• REPÚBLICA: MORTE DE PIETRA ¹

Seria a primeira noite sozinha em meses, Pietra preferiu permanecer na república, embora Emanuelle houvesse insistido que fossem viajar juntas para paris, e houvesse assumido compromisso de ir visitar os pais no interior de São Paulo.

Decidira ficar, havia terminado um relacionamento e ainda tivera problemas com as notas na faculdade de história, assim utilizaria aquele período de recesso para estudar, e não ficaria mesmo sozinha, por que alguns colegas residiam na cidade.

Evidentemente, com a república vazia, tudo parecia ainda maior, até mesmo aquela tristeza que sentia há semanas, depois do banho, transitou pelos ambientes da república certificando sobre as portas e janelas, haja visto que ouvira relatos sobre assaltos e arrombamentos, situações ocorridas com certa frequência na cidade, e que agora ocorria com frequência nas dependências da universidade. Retornara ao quarto, que partilhava com Emanuelle, amiga e confidente, com quem criara um intenso laço afetivo, talvez por que a jovem tivesse a mesma idade da irmã, que falecera dois anos antes, em uma situação não explicada, e que ficara envolta em mistério, por que a jovem foi encontrada com sangue nos olhos, e um pentagrama tatuado na nuca, em um primeiro momento, as investigações decorreram para um crime ligado a magia negra, mas a irmã era uma católica praticante, diferentemente de Pietra, que tudo fazia para não acompanhar a família aos cultos religiosos aos domingos. Debatia fervorosamente a respeito da existência de um criador que permitia que houvesse tantos crimes e ocorrências violentas entre suas criaturas prediletas.

Ficara feliz quando foi aprovada e teve que mudar para uma nova cidade, após a morte da irmã, a casa ficara triste, constantemente percebia a mãe chorando, e o pai dedicara ao trabalho de uma forma que permanecia mais tempo ausente naquele momento, ainda que seria mais prudente apoiar a família durante aquele período trágico.

Pietra, deitou sobre a cama, começou a revisar uma das três matérias das quais precisava recuperar as notas, mas sua atenção foi despertada para sons e ruídos que ecoavam pela república, parecia ouvir pessoas murmurando enquanto caminhavam pelo corredor, ficou apreensiva, levantou rapidamente, e trancou a porta, colocando o ouvido junto à madeira, os passos pareciam vir em direção ao quarto, por essa razão, apagou a luz, ficando em silêncio. Os passos foram aproximando, enquanto Pietra sentia o coração descompassado, não havia lugar para esconder dentro do quarto, e não seria capaz de fugir pulando do segundo andar da república, foi quando surpreendeu com a maçaneta movendo lentamente, afastou da porta, e subiu sobre a cama, colocou a mão sobre a boca, evitando gritar. Porque caso fosse um criminoso certamente, iria tentar arrombar a porta, caso descobrisse que havia alguém na república naquela noite. A maçaneta continuava movendo para cima e para baixo, e não teve alternativa, além de abrir a janela e gritando alto, pedia:

- Socorro...

- Socorro, alguém ajude!

Foi quando ouviu os passos afastando da porta, e novamente os murmúrios, como houvesse pessoas conversando além da porta, Pietra colocou a cabeça para fora da janela, e pedia:

- Socorro, alguém ajude.

- Socorro.

Olhou para a calçada, e diante da república havia uma silhueta parada, parecia olhar na direção dela, mas permanecia imóvel, foi quando Pietra, começou a gritar, dizendo:

- Ei você, não está ouvindo?

- Tem alguém aqui dentro.

- Chame a polícia.

- Preciso de ajuda, chame a polícia.

A silhueta permanecia imóvel, apenas os longos cabelos negros balançavam com o vento frio daquela noite de outono. Pietra, gesticulava, continuava tentando despertar atenção de alguém, foi quando pode ver uma outra forma humana aproximando, caminhava pela rua lentamente, como não tivesse pressa alguma, que aproximando da primeira silhueta, parou e permaneceu olhando na direção da república. Pietra voltou a gesticular, pensou que não estava sendo vista e continuou balançando os braços, foi quando ouviu o som de um veiculo aproximando, ao longe parecia ser um veiculo da policia devido às luzes intermitentes, foi quando percebeu que não era, mas sim uma viatura de salvamento, que parou diante da república, e dois homens e uma mulher desembarcaram rapidamente do veiculo, apanhando todo equipamento de salvamento, inclusive uma maca. Pietra sinalizava, tentando chamar atenção dos integrantes da viatura, mas continuava não sendo ouvida, pensou estar muito longe, e apanhando um livro na estante, atirou em direção ao primeiro integrante que aproximava da porta principal da república.

