Enquanto Isso, Na Sala de Justiça...
06h e 45min. Segunda-feira.
O despertador toca e eu me levanto. Vou até a privada e urino. O vaso tá cheio de mijo, - de mijadas que eu dei durante a noite -, e a inhaca que exala de lá lembra o banheiro do bar pé sujo que costumo ir, onde a descarga não funciona. A descarga daqui funciona, mas, eu não a aciono durante a noite para não incomodar a dona da casa que tem um sono muito leve. Ela já me pediu para eu só dar descarga pela manhã, quando ela estiver acordada. Termino e dou descarga. O fedor vai diminuindo aos poucos. Saio do quarto, desço as escadas e vou para cozinha esquentar uma panela com água para tomar banho. Não tomo banho frio nem fudendo. Dona Cida já ta na cozinha aprontando o café dela e de seu Menelau, eles sãos os donos dessa casa de pensão. Aqui eu pago o aluguel do quarto, porém, as refeições são por fora, não está incluído, quem quiser comer em casa tem que comprar seus alimentos e cozinhá-los, neste caso, contribuindo com a despesa do gás, ou, pagar um bom dinheiro a mais no fim do mês para que dona Cida compre e apronte as refeições. Eu tomo café na padaria, almoço onde trabalho e janto na padaria de novo, raramente como ou cozinho na casa.
07h e 27min.
Fecho o portão eletrônico com meu controle remoto e desço a ladeira me encaminhando para a padaria. Estamos no mês de Julho e a manhã está fria. Para os padrões aqui do nordeste, diria mesmo, muito fria. Essa hora o movimento ainda é pouco lá na padaria. Nas quartas-feiras, - o único dia que saio mais tarde de casa -, o balcão da lanchonete da panificadora é bastante disputado, agora está tranquilo. Sempre como um pão com ovo e um pão com manteiga na chapa. Às vezes tomo suco de laranja, na maior parte das vezes bebo café com leite. Peço um café com leite e um pão na chapa com manteiga e um croissant de queijo e presunto que o padeiro acabou de trazer, o cheiro que invadiu o lugar foi irresistível, me fazendo dispensar o pão com ovo. Como em silêncio e vorazmente enquanto ouço o burburinho da conversa dos outros frequentadores. Sou um cara estranho, esquisito, estou há dois anos neste bairro e lancho nesta padaria desde que cheguei aqui, no entanto, não converso com ninguém, o máximo que faço é levantar a palma de minha mão num aceno, ou, elevo as sobrancelhas e balanço de leve a cabeça em reconhecimento a alguém que se dignou em falar comigo. Sempre fui assim caladão, tímido, envergonhado, pacato. Contudo, nunca tive problemas de relacionamento, mesmo sendo de poucas palavras me dou bem com a maioria das pessoas. Paradoxalmente, vez ou outra, eu tenho surtos violentos, onde exponho todo meu recalque e os meus preconceitos e falo tudo àquilo que não deveria ser dito. Quando explodo é melhor sair de perto. Já fui detido por agressão duas vezes.
07h e 52min.
Dá padaria vou para o ponto de ônibus que fica há um quilômetro de distância. Meu coletivo passa sempre no mesmo horário. Entro no trabalho às nove da manhã, o percurso do ônibus leva em torno de trinta e cinco minutos. Esse horário para começar a trabalhar é muito bom, é horário de cidade grande. Morei numa cidadezinha de interior onde queriam que eu começasse a trabalhar a seis da manhã, me recusei. Não acordo cinco da manhã nem fudendo.
08h e 57min.
Chego ao trabalho. Já tem gente me esperando. Eu deveria ficar contente, isso queria dizer que eu iria ganhar dinheiro. Só que isso me deixa puto. Eu gosto de chegar, arrumar as coisas, dá uma olhada no jornal e só então começar a atender. Quando chego e já tem gente aguardando, me faz começar o dia de mau humor. Pra piorar tudo o filho da puta do filho do chefe está aqui. Eu não gosto dele e ele também não gosta de mim. Esse anão sacana, - não sou alto, não tenho nem um metro e setenta e ele é menor do que eu, então posso chamá-lo de anão -, tá tramando alguma contra mim. Estou sentindo isso não é de hoje. Desde que seu Carlos deixou o lugar pra ele chefiar ele pega no meu pé.
10h e 45min.
O anão se aproxima de mim e diz:
- Hoje vai ter reunião depois do expediente, vou fazer algumas mudanças e preciso de sua presença. Tudo bem? Pode ficar?
