Amigo imaginário
Ele está no portão...
O garoto pôde sentir a presença do visitante e se encolheu dentro do armário junto com vários brinquedos, lembranças de tempos felizes com seu amigo, tempos que nunca voltariam. Nas mãos segurava firme uma bola, o brinquedo favorito do parceiro de tantas brincadeiras. Pela fresta da porta viu os últimos raios de sol cedendo lugar à noite que sempre lhe trouxe arrepios. O amigo sempre o confortava dizendo que não havia o que temer, que estavam juntos, mas naquela noite o autor das confortáveis palavras de antes era o único depositário de seus medos.
Ele está cruzando o jardim...
No seu íntimo sempre soube que ele voltaria algum dia, ainda tinham assuntos inacabados, foi uma separação abrupta. A amizade dos dois durou mais do que os pais podiam admitir. Foram ao médico, ouviram psicólogos e, mesmo a mãe inclinada em trazer novas amizades para a relação dos dois, eles não se separaram, ninguém podia, pois precisavam um do outro. Certa vez, escondido no mesmo armário onde se encontrava naquele momento, ouviu os pais conversando em voz baixa, “o doutor disse que quanto mais demorar pior será para ele”, exclamou a mãe, “então é melhor aceitarmos usar os remédios querida”, retrucou o pai.
Ele está na porta da sala...
Então vieram os remédios, foi um pesadelo, nada mais foi como antes. As brincadeiras já não eram mais divertidas, não conversavam tanto quanto antes, e passavam pouco tempo juntos. Mas o pior foi quando o amigo começou a ficar diferente, seu olhar não era mais o mesmo, não o tratava com a mesma amizade de antes, parecia sem paciência com ele. Os pais ficaram satisfeitos ao ver a forte amizade entre os dois se desfazendo, mas não viam o que o amigo estava se tornando. Ficou violento com ele, gritava quando estavam sozinhos e simplesmente desaparecia durante longo tempo sozinho, antes iam a todos os lugares juntos.
Ele esta subindo as escadas...
Às vezes o amigo ficava tão exaltado que o garoto se escondia assustado dentro do armário e passava horas lá dentro, brincando sozinho. Os brinquedos outrora compartilhados entre os dois eram a única companhia em sua solitária vida após os remédios. Enquanto ele se escondia o amigo andava pela casa chamando por ele nervoso, mas o garoto não saía, pois sabia que se saísse seria agredido por ter se escondido. Aquele monstro era invisível aos olhos dos pais, era seu tormento particular e a cada dia ficava pior, desejava sair daquela casa, não podia mais aguentar aquilo. Mas em um determinado dia o amigo se foi e não voltou mais, ele sentia um grande alívio e ao mesmo tempo um pesar por perder alguém que fora tão querido.
Ele está entrando no quarto...
A luz do quarto se acendeu, passos pesados anunciaram a presença do velho companheiro, o garoto se encolheu mais em seu refúgio, tremendo e com os olhos lacrimejando, as mãos vacilantes deixaram a bola cair, ele a apanhou com rapidez. Sempre desejou a volta do amigo, mas agora, com ele tão perto, seu saudoso desejo se transforma em um horrível temor. Os passos são vagarosos e parecem acompanhar a respiração contida do amedrontado ocupante do armário. Enfim, após tanto tempo parecia que o amigo havia descoberto seu refúgio seguro, fechou os olhos e pediu baixinho para que ele fosse embora e nunca mais voltasse, não queria encontra-lo.
Ele está abrindo a porta do armário...
A porta se abriu em um rangido angustiante, relutante o garoto abriu os olhos para contemplar o responsável pelo longo sofrimento. Lá estava seu amigo, mudara bastante desde a última vez que se viram, estava mais medonho do que antes, estava feio e desgastado. Não havia mais o mínimo traço de alegria, seu olhar estava austero e a boca não parecia capaz de manifestar o mínimo sorriso. Um monstro completo, fazendo o horror tomar conta do garoto, acuado no fundo do armário ele só esperou pelo pior, mas o amigo só o encarava, durante um longo tempo, postergando ainda mais sua sofrida espera. Os olhares se cruzam e o garoto não vê ameaça no abominável ser à sua frente, é apenas tristeza que se projeta dos desvirtuados olhos. O garoto ensaia um agro sorriso que não é correspondido, então estende a bola, o amigo faz menção de pegá-la, mas recua. Com a boca trêmula a terrível figura desfere o mais cruel golpe contra o indefeso garoto “sinto muito Joni, não posso brincar com você, já não sou mais uma criança, precisa partir”. E naquele quarto só restou um homem de frente para um armário repleto de brinquedos empoeirados.