Um ato terrível
27, novembro de 1885
A chuva, o frio e as inúmeras velas acessas espalhadas por todos os cantos da casa de Gregor, já eram o suficiente para causar uma tristeza profunda nas almas de quem presenciava essa cena. Mas o destino ainda reservara para esse meu pobre amigo uma fatalidade! De maneira prematura e misteriosa, uma enfermidade desconhecida ceifara
sua jovem esposa; aquela que ele fazia planos e amava-a acima de tudo estava agora deitada inerte e sem vida num cômodo acomodado para o velório.
Via meu amigo desolado, prostrado junto á janela, contemplando aquele cenário lúgubre que se fazia. Era triste ver o seu semblante, tinha um aspecto cadavérico! Parecia que não comia há dias. Aproximei-me dele, toquei seu ombro, ameacei dizer-lhe uma palavra de conforto, no entanto, conhecia-o demasiado bem. Sabia o quanto seria estúpido proferir qualquer palavra naquele momento. Então, limitei-me em ficar ao seu lado silenciosamente contemplando os pingos de chuva que caiam na terra abaixo de nós. Assim como ele, bebia uma dose de wisk para aquecer ao menos o corpo, pois, o espírito não poderia jamais ser aliviado do mar de tristeza que me assolava. Porém, não consegui ficar por muito tempo a seu lado; as gélidas rajadas de chuva que precipitam-se em meu rosto não eram-me nada confortantes. Não podia dizer o mesmo de meu amigo, ele parecia não se importar com aquilo. Deixei-o ali e voltei para meu lugar. Nisso, Sra. Frida, Irma de Gregor, sentando-se a meu lado disse:
- Sergi, sei que parece tolice o que vou lhe dizer, porem... - conteve-se um momento, e continuo dizendo com pesar no olha: notou o olhar de meu irmão, tão vazio! Notou o quanto perdido ele parece, receio que ele tente cometer alguma loucura...
- Compreendo o que dizes minha cara, mas, acalme-se, ficarei de olho nele. Tudo
bem?
- Obrigada Sergi. Disse levantando-se.
Apesar de saber que algo terrível havia acontecido ao meu amigo, eu sabia que aquela expressão não era comum, já havia visto varias pessoas em sua situação, mas, o olhar de Gregor! Ah! Era medonhamente desprovido de qualquer traço de razão. Era como se ele
tivesse perdido completamente a alma. Gregor, que sempre fora um homem correto, admirado e de grande vigor, seja de espírito ou físico, parecia ter, em poucas horas, se transformado em tudo o que nunca fora. Eu o fitava ainda prostrado na janela, era terrível cortava-me a alma vê-lo naquele estado, então, mais uma vez me aproximei
dele. Tentei elaborar uma frase na mente, uma frase que não fosse ridiculamente inoportuna, quando decide falar-lhe, ele disse:
- Meu caro amigo, me sinto totalmente fora dos juízos, sinto que... Não... Não... - disse-me num tom de profunda meditação.
Aquelas palavras, ditas de maneira tão fúnebre, e tão semelhante ao que foi conversado a poucos momentos entre eu e Frida, fizeram com que um desconforto me aterrasse os pensamentos. Então disse:
- Não sei o que passa em sua cabeça meu caro amigo, mas, no que precisar, eu estarei aqui, como sempre estive, seu amigo!
Ele olhou para mim, olhou-me com aquele olhar que nunca vira em sua face, um olhar perdido e frio, e disse-me:
Sergi, escute-me, te pedirei algo, e, desejo que não recuse o meu pedido, pois certo?
- Claro, Gregor, diga-me.
- Amanha, no enterro de minha... queri,,,,- hesitou um pouco -amanha! Peço-te, que seja o único que a cubra com o manto frio e sujo de terra! Ouviu-me Sergi? Apenas você, desde a primeira até a última porção de terra, quero que seja você quem a enterre!
Mesmo não entendendo o motivo extraordinário da situação, mesmo sentindo-me abatido pelas palavras e o jeito que ele me olhava, consenti de pronto sem questionar, não queria ser inconveniente perguntando-lhe o porquê ele mesmo não podia fazer isso,
visto que, se tratava de sua própria esposa. No entanto, refletindo, cheguei a um consenso de, que seria estranho jogar terra sobre aquela pessoa que tanto amamos.
As horas foram-se passando lentamente, nisso, Gregor apoderando-se de um
guarda chuvas, sem dizer palavra alguma se pôs para fora de sua casa. Frida lançou-me
um olhar, como que me dizendo para eu ficar à espreita de Gregor. Saí em seu encalço
imediatamente. Ele caminhava devagar pela calçada, ainda chovia muito. Seguia-o à
certa distancia. Sabia que era demasiado estranho ele deixar sua casa horas antes do
velório. Receava que ele fosse realmente cometer um ato insano a qualquer momento.
Vi-o entrando num bar, atravessei a rua de maneira que eu ficasse de frente a esse
bar. Pela vidraça da frente podia vê-lo sentado tomando alguma bebida. Após alguns
minutos ele saiu normalmente, e pôs-se a caminhar de volta à sua casa. Em outras
circunstancias seria demasiado estranho vê-lo entrar num bar, pois não era coisa de seu
agrado, no entanto, a situação em que ele se via dizia por si mesma.
Enfim, estávamos novamente à sua casa. As pessoas começaram a chegar,
amigos e parentes lhe faziam as condolências. Ele, humildemente não se fez de ausente
para com essas pessoas, comprimentava-nas com o maior prazer do mundo, olhava cada
uma delas nos olhos. Agradecia-as pelas palavras de alento. Eu o via com dor no
coração. Ele não merecia o que estava lhe acontecendo. Homem tão fiel aos amigos, tão
atencioso, nunca deixava ninguém no alento. Pobre Gregor, que provação!
