Ao Limite
A cena repetia-se naquela necrópole. Todos que trabalhavam ali já haviam se acostumado com esta situação, seja o pessoal da administração, os vigias e, é claro, os coveiros.
Esse dia a rotina não era diferente, várias capelas, um som lamurioso que começava bem cedo e seguia até o fim da tarde, isso quando não velavam o corpo de um dia para o outro, aí aquelas lamúrias e choros se alongariam até o outro dia, dando para os que trabalhavam ali, pelo menos em relação aos sons, a ideia de um círculo vicioso.
– E esse aí como vai Zé Carlos? – disse Zinho.
– Esse aqui é todo fechado, só a foto pra lembrar quem foi o sujeito mesmo, imagina que o nosso amigo aqui, pelo que contou o seu Tobias, foi dilacerado por uma fera, talvez um grande urso ou algo parecido, perto das montanhas lá nos States. Então, ele além de não ter ficado em bom estado depois do seu encontro mortal, ainda demorou um tempo para chegar aqui, o estado da carcaça não deve estar nada bom.
– É verdade, consegue sentir o cheiro, já não sinto isso no primeiro contato faz tempo.
– É, venha, vamos, ajude-me a colocá-lo na segunda capela, os familiares devem estar chegando.
Muitos vieram velar àquele corpo. José Clemente era um bom homem. Casado com uma linda mulher, de lindos olhos azuis, esguia, alta, e com um jeito que transmitia simpatia, mas também superioridade aos outros. Pai de uma linda menina de 7 anos apenas, que infelizmente presenciara a cena e por sorte não estava ali ao lado de seu genitor segundo diziam. O homem era um grande empresário, dono de uma das maiores empresas de laticínios do país. Mas sua grande paixão era sua família, todos sabiam disso.
– Cláudia acalme-se meu amor – dizia sua tia Ester, mas era inevitável, as lágrimas escorriam abundantemente pelo seu lindo rosto. – Você deve ser forte agora que seu pai se foi.
Ela levantou-se e aproximou-se do caixão. Muitos familiares e amigos silenciaram e observaram o quadro com atenção. Tudo parecia uma cena de uma grande tragédia, um lindo casal, com uma linda filha... Agora, uma família arruinada. E tudo por causa de um urso selvagem. Maldita viagem, em má hora, para explorar montanhas nos Estados Unidos, pensavam uns. Que loucura ir para este lugar com um grupo tão pequeno de pessoas, e sem armas de fogo, pensavam os mais experientes nestas aventuras.
– Acalme-se minha filha, tudo vai ficar bem – disse em tom choroso Eliza para sua filha.
A menina aquiesceu com um movimento de cabeça.
Era chegado o último momento, o caixão ia começar a ser removido da capela e levado para o seu destino final. A pobre menina sentiu um aperto em seu coração, sabia que nunca mais veria seu pai, entendia, de alguma forma, que aquela coisa dentro do caixão, também não era mais seu pai, mas mesmo assim sentia dor. Chorou mais uma vez. Sua mãe a abraçou carinhosamente.
Caminharam junto ao féretro. Chegaram ao local da sepultura. Algumas últimas palavras foram ditas pelo pastor. A tristeza estampada no rosto de todos, mesmo com aquele religioso afirmando que era uma separação temporária. Estava terminado. Zé Carlos e Zinho desciam o esquife até sua nova morada.
Mãe e filha foram levadas até a casa. Chegando ao seu apartamento tinham a sensação de que o silêncio era maior do que normalmente, mas talvez fosse só uma sensação mesmo. Afinal, tinham passado por uma situação muito difícil nos últimos dias.
Cláudia pegou três correspondências que estavam debaixo da porta.
– Mamãe, chegaram estas cartas.
– Deixe a mamãe ver minha filha.
Uma conta de TV a cabo, uma outra do Conselho de Medicina, e uma outra endereçada pra ela mesmo. Agradeceu novamente sua filha, que caminhou até a sala espaçosa daquele bem decorado e elegante apartamento, e ligou a televisão em um canal de desenho animado.
