Medo

George Luiz - Medo

(para meu amigo Antonio Bento)

Roger acabou de preparar seu drinque. Era um homem metódico. U-sava sempre a mesma marca de bourbon e o mesmo vermute tinto em seus Manhattans.O telefone tocou.

- Boa noite, Roger. Telefonei para cumprimentar você pela grande vitó-ria no torneio aberto de Brasília. Vejo que você retornou hoje mesmo.

- Ë, já estou em Petrópolis.Não tenho paciência para esses jantares de encerramento.

- Vi os resultados na internet. Sua última partida foi brilhante.

- Obrigado. Um jovem promissor mas pouco consistente ainda.

- Você foi frio e implacável como sempre...

- Xadrez e emoção não são uma boa mistura. Joguei a abertura de sempre com a necessária confiança.

- Nosso amigo Bento foi o árbitro geral, não?

- Um árbitro bem competente, desde que lhe sirvam os vinhos corretos e um peixe bem preparado nos almoços durante os torneios.

- Bem, me telefone ainda esta semana, vamos almoçar juntos.

- Combinado. Boa noite.

A noite parecia fria para o início do verão. Roger acomodou-se em sua poltrona favorita e começou a degustar sua bebida. Vinte e nove anos, quase trinta, disputando competições de xadrez. Começara relativamente tarde, aos dezesseis. Olhou em volta de si. A sala tinha uma decoração quase geométrica, de bom gosto. Num canto estava o requintado tabuleiro chinês com as peças em marfim. Não eram peças comuns. Os piões tinham o formato de guerreiros com suas lanças em posição agressiva. As torres eram fixadas no dorso de elefantes. Os bispos figuras quase sinistras em seus trajes religiosos.

Os cavalos eram montados por guerreiros com espadas. E os reis e rainhas tinham uma curiosa expressão nos rostos estáticos. Um relâmpago cortou o céu lá fora. Roger terminava seu Manhattan

Então, uma inexplicável sensação de medo fez estremecer seu cor-po magro. Eram os sons, baixos mas bem claros que vinham do can-to da sala.

- Está na hora amigos, vamos enfrentar esse monstro insensível.

- Quem vai liderar nosso grupo?

- Não há necessidade de um líder.Vamos simplesmente cerca-lo e aca-bar com ele.

- E se ele tentar resistir?

- Se tentar , só vai atrasar alguns minutos sua própria morte.

- Estão todos com suas armas prontas? Então vamos...

Não, não era possível. Peças de xadrez não falam. Roger fechou e abriu seus olhos. Elas continuavam lá. Só que agora começavam a mover-se silenciosamente.Saltavam do tabuleiro para o tapete macio.

Eram figuras pequenas mas determinadas. Cercavam aos poucos o

homem sentado. Roger tentou se levantar.

- Não se atreva a se mexer. A voz do rei negro era rouca, fantasmagó-rica.

- Sim, Roger, era a rainha branca quem falava, você não tem a menor chance de defesa.

- Isso não está acontecendo, é uma alucinação...

- Silencio, velho diabo ! Ouça o que temos a lhe dizer antes de sua execução.

O bispo negro olhou friamente o acusado.

- Roger Azevedo... durante trinta anos você tem vencido muitos torneios de xadrez, aqui e alguns fora do Brasil. E você tem feito isso ignorando a auto estima, os sentimentos de seus adversários. Rindo na maioria das vezes do desapontamento em seus rostos.

- Mas eu...

- Quieto ! Você é um bruto, irônico e impiedoso. Sua execução aqui e agora vai vingar todas as suas vítimas.

- Isso é injusto, absurdo !

- Não, Roger, pelo contrário, vamos apenas fazer justiça.

- De marfim ou não, você é um bispo. Onde está sua piedade religio-sa? Sua capacidade, seu dever de perdoar? Pelo amor de Deus !

- Nosso Deus não é o seu. Você é um seguidor do senhor das trevas. Guerreiros , matem esse homem!

- Esperem !

Um som metálico percorreu as espadas dos guerreiros de marfim. Cresceu em volume. Roger encolheu-se na poltrona. De repente ele se deu conta que era o som do seu telefone. Como num pesadelo ele respondeu a chamada.

- Roger? Aqui, o editor da Tribuna. Queremos marcar uma entrevista com você. Pode ser amanhã a tarde?

- Não ! Agora mesmo ! Onde você está?

- Tudo bem, estou na redação.

- Não saia daí, chegarei em quinze minutos.

- Certo, obrigado pela sua gentileza em vir tão rápido até aqui.

Roger caminhou para a porta sem olhar para trás. Ouviu um som estranho mas não ousou ver o que era.

Sobre o tabuleiro o rei negro se acomodara entre sua rainha e o bispo. Lá fora a chuva caia.

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George Luiz
Enviado por George Luiz em 09/02/2007
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