- Posso sim, não tem problema. Respondo sem olhar na cara do imbecil.
O dia corre sem percalços, tudo numa boa, e minha porcentagem pelos meus procedimentos realizados rendeu-me um bom dinheiro. Mas eu não conseguia tirar a reunião da cabeça. Pressentia coisas ruins para meu lado.
18h e 17min.
Eu estava certo. O anão disse que tinha que reduzir os custos do lugar e iria dispensar os funcionários mais novos, ou seja, sobrou pra mim e para outro colega, nós só tínhamos dois anos de casa, os outros três funcionários tinham quase dez anos de serviços prestados. Assim que ouvi meu nome levantei-me e fui saindo. O anão ainda reclamou:
- Espera aí que eu não terminei.
Levantei meu dedo do meio, o maior de todos, e mostrei pra ele sem dizer nenhuma palavra e me retirei. Fui para o ponto de ônibus. Acendi um cigarro. A fumaça do cigarro se confundia com a fumaça que, provavelmente, saia de minhas orelhas que ferviam de ódio. Quando menos espero o anão imbecil aparece e fala:
- Desculpa Plínio, eu não tinha outra escolha.
Ele estende seu braço direito na tentativa de bater em minhas costas, querendo me confortar. Antes que ele encoste sua mão em mim eu afasto o braço dele com o meu antebraço esquerdo, com certa violência, e, usando o dedo polegar e o dedo indicador da minha mão direita eu aperto sua garganta. Ele esbugalha os olhos em desespero. Eu aperto até ele ficar bem vermelho e então eu solto. Ele cai no chão segurando o pescoço e puxando o ar com aflição.
- Nunca mais tente encostar essa sua mão nojenta em mim, seu anão!
Ele está ajoelhado e respira com dificuldade, e fica olhando pra mim com cara de choro. Ele era só um menino achando que era homem. Minha condução chega, entro e deixo-o lá, ajoelhado no ponto, sei que, infelizmente, ele ficará bem.
19h e 18 min.
O largo do Rio Vermelho, próximo da minha casa, está cheio, lotado de turistas, e o perfume do acarajé da baiana famosa toma conta do ambiente. Como dois com camarão e sem pimenta, acompanhado de uma coca-cola bem gelada. Quando estou subindo a ladeira da minha rua, indo para o sobrado em que resido, vejo o Biro descendo em minha direção. Biro é alto, magrelo e preto retinto, os mais chegados o chamavam de Piche, não era meu caso. Ele deveria ter 18 anos, no máximo. Ele trabalha como lavador de carro durante o dia e a noite vende cocaína para o Tyson. Tyson é um playboy de vinte poucos anos, branquelo, bombado, que dirige uma camionete gringa de cor preta, e que usa o cabelo bem baixo, quase raspado, deixando somente uma trunfinha na frente, um filetesinho de cabelo, que ele dizia que era um topete no estilo dos pitboys. Biro se aproxima.
- E aí fiel? Vai querer uma paradinha?
- Vou sim. Cadê o Tyson? Com ele é mais barato e ele ainda dá uma trouxinha de brinde.
- Com ele é mais barato mesmo, ele é o dono da parada. Mas ele hoje não vem não, vai ter que ser comigo mesmo irmão, vai ou não?
- Vou sim, quero três de vintão. Pego a droga ponho no bolso e pago a ele. Ele recebe o dinheiro e vai saindo. Antes que ele se afaste muito eu o chamo de volta.
- Qual foi maluco? Quer mais uma?
- Não, não. Tô afim é de comprar um cano, um ferro, tá ligado, uma pistola ou um tresoitão, tanto faz. Sabe onde eu posso encontrar um.
- Demorô, sei sim, mas você tem que ir comigo lá na favelinha.
- Tem bronca não, vamos nessa.
21h e 03min.
Chego da favela com um tresoitão de cano longo acoplado há um silenciador. O bicho ficou do tamanho de uma bazuca, sinistrão, todo preto. Guardei-o dentro de minha mochila. Passei numa conveniência e comprei uma garrafa de uísque nacional. Hoje eu vou ferver. Vou comemorar mais um emprego perdido desta minha vida perdida e fudida. Abro a porta da casa e encontro dona Cida sentada em sua cadeira de balanço e bordando. Minha vizinha de quarto, Norma, - a gostosa que me ignora, eu escrevi um conto pra ela, mas ela fez pouco caso -, está deitada no sofá assistindo televisão. Passo por elas, desejo boa noite, e vou em direção à cozinha. Na outra sala estão seu Menelau tomando café e Luiza e Selminha, as lésbicas do quarto do outro lado do corredor, - o quarto delas é ao lado do quarto de dona Cida e de seu Menelau -, dividindo um prato de sopa. Aceno pra eles e vou pra cozinha. Bebo água. Quando estou retornando se Menelau pergunta:
- Já comeu meu filho?
