Ouroboros

Miudezas de diferentes estilos e cores sempre bem organizados por ali no tampo da mesa, anjos esvoaçantes, ou não, caixas de tamanhos variados se diferenciam umas das outras pelo trabalho feito por artesão, um cinzeiro com a estampa de um unicórnio, dois cachimbos de madeira, dois vasos de porcelana chinesa (um deles com um dragão comendo o próprio rabo). Tina segurou o vaso na mão. “De onde foi que veio este par de vasos!?” Passou a mão pela cabeça, intrigada... Lembro de algo bem exótico, diferente mesmo, essa imagem de ouroboros neste momento da minha vida! Será um alerta? Estou mesmo precisando mudar!

Dá uma visão geral no seu apartamento... Assusta! Cada cantinho guarda momentos significativos da sua vida... Descobre... o motivo de demorar um dia inteiro para limpar a poeira dos objetos... um número incontável deles olham para ela, como pedindo para serem lembrados, tocados, vistos... Sangue... Uma trinca no vaso faz ouroboros ferir a sua mão!

Sente roçar sua nuca... os lábios quentes do Renan sempre a excitam. Sua língua meio aveludada, meio áspera a leva ás alturas... comia a maçã com casca e tudo, com e junto dele. Traidor! O sangue escorre pelas mãos. “Traidor, uma cafajestada... foi o que me fez!” Lembrou da traição de Renan e a jovem dentista ,residente no apartamento ao lado... Renan que lhe deu o vaso estampando a imagem de ouroboros. Comprou na feira de antiguidades da Avenida Paulista. Sangue!

Lágrimas e sangue, este maldito vaso, desta maldita lembrança. Olha para fora da janela, céu escuro, carregado de nuvens, vento, frio... ouviu a previsão de mudança drástica do tempo! Não ia sair! A liberdade a assusta! Ali, os objetos seus companheiros lhe contarão histórias... cada um deles pode modificar a sua tristeza e o abandono sofrido. Vazio na alma! Seu corpo ansiei pelos carinhos... Abandonada!

Olha pela janela, a chuva começa a cair... a grama amarelada pela estiagem, com a chuva vai ficar verde... Deitados naquele tapete de gramíneas, corpos suados pelo calor da tarde... Áspero! Macio... o contato das mãos explorando a vida. Mais um momento feliz para guardar na memória do coração... “Renan, ainda vai voltar.” Segura o vaso nas mãos e uma gota de sangue fecha o círculo ouroboriano. O feitiço se completa, afinal, pra que serve um vaso encantado!