Dava graças a Deus por ter sua filha junto de si. E que, apesar do trauma relativo à morte de seu pai, ela estava até mesmo, pode-se dizer, bem.
Eliza descartou a carta de cobrança e a do Conselho, mas lembrando que deveria não se esquecer de ler esta posteriormente. Eliza era filha de um grande empresário e médico da área da saúde, dono de um dos mais famosos hospitais da cidade, de onde muitas pessoas, de muitos lugares vinham buscar tratamento para o câncer, especialidade daquele lugar. Por consequência também era médica, uma das diretoras do hospital.
Ateve-se, então, para a que era endereçada para si mesmo. Abrira, e dentro tinha um papel de agenda que estava escrito com letra de forma o seguinte: “ENCONTRE-ME NO SAULO’S ÀS 20h”.
Sabia de quem se tratava. E que não tardaria mesmo a receber aquele recado. O Saulo’s era um restaurante distante uns vinte minutos da sua casa. Olhou pra sua filha assistindo televisão. Olhou para o relógio, eram 16h ainda. Que bom, pelo menos poderia tomar banho antes de sair, sua irmã deveria chegar ali por volta das 19h, para ajudar a tomar conta de Cláudia.
Então começou a agir, foi tomar um banho. Deixou que aquela ducha quente massageasse suas costas por alguns minutos. Saiu do chuveiro, pegou uma toalha bem branca que estava em cima de sua cama e se enxugou demoradamente, como se escolhesse bem os movimentos.
Vestiu suas roupas de baixo, uma calça jeans escura, botas de cor marrom, uma camisa branca e uma jaqueta de um jeans um pouco mais claro do que o da calça. Definitivamente não estava com cabeça para combinar tons, e sua última preocupação era com a moda nesse instante. Ouviu sua porta abrir, ouviu uma voz feminina. Era sua irmã que havia chegado.
Chegou até a sala e viu sua irmã e sua filha se abraçando.
– Olá Eliza, chegou bem? Eu tentei ser o mais rápido que pude, saí do enterro, fui à minha casa, peguei minhas coisas tomei um banho e vim o mais rápido que pude.
– Sim, tudo bem.
– Olha mamãe, a tia Alice comprou uma torta pra gente.
– Que bom, mas escove bem os dentes depois de comê-la, está bem?
– Sim.
Alice foi assistir ao mesmo desenho que Cláudia assistia. Era uma jovem tão bonita quanto Eliza fora nesta idade, exuberava sua beleza ainda adolescente de seus 17 anos. Seus olhos castanhos claros e o cabelo de cor preta com um brilho bem bonito, como o de Eliza também.
Eliza foi até o seu bar pegou uma garrafa de uísque colocou um pouco em seu copo, e bebeu lentamente. Encheu de novo o copo, e sorveu demoradamente mais uma dose. Levantou, e caminhou até a sala.
Alice e Cláudia estavam entretidas com o desenho da Bela e a Fera, que ironia aquele filme passando depois daquela tragédia.
– Alice, aqui em casa não tem quase nada, já faz um tempo que eu não saio pra fazer compras, eu não pedi, e as empregadas não deixaram quase nada pronto, então, eu vou ao supermercado da esquina comprar umas frutas frescas, talvez uns sucos, pipoca para assistir o filme das dez...
– Ah claro, tudo bem, eu fico aqui com a Cláudia, quem sabe a gente não se arrisca e faz um bolo hein?
– Sim tia Alice, vamos fazer.
– Isso, os ingredientes estão na cozinha. Bom, vou indo, não demoro.
Pegou sua bolsa em cima da estante da sala, saiu do apartamento, entrou no elevador, apertou o “G1”. O elevador fez um som, que só eles fazem, e desceu. Saiu entrou no seu carro, e seguiu direto para onde o bilhete indicava.
Estacionou o carro em uma rua próxima ao restaurante, saiu do carro e caminhou até a entrada.
Um garçom do Saulo’s abriu a porta e ela entrou. Pôde avistar rapidamente a pessoa que escrevera e deixara aquela carta em sua porta hoje.