O homem forçou a maçaneta, não tendo sucesso, Pietra continuou gesticulando e gritando, queria ser ouvida, mas estava sendo ignorada, foi quando gritou dizendo:

- Que inferno.

- Será que ninguém ouve o que digo?

O homem diante da porta, voltou até o veiculo e apanhou algo sobre o banco dianteiro da unidade de resgate, retornando até a porta principal, onde os outros dois integrantes agora esperavam, foi quando empunhando o que havia apanhado, disparou duas vezes, chutando a porta em seguida, entrando e sendo seguido pelas duas outras pessoas. Pietra olhou para a calçada, e aquelas duas silhuetas permaneciam imóveis olhando em direção à janela.

Pietra nervosa, fez um sinal ofensivo na direção deles, e voltou para dentro, indo até a porta, esperava ouvir os passos da equipe de resgate para abrir a porta, mas tudo permanecia em silêncio. Apreensiva, Pietra abriu a porta, olhou no corredor e nada, nenhum sinal de vida, apenas aquele silêncio sepulcral, foi quando correndo, desceu pelas escadas, saindo pela porta em seguida, ficou longos minutos olhando para a república, esperando algum sinal dos integrantes da equipe de resgate, vir em seu encalço.

Nada, Pietra, mordeu o lábio inferior, como sempre fazia quando estava nervosa, assim como a mãe, sentiu as mãos e pernas trêmulas, e surpreendeu quando a equipe de resgate, caminhava com dificuldade carregando a maca. Pietra avançou na direção deles, queria descobrir quem seria, que estava sendo carregado naquela maca, mesmo por que estivera sozinha desde a tarde daquele dia. Foi quando ouviu os integrantes da equipe de resgate conversando entre si, dizendo:

- Nossa, mas é muito jovem.

- Encontrou algum documento dela?

- Não, nada...

- Procurei no único quarto que estava aberto.

- E agora?

- Levaremos para o hospital com certeza alguém irá procurar por ela.

- Mas pelos ferimentos sofridos.

- Apenas um milagre poderá salvar essa jovem.

- Por que estava sozinha?

- Não sei...

- O que pode ter acontecido?

- Pode ser qualquer coisa.

- Até mesmo droga...

- Deve ter tido uma overdose ou crise de abstinência.

- Assim explicaria os inúmeros ferimentos.

- Autoflagelação?

- Sim, é possível.

- Agora, vamos depressa.

- Senão essa jovem irá morrer.

- Os sinais vitais estão cada vez mais fracos.

- E perde muito sangue por esse ferimentos mais profundos.

Pietra, permaneceu atônita, diante do corpo dela, estava seminua, coberta por sangue e feridas diversas, parecia haver sido esfaqueada diversas vezes, o rosto estava muito machucado, e a última visão que teve dela foi descobrir que os olhos estavam negros, embora possuísse olhos claros. Pietra acompanhou a unidade de resgate partir em velocidade, com a sirene e luzes de alerta ligada, apenas com os olhos, como que não tivesse força para mais nada, absorta em pensamentos, sentiu a brisa fria, roçar seu rosto, e não conseguia compreender o que estava acontecendo, foi quando olhando ao redor, descobriu aqueles dois vultos, no mesmo lugar, olhando em direção à janela da república, onde momentos antes Pietra pedia socorro.

Pietra aproximou lentamente dos vultos, e cada vez mais próxima podia atentar aos detalhes, possuía semblantes conhecidos, parecia poder reconhecer aqueles dois vultos, mas não conseguia lembrar de onde, e quando perto deles, indagou:

- O que estão fazendo aqui?

- Será que não estavam ouvindo meus gritos?

- Sim, ouvimos.

- Por essa razão estamos aqui.

- Em que podemos ajudar você?

- O que está acontecendo?

- Por que não entraram na república?

- Não poderíamos.

- Sabe, “ele” continua dentro.

- Por essa razão estamos do lado de fora.

- Quem está lá dentro?

- O dono daquele lugar amaldiçoado.

- Quem é ele, afinal?

- Você conhece por morte.

- Mas pode ser, o anjo da morte.

- Recebe o nome de ceifador.

- Tem tantos nomes.

- A morte?

- Sim, enfim a morte descobriu onde você estava.

- Que maldita conversa é essa?

- Pietra, esse é seu nome, não é mesmo?

- Sim.

- Nesse momento você está morrendo.