A chuva agora começava a cair ainda mais forte, o vento, chocando-se com as
fendas da parede de madeira da casa de Gregor pareciam entoar uma canção fúnebre,
melancólica, que terrível cenário! Todos, um por um iam passando pelo caixão semi
aberto, um caixao suntuoso, de certa forma, até desproporcional em tamanho para o
delicado corpo da pobre alma que ali estava, onde parecia dormir tranqüilamente sua
mulher. Tão serena era sua expressão, que poderia jurar que ela não estava morta, que
ela apenas dormia um sono profundo. Como era bela!
- Agradeço-lhes todos pela presença, cada um de vocês tem um lugar no que me
sobrou do coração, no entanto, agora, humildemente peço-vos que me deixem a sós com
minha querida esposa, quero ser o ultimo a vê-la. - disse da maneira mais solene que
podia.
Todos, sem hesitar a esse pedido mais que digno, deixamos a sala onde o corpo de
Sara era velado. Eu, o último a sair, a pedido de Gregor, fechei a porta. Alguns minutos
após o deixarmos sozinho ouviu-se um barulho abafado do lado de dentro da sala onde
ele estava. Todos nós nos entreolhamos assustados. Resisti um pouco meu ímpeto de ir
lá averiguar o que acontecia, no entanto, me fiz sem protestos à sala de em questão. Ao
abrir a porta me deparei com um cenário caótico; a janela estava escancarada, a
tempestade parecia que se fazia ali dentro, as cortinas esvoaçavam ensopadas, a água
molhava tudo que havia ali, até mesmo o caixão de sara que, já não estava mais sendo
velada por Gregor, estava sendo atingido pelas grossas gotas de chuva. Nisso, não o
vendo ali dentro, comecei a gritar por seu nome, debalde, não obtive resposta alguma.
Corri até a janela, e antes que a fechasse, olhei atentamente lá fora, tentava enxergar
alem do véu de chuva, tentava ver meu pobre amigo em meio aquele vendável
medonho, não vi alma viva, apenas ao fundo, apesar da escuridão, podia ver o vento
sacudindo as copas das árvores que fundeavam a propriedade de meu amigo. Ameacei
mais alguns gritos por Gregor ao relento inóspito à minha frente,gritei com toda força
que pude, mas, debalde, ele havia desaparecido! Tive vontade de precipitar-me pela
janela e ir à sua procura, no entanto, desisti e fechei a janela. Como havia sido ingênuo
ao deixá-lo sozinho, era certo que ele planejava algo! Como pude ser descuidado! O que
ele não era capaz de fazer naquele estado?
 
28, novembro, 1885
Na manha seguinte, reunimos um grupo de amigos que, a cavalo, percorremos
quilômetros em torno da cidade, porém, infelizmente, para nossa angústia não o
encontramos. Até mesmo vasculhamos as margens do rio Lorrene, distantes boas milhas
da cidade, presumindo que ele havia cometido alguma afronta para com sua vida, mas,
como disse, não o encontramos.
Atrasamos o mais que podíamos o enterro na esperança de encontrá-lo, no entanto,
estávamos agindo mais pela emoção do que pela razão, pois, conhecíamos Gregor, não
era homem de se deixar encontrar, era muito inteligente. Então, fiz assim como meu
amigo pedira-me - após descermos o caixão cova adentro com imensa dificuldade, visto
que, ele estava encharcado e muito sensível após o incidente da noite anterior - da
primeira a ultima pá de terra, sem hesitar, a enterrei. Em seguida olhei para o horizonte,
para as árvores alem, tentando imaginar por onde aquele outrora vivido homem, agora
atormentado e solitário, andava.
31, novembro, 1985
Três dias após o enterro de Sara, já sem esperanças de encontrar Gregor, algo
extraordinário aconteceu; eu estava sentado, no mesmo bar que havia visto meu amigo,
quando:
- Sr. Sergi? Disse-me o dono do bar estendendo-me um bilhete.
- Sim, o mesmo.
- O Sr. Gregor pediu-me que lhe entregasse...
Não podia acreditar! Depois de agradecer o dono do bar, pus-me a ler eufórico o
bilhete. Pela caligrafia não restava duvida de que eram realmente de Gregor aquelas
palavras. Pensei - que boa noticia havia recebido; um bilhete de Gregor! Ele está bem!
O bilhete:
Querido amigo. Devo tê-lo deixado deveras
preocupado esses dias. Perdoe-me por isso. No
entanto, digo-te que já neste momento, estou onde eu
realmente queria estar. E sou feliz agora! Sim!
Espero que você tenha atendido o meu pedido caro
amigo. Pois, ser-me-ia decepcionante ser enterrado
junto com minha mulher por outras mãos que não as
suas. Obrigado por tudo
Seu amigo, Gregor!
27, novembro, 1885
Enfim, tudo se encaixara em minha mente; a sua magreza esquelética, o seu sumiço,
o pedido para ficar a sós com sua esposa, ah! O caixao, que era maio do que o normal!
Ele estava planejando tudo há dias, até mesmo a misteriosa presença dele no bar, que
agora eu sei que era para deixar o bilhete que seria entregue a mim na hora certa. O
peso demasiado do caixão, que achei ser consequenca de ter-se molhado, no entanto,
nada mais era que o corpo do meu admirável amigo que estava ali dentro. Pobre
 
companheiro! Grande amor que tinha por sua amada. Dormia agora em paz com sua
querida esposa na mesma cova, no mesmo caixão!