Ele se levantou, esperou ela sentar, e sentou muito educadamente depois. Ele calçava sapatos pretos, calça social preta, camisa social branca e blazer da cor da calça, bem como uma bela gravata preta também. Tratava-se de um senhor de meia idade com algumas rugas, branco, com um queixo forte, olhos castanhos e cabelos já com alguns fios brancos.
– Passei no seu prédio um pouco mais cedo, mas é obvio, você não estava, então pedi ao porteiro que colocasse uma carta-bilhete para você.
– Eu vi.
– Você quer beber alguma coisa?
– Uísque!
– Bem apropriado – chamou o garçom e solicitou dois copos de Johnnie Walker Red Label.
– Dia difícil não é mesmo?
– Finalmente acabou.
– É, mas foi um processo demorado, desgastante mesmo, um dos mais difíceis casos que eu peguei.
– Então vamos ao que interessa – disse ele. – É melhor acertamos estas pendências e não demorarmos muito. Quanto menos contato melhor, acredite.
– Aqui está. – Ela tinha tirado um envelope com certo volume dentro e entregou àquele homem. – Está tudo aí, não precisa nem conferir.
– Acredito em você, se não confiasse no seu bom caráter não teria vindo aqui e talvez você nem estivesse aqui também, digo, neste plano de existência se é que você me entende.
O garçom trouxe os dois copos do melhor uísque da casa e os serviu.
– Vamos beber então pelo sucesso desta empreitada.
– Sim – disse em um tom triste.
– Sabe, não foi fácil realizar este serviço, foi o mais difícil que eu já fiz, por um momento pensei que tudo fosse dar errado, mas graças a Deus deu tudo certo – e abriu um largo sorriso.
– A minha filha estava lá com ele seu lunático, ela poderia estar morta. Se eu soubesse...
– Era um risco que precisávamos correr você bem sabe – interrompeu ele. – Não escute o que a imprensa diz, ela não viu a cena toda, ela viu o urso sendo abatido e o seu marido agonizando. Nós esperamos o momento certo para libertar a fera perto daquela montanha. Podemos dizer que sua filha estava em quase total segurança dentro da cabana.
– Só esclareça-me uma coisa – exigiu o homem. – Eu sei que você deve ter tido seus motivos para odiá-lo mais do que o amava a ponto de encomendar este serviço. Acredite, eu dou razão a você – e sorriu. – Mas alguma coisa não bate, somente a traição... Por que você não se separou dele, provavelmente ele daria pra você uma boa soma e você poderia criar a sua filha muito bem.
– Mas ele continuaria em constante contato com ela...
– Mas um pai, por mais sem vergonha que fos... – ele parou de falar e pensou um momento – Sim... Agora estou entendo...
– Ela é minha filha – falou em tom triste, quase choroso. – Eu não podia permitir que ele a maltratasse mais... Quem pode me condenar por ter sido mãe, somente por ter protegido a minha filha! Você não faz ideia do que eu passei, das ameaças que sofri... Agora estou livre.
– Compreendo. Mas por que você não foi ao público e esclareceu o fato? Por que não comunicou às autoridades?
– Eu... ainda o amava... Talvez não ele, mas a memória dele, do que ele tinha sido, e não do que ele se tornou. Do monstro que morreu naquela colina.
Ela terminou de beber seu uísque, levantou-se, deixou o dinheiro da conta em cima da mesa e disse:
– Me avise o local para eu te entregar a última parcela.
– Claro, eu me encarregarei disso, mas espere, tenho que te dizer uma coisa – A mulher ficou ali parada em pé ouvindo. – Nunca se sinta pesada pelo que fez, acredite, você fez a coisa certa.
– Eu sei – disse ela, talvez sem muita convicção e encaminhou-se para a saída.
Aquele homem permaneceu ali, saboreando a sua bebida e pensando sobre qual seria o limite da maldade e da corrupção humana... Dentre as muitas conclusões que poderia chegar, aceitou que o amor, em determinados casos, chegaria ao extremo de forçar uma pessoa a tirar a vida de outra. Que bom por isso – pensou – pois esse era o seu trabalho.