A Cidade

Eram quase cinco da tarde, e o sino da porta do pequeno restaurante tocava anunciando a chegada de um terceiro cliente. Trudy, a garçonete, observou com o canto do olho o estranho entrar, usava um terno surrado, aquilo era novidade, nos últimos tempos Trudy atendia sempre os mesmos clientes, e até já conhecia a história de cada um. Joe era um fracassado que vivia da pensão da mulher morta e usava-o quase todo com “garotas-da-noite”- como Trudy gostava de chamá-las- e ia todas as quintas naquele restaurante no mesmo horário. Joan era uma ex-modelo que nunca conseguira um só desfile, nos pulsos dela, cicatrizes chamavam a atenção, assim como seu histórico de suicídios fracassados conhecidos em toda aquela podre vizinhança.

O estranho sentou-se, pegou um jornal que datava do dia anterior e começou a lê-lo com aparente entusiasmo, Trudy aproximou-se dele e perguntou-lhe o que ele queria, e ele pediu uma xícara de café. Trudy saiu e ele continuou a ler o jornal, mas quando Trudy voltou com o café ele já havia se livrado do jornal e apenas olhava ao seu redor. Enquanto pegava o café e tomava um gole ele percebeu uma grande variedade de infiltrações nas paredes e no teto, o papel de parede estava rasgado e em algumas partes mofado, ele olhou para o balcão e viu que moscas voavam em volta da cafeteira, olhou rapidamente para o café em sua xícara e voltou a bebê-lo.

Ao olhar para uma mesa o estranho percebeu Joe, que usava um boné e uma jaqueta jeans e tinha um olhar perdido, de modo inesperado passou pela cabeça do estranho como aquele homem parecia tão infame e podre, mas que ao mesmo tempo aparentava um amor à sua vida medíocre tão grande que não condizia com sua situação. O estranho virou a cabeça rapidamente afastando aquele pensamento e acabou cruzando o olhar com Trudy, e a garçonete que tinha um uniforme azul-claro sorriu pra ele, e ele retribuiu-lhe o sorriso, ela tinha um rosto afetivo, e, pelo o que o estranho calculava, já passava dos quarenta, e ele imaginou o quão duro deveria ser trabalhar naquele lugar podre, e, é claro, não gostou nem um pouco dessa imagem.

Joan olhava fixamente para as cicatrizes nos pulsos, ela tinha cabelos longos, e um rosto um tanto bonito, embora marcado por hematomas. Ela vestia um casaco e uma calça jeans e aparentava não mais que 25 anos. De repente, a ex-modelo tirou os olhos dos pulsos e como o estranho, olhou em volta e sentiu um calafrio, lá fora, havia o barulho de motores, buzinas e sirenes, era o barulho da cidade crescendo como um grande tumor. Ela mais uma vez mudou seu olhar para outro lugar e viu Joe, ele olhou para ela distraído, e ela viu os olhos dele cintilarem com um brilho lunático. Ela rapidamente baixou a cabeça e voltou a pensar sobre si mesma, o que Trudy sabia que não era nada bom para a saúde de Joan.

Joe sentiu um desejo intenso ao olhar para Joan, ele sabia que era um monstro, ele sabia que era mais um animal podre, que vinha do ventre fétido daquela cidade corrompida pelo pecado, mas ele não gostava de pensar nisso, ele tinha toda a certeza que a vida só é vivida uma vez e, é claro, deve-se vivê-la o melhor possível, mas ao pensar nisso uma mosca voou em volta do seu capuccino, que provavelmente já estava frio, interrompendo-lhe o pensamento, e ele resmungou para si mesmo enquanto espantava a mosca:- Animal nojento!

O estranho assistiu calado á toda cena da troca de olhares entre Joan e Joe até a mosca. Ele riu de Joe, um riso que chamou atenção de todos ali, e que fez todos olharem para ele com um olhar interrogativo, ele virou de lado olhando pela janela que dava para a rua, e ao fazer isso focou rapidamente o olhar no trem que passava ali perto em um viaduto, e ele pensou no quanto ele havia esquecido as pessoas lá fora enquanto estava ali. Mas logo desviou o pensamento e o olhar para a calçada do outro lado da rua. Havia um homem em cima de um caixote de madeira fazendo gestos e aparentemente falando alto, ao redor dele, algumas pessoas se reuniam, umas pareciam rir e outras o olhavam sérias com as mãos levantadas para o céu. O estranho pensou consigo que só Deus sabia quantos fanáticos religiosos haviam brotado na cidade nos últimos anos, e de repente passou-lhe pela cabeça uma frase: A fé é o mal do século. Ele tinha lido isso em algum lugar e murmurou para si mesmo: -Ou a solução...

Trudy, que limpava uma mesa observou o estranho se levantar, deixar dinheiro na mesa e sair porta afora, e Joan o imitou. Joe observou-a sair e sorriu. Trudy voltou para trás do balcão e olhou para Joe com um olhar estranho, e ele lentamente virou sua cabeça e a encarou.

O estranho, Joan e mais centenas de pessoas na calçada ouviram um tiro vindo do restaurante, o estranho virou-se e viu a porta do restaurante se abrir...

---------------------------------------------------------------------

Esse é o primeiro de uma série de contos a serem publicados aqui. Todos tratam da Cidade e dos personagens que podem ser encontrados em qualquer metrópole comum. Mas como perceberão mais pra frente A Cidade não tem nada de comum...