A doce enfermeira dos olhos azuis
A manhã cizenta de inverno, avermelhava as bochechas daquela pequena, seus olhinhos vasculhavam atentamente o quarto daquele gigantesco hospital. Sua cabeça latejava e, ela não conseguia se lembrar o por que estava ali, naquele cenário vazio e desolado que em nada se parecia com ela e com a sua vida de montanha-russa. Sorriu de lado, a dor de cabeça se parecia com aquela das ressacas fortes, devia ser isso, a noite havia de ter sido boa, para a ter levado ao hospital. ”Coma alcoolico outra vez.” Pensou e riu-se de si mesma. Sentiu vontade de fumar. Uma enfermeira alta e loira entrou no quarto, vestido branco, boca vermelha. ”Cara de vadia.” Pensou.
- Como se sente? - A voz doce da enfermeira chocou os pensamentos maldosos que haviam nascido em sua mente.
- Feia. - Respondeu num meio riso, meio escárnio.
- Vou trocar os curativos.- A enfermeira sorriu.
”Curativos? Que merda é esta?” A garota fechou os olhos quando sentiu seus pulsos arderem. ”Droga!” Mordeu os lábios. Em uma fração e segundos, tudo voltou aos sua mente, toda a dor, toda a raiva, todo o fracasso. ”Eu não consegui.” As lágrimas explodiram e, ela soluçava.
- Oh meu Deus, se acalme. - Os grandes olhos azuis da enfermeira loira, a fitavam desesperados.
Ela chorava. Acolhia em seu peito a dor do mundo. A enfermeira, trazia dentro dos seus lagos azuis um tom de pena e compaixão, que fez brotar no coração da garota uma ponta de ódio.
- Não sinta pena de mim! - Ela gritou, fazendo a enfermeira recuar.
- Oh, não… Não sinto pena. - Ela sorriu docemente.
A enfermeira a havia desconcertado. A vida tem dessas coisas, de tratar a gente da forma que não merecemos. O choro silênciou e deu lugar a um vazio, a uma sensação de incapacidade que a consumia.
- Está doendo não é? - A loira dos olhos gigantescos sentou-se a beira de sua cama e a fitou demoradamente.
- Sim. - Respondeu a contra gosto, apenas por não poder construir muros que impedissem uma aproximação daquela estranha e encantadora mulher de branco.
- Sabe pequena, - Ela disse-lhe segurando seus pequenos pulsos mutilados - Viver é mesmo uma crueldade.
A garota encheu os olhos de lágrimas outra vez, mas a enfermeira continuou:
- Não. Não chore. Quando você chora, algum pingos de felicidades se perdem no meio de suas lágrimas e acabam deixando você… - A voz melodiosa , abria a alma machucada da menina. - Quanto mais chora… Mais a felicidade te deixa, e no fim minha pequena… resta apenas tristeza.
- Estou no fim então… - Retirou os pulsos das brancas mãos da enfermeira e fitou o pequenino pedaço de céu, que se mostrava por trás das pesadas cortinas do quarto.
- Acha mesmo? - Os olhos azuis tinham agora um ar desafiador.
- Acho. - Expressão nenhuma notou-se no rosto rosado da menina.
- Hmm, quer me dizer que toda a felicidade que tinha já escoou com suas lágrimas? - A enfermeira sorriu e, ignorando a fuga anterior, tomou nas mãos novamente os pulsos da pequena.
- Eu… Acho que sim. É que… Tenho chorado tanto, tem sido tão duro, tão dolorido… - Fitou os dois lagos profundos e azuis da mulher e pela primeira vez em muito tempo sentiu-se aparada.
- Mas menina, olhe só para você - Ela segurou o roto pequeno e sofrido da garota - Tão doce, tão nova… Tão linda.
- Francamente! - Ela desviou o rosto do carinho da desconhecida e respondeu rispidamente.
- Sim francamente… - A enfermeira mais uma vez sorriu. A garota notou que seus dentes era certinhos e brancos. Incomodantemente perfeitos.
- Olha… - O tom da garota abrandou - Eu não sou linda sabe? Olha só para isso - Estendeu-lhe os pulsos cortados.
- Ouvi dizer um dia, que aqui na terra, existe uma espécie de …- Ela observou a janela para onde os olhos da menina estavam voltados e continuou. -código de conduta, dizendo como as pessoas devem agir e se comportar. E acho que isto está certo, mas… ouvi dizer também que ao longo dos anos este código de conduta foi sendo corrompido e, hoje… alé do comportamento, este código tem tentado impor para as pessoas como elas devem ser em sua essência. - os olhos azuis da enfermeira estavam marejados.
- Oh não. - A garota correu os dedos pelo rosto da mulher. - Não chore agora.
- Está tudo bem. - Ela sorriu, enxugou os olhos e continou. - É que eu me pergunto, se vale mesmo a pena, obdecer a este tão antigo código… Que obriga que todos sejam iguais, amem pessoas iguais, vistam-se de forma igual.
- Está falando de sociedade? - A garota havia perdido a armadura, os olhos azuis da enfermeira a haviam conquistado.
- Não. Estou falando de crueldade. - Baixou os olhos e deixou com que sua voz perdesse a doçura por um momento.
- Acho que no fim das contas, acaba dando na mesma. - Riu de canto.
- Talvez… Olha menina, esta conversa toda não vai nos levar á lugar algum, - Pegando a menina pelas mãos, ergueu seus pulsos cortados até a altura de seus olhos e continuou.- Mas isto vai. Isto vai te levar pra onde com toda a certeza você não quer ir.
- E se a maioria quiser que eu vá?
- A maioria está errada.
A pequena garota sorriu. Estranhamente ela acreditou nas palavras da enfermeira.
- Você precisa ficar pequena… Precisa ser forte como eu não consegui ser. - Os olhos azuis a encararam como se fossem capturar sua alma.
- Como você não conseguiu? - A menina arregalou os olhos sem entender a frase da enfermeira.
- Sim… - Ela olhou para o relógio antigo que trazia em seu pulso. Enquanto isto a garota pôde notar delicadas cicatrizes que se sobressaíam sob as mangas do vestido branco.
- Você…
- Desculpe-me preciso ir. Tenho outros pacientes… - Ela levantou-se e correu em direção à porta.
- Espera! - A garota tentou gritar. Mas vendo a mulher travessar pela porta fechada, ela calou-se. OLhou perplexa para os próprios pulsos e notou que não havia sinal algum.
”Meu Deus!” Seus pensamentos reviviam a conversa com a estranha mulher. A garota correu. Atravessou os imensos corredores do hospital até que conseguisse chegar as ruas. Andou a cidade inteira, até que conseguisse chegar em casa. Entrou em seu pequeno quarto decorado especialmente para uma garota, abriu uma das gavetas do criado mudo e retirou de uma caixinha bonita, giletes. Algumas novas, outras usadas. Atirou-as longe. Sorriu e fitou o céu azul. Azul… Como certos olhos. Azul. Soube que agora estaria livre.