A parede do mundo é azulada até onde a vista alcança. Se Fernão olha a gaivota não vê o sol que se põe atrás de suas asas. Aborrecia-se com os colegas que zombavam de seu nome: “Fernão Capelo tem pena de gaivota no cabelo.” As afrontas, embora ingênuas, feriam sua auto-estima, mas, apesar dessas lembranças, sentia saudade dos tempos de colégio no Joaquim Nabuco.  A galhofa que lhe faziam do nome, deixou marcas que permaneceram na vida adulta. Ele só se apresenta como Fernão ou como Noronha. Nunca Fernão de Noronha  nem Fernão de Noronha Capelo, para evitar associação ao pássaro de Bach. Perdera, no entanto, o apelido quando voltou com quinze anos para o Rio de Janeiro.
Inquieto, Fernão acionou o serviço de bordo. A comissária aproximou-se:
— Pois não, deseja alguma coisa, senhor?
— Estamos voando baixo, disse ele.
— O Senhor está enganado! Estamos em cruzeiro, voando a trinta e seis mil pés.
— Vejo o azul muito próximo.
— Sim, o céu é lindo porque é azul da cor do mar. Fique tranquilo, o comandante Hemor é muito experiente. Qualquer dúvida pode chamar-me novamente.
Aproveitando o clarão do relâmpago, olhou atentamente através da janela, captou a imagem lá  de fora e reconstruiu a frase da aeromoça: “O céu é lindo porque é azul.” Refez várias vezes... “O céu é lindo porque é azul da cor do mar”. 
— É isso, o mar é azul da cor do céu. Vejo o mar debaixo de meus pés.
 
 
Tão temerosa vinha e carregada. Que pôs nos corações um grande medo; bramindo, o negro mar de longe brada, como se desse em vão nalgum rochedo.
 
Camões assim cantava a glória da navegação portuguesa. E, tão eloquente antes quanto agora, permitiu que Fernão visse em sua frente uma parede. Acenderam-se a luzes de alerta e uma voz feminina anunciou: “Senhoras e senhores! Este é o voo ABS 815, com destino a Paris. Nimbos se aproximam, por favor mantenham a poltrona na vertical e apertem os cintos. Obrigada!”
 Agora, a visão de um rosto feminino quase escondido entre as prateleiras e a porta de acesso ao toalete, confirmava a suspeita. Era ela! Fernão conhecia muito bem quando Vannini estava nervosa. Aproximadamente, cinco minutos depois, ela anuncia novamente: “Senhoras e senhores, estamos sob forte turbulência, por favor, mantenham a calma. Preparem-se para um possível pouso de emergência. Utilizem os assentos flutuantes. Obrigada!”
Os passageiros estavam com a cabeça sobre os joelhos e os tripulantes, pareciam compenetrados demais, vasculhando  procedimentos de segurança. Fernão sabia como abrir a porta de emergência situada nas proximidades de sua poltrona. Levantou-se. As pernas tremiam e o coração queria saltar do peito. Assentou-se. Deixou que se passassem alguns segundos... Abriu o terno, conferiu o colete, retirou o paletó e afrouxou os sapatos.Queria ter penas de gaivota na cabeça, nas asas... Queria voar!  Ele era um Fernão como diziam os colegas de escola. Sim!...Era Fernão um náufrago em potencial. Não havia jeito! Titanic se partiria no choque contra um iceberg. E se sentia como que acorrentado no porão de um navio negreiro. Superaria seus limites como uma gaivota voando a uma velocidade impossível para sua espécie ou se espatifaria em um paredão de água dura como concreto.
Cenas do Armageddon desfilavam em sua mente: viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia “É chegada a hora! Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras”. O primeiro anjo tocou. Saraiva e fogo misturados com sangue, foram lançados no corredor da nave.
 O anjo retirou o sétimo selo e em vez de silêncio, ouviam-se gritos, alaridos e pedido de socorro. Muitos fizeram o que não podia ser feito: levantaram-se, tentaram arrumar a bagagem que caia sobre suas cabeças e foram atirados contra a fuselagem. Fernão viu-se sentado a uma mesa no panteão da memória com o livro da vida aberto em seu colo. Diante de seus olhos páginas amarrotadas e o rascunho de sua vida que esperava ser reescrito.  Pesava-lhe a dor de ver tantas páginas em branco...  Quanta vez deixou de dizer à pessoa amada “Eu te amo!” Quanta vez virara o rosto para Vannini, e maculara sua pureza com infâmias e desdéns!... Quanta vez Talita dera a ele a oportunidade de reescrever a própria história e as páginas permaneciam em branco!... Desejou abraçar Vannini e sentiu-se na pele de Melenau viajando no mesmo barco com Páris. Se antes, Menelau conhecesse bem sua mulher, jamais Páris teria alguma oportunidade de acalorar-se com Helena. Não haveria guerra de Tróia, não haveria luta entre Jacó e Siquém e Fernão seria amigo de Hemor, futuro colega de aviação. Apertou a mão de uma velinha e sussurrou.  “Vai dar certo!”
 Casados que há tempos não conversavam, mantinham agora as cabeças coladinhas uma à outra e balbuciavam alguma coisa ininteligível. Irmã Paola tentou debulhar um terço em voz alta e não conseguiu. No meio do corredor, um homem ergueu a voz: “Sou PASTOR!” E traçou com as duas mãos no ar o sinal da cruz, dizendo: “Pelo poder que me concede a Santa Madre Igreja, eu perdoou todos os vossos pecados inconfessos, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Alguns responderam: “AMÉM!” Ninivitas creram e balbuciaram palavras quase inaudíveis, outros, apenas moviam os lábios como se falassem a língua dos anjos. Por um instante, fez-se silêncio no céu.