Script: assassino silencioso.

O solado de couro tinha pulado do chão, deslizado no ar e pousado num ponto acima. Outros solados foram passando por ele indiferentes, pulando para pontos mais baixos, outros para cima também, nem perceberam. Alguém gostaria muito que uma pessoa sequer não tivesse sido abalada pelo poder crítico furtivo do dono desse calçado social.

Uma luva negra, igualmente encouraçada, balançava como um brinquedo de parques de diversões: “À sua esquerda livre. À sua direita um tipo de estado violência. O doce vão muscular contraído num cabo de borracha”. A luva carregava, à luz do dia, à vista e ao vivo, sem que ninguém notasse, ironicamente, a morte. E ela vinha carregada de experiência, pronta para brincar novamente. Como num ato compulsado, ajeitou os óculos de lentes escuras, escondendo o que vinha por trás dele. Tão focado em seus objetivos, os olhos escondidos se semicerravam. E as escadas iam passando pelos seus pés como se corressem.

No prédio ao lado, alguém, talvez um professor, um aluno, um astronauta, um escultor, arquiteto, músico. Não importa. Definitivamente um cadáver adiado, putrefeito da mais perfeita condição humana. Sua mente estava um caos. Sua vida desmoronava. E alguém o queria morto. E alguém seria julgado pela sua morte, mas não o dono das luvas. Nenhuma dúvida, nenhum fleche nas câmeras do edifício, nenhuma testemunha. Era um fantasma, mas um bem vivo e até a sua morte, livre. O alguém se sentia em perfeita sintonia com o inferno. Havia perdido sua mulher para sua arrogância, sua frieza era sua maior inimiga, aquela que teima em ir embora. Ela já tinha afastado todos os seus bons amigos e também a mulher que amava e em breve uma frieza muito maior que a dele o mataria. Vítima do agente da vingança alheia. O maior mistério da humanidade seria mostrar uma emoção, aquilo pelo qual ele mais esperava. Não tinha sido o futuro que imaginara pra si anos e anos antes. Quando criança queria ser alguém carinhoso e caridoso, principalmente com os que ele se importava e amava. Imaginava-se namorando uma garota mais velha, que sempre foi a sua fantasia, de uma pele alva como a neve. Muitas vezes brincou consigo mesmo se chamando de racista, por preferir as branquelas às de pele negra ou morena. “Racista, preconceituoso. Volte pro século XVII filho da mãe”. Sempre ria de si. Mas gosto é gosto, e não racismo. Por ironia da vida, casou-se com uma bela morena. Típica mulher brasileira estereotipada das praias do Rio de Janeiro, Bahia e Recife. Mulher que ele nunca trocaria por nenhuma mulher vampiresca britânica, que por um belo acaso era o tipo mais que perfeito; Alá Stoya. Sua mulata o encantava. Sempre se imaginava vivendo uma comédia romântica, em que sua mulher seria tão alegre e expressiva que sua vivacidade ressuscitaria mais pessoas que o messias. Acreditava piamente que essa mulher despertaria nele aquilo que tinha de mais escondido: seu lado piegas. Porém, não há como despertar o que nunca se teve. Seria como figurar o que nunca se viu. Nada disso foi verdade. Relembrava de seus pensamentos de quando jovem e o punha de frente com seu eu atual, aquele que o adolescente sempre quis conhecer, querendo adiar o encadeado. Seu coração bateu tão rápido que pensou que estaria ela numa cansativa labuta, mas era impossível pará-la, afinal percebeu que seu querido e imaturo eu de poucas décadas atrás quis cuspir em sua face, enojado. Desprezado, sentiu-se como o último animal de sua espécie: sozinho. A vida teria brincado com ele do modo mais niquento e desditoso possível.

Sozinho, o precipício do silêncio ao seu redor fazia do eco estremecido de sua voz tácita o único companheiro que latejava no ouvido do homem dos sapatos de couro. Seu terno preto e gravata vermelha estavam impecáveis para o majestoso e funesto trabalho que estava prestes a executar. Sentia-se como um ator. O papel que atuava era a ira alheia. Seu ato era preciso e inexpressivo, incisivo e finalista. Sua performance era traquejada, suave e pronta. Colocou sua maleta prateada num chão empoeirado de uma sala vazia, em frente ao edifício de alguém que em breve iria dormir num cobertor de vermelho quente. Abriu sua pasta. Aquele era só mais um dia em sua vida, só mais um trabalho. Seu desempenho antigo o deixava mais frio. Fora ele criado para ser um assassino. Não tinha mais segurança ou tranqüilidade, tudo era suspeito. Dormia pouco e sem sossego vivia habitualmente cansado e movendo-se sempre. Amou uma vez. Mas seu trabalho a matou. O rifle foi se montando lentamente. O rosto de sujeito estava em sua cabeça. Nenhum motivo além do dinheiro tinha para puxar o gatilho. Este era mais do que suficiente. Era um carrasco, recebeu o papel de cortar a cabeça do réu declarado culpado. O expedidor da morte sentia, lá no fundo, certa identidade com suas vítimas: “próximos demais do outro lado”. Arma pronta. Colocada num pedestal a procura do ângulo perfeito. A calma chocaria toda uma nação. E que rufem os tambores.

Aquilo estava preso lá dentro, ele sabia que tinha que deixar sair, mas não conseguia. Não sabia o porquê. O quão diferente teria sido sua vida se soubesse ser afetuoso? Infelizmente não importava mais, havia perdido sua mulher, seus filhos não queriam nada com ele. Doía tanto, não era o que ele planejou para si. Tinha acabado de ter uma idéia: deixar fluir. Havia acabado de se levantar do sofá. E não pensava mais em nada. Havia apenas uma cabeça explodida e massa encefálica espalhada pelo chão.

O tiro havia sido disparado. O cano estava quente. O pequeno furo no vidro no outro prédio não seria notado por ninguém além dele mesmo. Ninguém percebe um defeito tão pequeno a menos que saiba que o defeito está lá. Por outro lado, algum curioso poderia ver o morto. Tratou de desfazer o rifle. Lembrou do movimento do corpo de sua vítima. Parecia um bêbado apagando ou prédio implodindo. Sua maleta já ocultava a extensão de seu corpo. Sua luva voltara a segurar a liberdade e o cabo. Seu solado voltou a pular e flutuar. Sairia pelo mesmo lugar onde entrou. Ninguém jamais saberia quem ele era ou quem efetuou o disparo. O assassino silencioso tinha terminado sua peça. Esperava a próxima. As cortinas foram fechadas e a luz apagou.