casal sabe que Regis jamais aceitará a separação e que o mesmo já falara à Brida que a matará se um dia descobrir qualquer infidelidade advinda dela, não restando demais alternativas para Lucas e Brida, a não ser a de destruírem o simples barbeiro que trabalha no centro da cidade. No entanto, esta é a grande questão, pois na noite anterior, Regis descobriu que a esposa tinha um amante e na fúria que se revestiu, esfaqueou-a, e a mesma passou a descansar no leito derradeiro da morte, e foi por isso que não conseguiu mais nenhuma paz desde o momento em que cometeu o crime, permanecendo ao lado do corpo cheio de sangue até o amanhecer, onde abandonou sua residência logo pela manhã, vindo refugiar-se na barbearia, enlouquecido, sem saber o que fazer, e durante o tempo em que caminhava pela rua vazia de pessoas, sem saber, era seguido por Lucas, que havia combinado com a amante de matá-lo nesta manhã, pois Regis costuma ir logo cedo jogar futebol com os amigos num clube próximo.

 Agora, frente a frente, encaram-se diante aos movimentos perigosos, e certamente se Regis soubesse que Lucas é o amante de sua esposa, o mesmo já estaria estirado no chão do salão, e com toda a certeza se Lucas soubesse que sua amada não mais está viva, o seu rival já tinha partido para outra dimensão também.
 
- Hoje alguém muito especial em minha vida morreu e, por isso, não me interessa mais viver.
- Meus pêsames. Mas quem sabe você não demore a juntar-se a esse alguém, afinal desconhecemos a cena seguinte, meu caro barbeiro.
- Você tem razão. Quem sabe lá na eternidade minha querida esposa Brida se arrependa de ter me traído e reatamos nossa relação.
- Como assim, sua esposa Brida?
- Isso mesmo. Ontem à noite descobri que ela me traía com um cara e perdi a razão e matei a mesma.
- O quê?
- Isso mesmo. Matei minha esposa e se quiser pode ir chamar a policia, pois não me importo, não ligo. Nada mais tem importância em minha vida.
- Isso não pode ser verdade. Você é louco. Você não pode ter assassinado ela. Você não pode ter feito isso.
- Fiz. Infelizmente eu fiz e faria outra vez.
 
Perplexo, Lucas encara o homem que deixa escorrer algumas lágrimas nos olhos avermelhados. Ele não sabe o que falar ou pensar e também deixa algumas lágrimas descerem de seus olhos, então se levanta da poltrona calmamente...
Lucas sai da barbearia, silencioso, sentindo o coração apertado pela culpa que carrega perante a morte de sua amada...
 Em seguida, a policia estaciona a viatura na frente da barbearia e, encontra o corpo de Regis sangrando no chão...
Valdon Nez
Enviado por Valdon Nez em 18/10/2012
Reeditado em 11/07/2013
Código do texto: T3939241
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