O CONDOR PASSA

“Eu preferia ser uma floresta do que uma rua” (El condor pasa, Simon)

Naquela manhã ela acordou de um sono que durara vinte e nove anos, levantou, esfregou os olhos e soube o que deveria fazer, seu humor peculiar estava curiosamente bom, e ao sair de casa desfrutou do vento no rosto e do cheiro morno de um dia quente, apesar de meados de inverno. No ônibus as pessoas aglomeradas perdidas em seus problemas e pensamentos, vez ou outra, discutiam sobre assuntos fúteis. Um adolescente, dando sinal da geração perdida de jovens estúpidos, ouvia uma música qualquer no aparelho celular. Porém nada mais a chateava, nenhum vício consumista, ignorância cultivada ou hipocrisia exaltada. Nada. No centro da cidade apesar do barulho, ela conseguia ouvir os pássaros e o som das folhas que caiam das árvores e arrastavam-se pelas calçadas com o sopro do vento.

Em frente a uma creche as crianças chegavam, trazidas pelos pais, mães e empregados, crianças lhe pareciam muito barulhentas, mas eram ingênuas...

Era chegada à hora, seu coração quase não podia conter-se, enfim seu sonho se realizaria, aquele ódio que tanto lhe prejudicava, já não existia... soube o que era sentir-se feliz... leve, livre.

No banco, a porta travou, só conseguiu entrar na terceira tentativa. Dentro, poucas pessoas.

-Precisa de ajuda moça? – a funcionaria sorridente a abordou... mas não sorridente o suficiente.

- Sim, quero falar com o gerente. – respondeu e por um segundo, desfrutou do olhar atencioso da atendente que a direcionou para uma mesa ao lado da janela.

O gerente, um rapaz jovem, bem vestido e com um sorriso largo de dentes brancos e perfeitos, até seus olhos sorriam, seu corpo estava condicionado a ser receptivo.

- Boa tarde, diga-me em que posso ajudá-la. – disse ele estendendo a mão a ela. Respondeu o cumprimento e apertou-lhe a mão, devolvendo um sorriso não tão atraente quanto o dele.

- Olhe- empurrou sobre a mesa lisa uma câmera fotográfica que exibia a foto de uma criança da creche.

- Desculpe, mas não entendo – seus olhos azuis deixaram a imagem para fixarem-se nos dela.

- Poderia ser seu filho... ou irmão – com um sorriso agora mais malicioso continuou- mantenha as mãos sobre a mesa enquanto conversamos, ok?

- Olha moça... – o sorriso agora tinha desaparecido – poderia ser; mas não é. Não sei aonde quer chegar com isso...

- Não sabe – depositou sobre a mesa, entre as mãos dele, um artefato desconhecido do tamanho de uma pilha grande – e não precisa saber.

- Eu vou chamar a segurança- agora seu rosto se contorcia em um início de desespero.

- Pode chamar, desde o início eu suspeitei que não se importasse para a vida de uma criança qualquer.

- Eu não tenho acesso ao dinheiro- sua voz estava alterada em um quase choro.

- Eu não quero dinheiro, quero sua ajuda. A criança da foto, olha de novo. - Ele olhou, resignado

- O que quer que eu faça?

- Eu preciso que me ajude a salvar essa criança, pose fazer isso- os olhos dele estavam estáticos e suas mãos deixavam marcas úmidas na mesa lisa – é só colocar isso na boca até que eu esteja do lado de fora, ok? – apontou o objeto entra suas mãos.

- Tudo bem, mas...

- Sem mas, é só isso. Quando eu estiver lá fora você estará livre. – falando isso esperou que o gerente, já menos receptivo que do início colocou o explosivo entre os dentes e abaixou a cabeça...

Ao aproximar-se da porta viu seu reflexo no vidro, era quase um menino naquelas roupas largas. Parou, olhou dissimuladamente para trás, ele ainda estava no alvo, encostou a mão na porta e ouviu a explosão... A luz do sol, quase a cegou do lado de fora, dentro, gritos e desespero. Através da parede de vidro blindado podia ver o homem sem rosto que se debatia agonizando... um sorriso espontâneo tomou conta da face da mulher, na verdade, nunca imaginou que seria tão fácil, mas... será que ele queria mesmo salvar a criança que nem conhecia? Será que ele sabia que a bomba sempre esteve acionada? Será que sabia que a carga não era suficiente para matá-lo só deformá-lo... quem vai saber?... ela estava satisfeita, para ela, o importante era exterminar, um de cada vez, os sorrisos falsos desse mundo sujo.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 13/08/2012
Código do texto: T3828364
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