- A equipe médica irá descobrir que nada pode fazer para salvar você.

- E quanto a você, deve aceitar seu destino.

- Não, eu não estou morta.

- Eu não posso morrer.

- Na verdade, não está morta de verdade.

- Agora e apenas uma alma perdida.

Um dos vultos olhou em direção a Pietra, que percebeu que aquele vulto, também possuía a órbita dos olhos negra, mas não era por que os olhos haviam escurecidos, os olhos haviam sido arrancados, permanecendo apenas as órbitas vazias, foi quando aquela criatura disse:

- Não temos permissão para ficar.

- Assim, iremos partir.

- Não, eu não quero ficar sozinha.

- Mas esse é seu lar, Pietra.

- Onde permanecerá para sempre.

- Não, eu quero voltar para casa.

- Essa é sua casa, agora e para sempre.

- E por toda eternidade.

Aqueles dois vultos foram afastando lentamente, Pietra ainda tentou alcançar, mas parecia que a cada passo ficava mais distante deles, e mais próxima da república. Ficou parada diante do edifício, ouvindo o vento contra os galhos das arvores. Sentia uma tristeza ainda mais intensa e dolorosa, mas não havia ninguém para confortar seu coração naquela noite, foi quando ouviu passos vindo em sua direção, e uma voz terna dizer:

- Venha criança.

Pietra sentiu um gélido toque em seus cabelos e no rosto, como algo ou alguém acariciasse delicadamente sua pele, em um ato sutil e afetuoso, e não resistindo, caminhou em direção à entrada principal da república, entrando em seguida. Voltou ao quarto, e encontrou tudo em seu devido lugar, observou a paisagem da janela e perguntou:

- O que realmente aconteceu?

Podia sentir a presença bem próxima, mas não houve resposta, sentou na cama, e colocou o rosto entre as mãos, lembrando das últimas palavras da mãe, antes de desligar o telefone, na manhã do dia anterior.

- Minha filha, precisa voltar para casa.

- Estamos com saudade de você.

- E sei que sente falta de sua irmã, mas volte para casa.

Durante quase uma semana, Pietra permaneceu sozinha na república, não saia do quarto, durante todo dia, percebia que realmente não havia ninguém, mas bastava começar a anoitecer, e podia sentir aquela presença gélida, era uma sensação fria diferente, que mantinha até o alvorecer. No oitavo dia, começou a ouvir burburinhos e conversas pelo corredor, resolveu sair do quarto, deparando com alguns moradores da república retornando do recesso, podia perceber que estavam mencionando seu nome, até tentou dizer que estava presente, mas não foi ouvida, foi quando entrou na cozinha, e ouviu uma mulher dizer:

- E alguém avisou Emanuelle?

- Não posso afirmar...

- Mas acredito que sim.

- Ficará chocada com a morte de Pietra.

- Sim, muito! Eram muito unidas...

- Estranho, não é?

- Sim, primeiro a irmã, agora Pietra.

- A mãe virá buscar os pertences dela.

- Seria bom, caso Emanuelle estivesse presente.

- Sim, mas como iremos contatar Emanuelle?

- Bem, podemos pedir para a faculdade fazer isso.

- Então faça, Joana.

- Farei, Lucie.

Pietra permaneceu imóvel em meio à cozinha, ainda podia lembrar do aroma do café fresco, servido toda tarde, quando todos estavam reunidos, lembrou do hábito estranho de Emanuelle de adicionar ao café pitadas de cravo e canela em pó. Sentou desolada no piso frio, e murmurou:

- O que esta acontecendo?

- Fique tranquila.

Ouviu aquela voz terna, e olhando pela janela, percebeu que anoitecia, o ar começara a ficar mais frio, e podia sentir aquela presença bem próxima de si, que concluiu:

- Temos que ir a um lugar, Pietra.

- Mas apenas pode sair do casarão acompanhada por mim.

- O que esta acontecendo?

Não houve resposta, Pietra apenas sentiu como houvesse alguém segurando sua mão e caminhou até a porta principal, alcançando a calçada diante da república, onde alguns moradores, conversavam sobre os acontecimentos macabros de alguns dias atrás, quando Pietra foi encontrada entre a vida e a morte, mas que não resistindo aos ferimentos, faleceu horas após, nos braços de um médico que havia tentado todos os meios para salvar a jovem.

• Damien Darkholme

DAMIEN DARKHOLME
Enviado por DAMIEN DARKHOLME em 11/08/2012
Reeditado em 17/06/2017
Código do texto: T3824873
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