- Já sim senhor
- Vamos jogar uma partidinha de buraco mais tarde?
- Hoje não vai dar seu Menelau, eu estou estourando de dor de cabeça.
Toda vez que falo o nome de seu Menelau me dá vontade de rir e dizer uma rima bem escrota com o nome dele. Sempre me controlo e nunca digo. Também prometi a mim mesmo nunca mais jogar cartas com esse velho safado e ladrão, ele rouba no jogo como um profissional. Não jogo mais nem fudendo. Subo as escadas. Finalmente abro a porta do meu quarto. Agora a festa vai começar.
04h e 17 min. Terça-feira.
Ando de um lado para o outro dentro do meu minúsculo quarto. Estou cheiradaço e embriagado. O uísque acabou e não consegui sair do quarto para comprar outro. Toda vez que chego perto da porta escuto algum barulho, penso sempre que tem alguém me vigiando por trás das outras portas. Vou até a janela. O lado do meu quarto fica na encosta de um morro. As casas ficam lá em baixo e posso ver o famoso jardim da casa do Rio Vermelho do Jorge Amado. Particularmente não gosto dele, mas, sempre pensei em ir falar com a Zélia, ela me parece ser uma velhinha gente boa. Gostaria de chegar lá e dar um abraço nela. Nunca fui e sei que nunca irei, apesar de achar que eles moram no Rio de Janeiro. Acabo lembrando que eles já morreram. Uma pena. Já fui ao banheiro várias vezes, meu quarto é uma suíte, e puxei a descarga um monte de vezes com força só pra sacanear. Tô muito doido.
04h e 37min.
Finalmente consegui sair do quarto, mas não saí de casa. Fui até o barzinho de seu Menelau e surrupiei uma garrafa de uísque dele. Deixei a que eu tinha bebido cheia de guaraná no lugar. Não vai dar tempo do velho descobrir a troca. Subo de novo. O pó acabou. Tomo dois comprimidos de lexotan junto com o uísque. Deito na cama. Depois de muito revirar acabo cochilando.
06h e 45min.
O despertador toca, levanto e jogo ele, ainda tocando, pela janela do meu quarto.
07h e 23min.
Sou tirado do meu sono por batidas insistentes na porta. Resmungo e me viro para o outro lado. As batidas continuam cada vez mais fortes. Levanto e vou até a porta. Percebo que estou com a mesma roupa do dia anterior inclusive com os sapatos. Pergunto quem é.
- Sou eu inseto, o Antônio. Antônio é o filho mais velho de dona Cida e do seu Menelau. Ele é médico cardiologista. Esqueci que dia de terça-feira ele chega cedo aqui por causa do Platão que ele dá no hospital aqui próximo. Ele é um completo idiota e costumeiramente me chama de inseto. Isso me deixa fulo da vida, me deixa de mau humor.
- O que você quer?
- Quero falar com você inseto. Vai ser a última vez que ele me chama de inseto. Pego o tresoitão, escondo em minhas costas, segurando ele com a minha mão direita virada pra trás. O trabuco tá tão grande que a ponta do silenciador fica roçando minha nuca. Com a mão esquerda abro a porta. Ele é muito alto, deve ter uns dois metros de altura, assim como seus irmãos e seu Menelau. São todos muito altos. Ele olha de cima pra baixo pra mim com cara de desdém e diz:
- Oh seu inseto, minha mãe já não disse a você pra não dar descarga à noite, pra que ela não acorde. Ela acabou de me reclamar que não conseguiu dormir por sua causa
- Você me acordou por causa disso?
- Você acha que não é um bom motivo, inseto?
- Dá pra parar de me chamar de inseto. Falo entre dentes, quase cuspindo na sua imaculada roupa branca.
- Mas se você é um inseto, inseto. Tiro o canhão de trás de minhas costas e deixo a mostra. Ele se assusta e fala gaguejando:
- Que, que, isso Plí, Plí, Plínio. Interessante como ele rapidinho lembrou meu nome. Miro a arma pro seu saco, Puf. Quase não saiu barulho nenhum da arma. O silenciador é dos bons. O problema é que ele começou a gritar desesperado. Um grito afetado, fino, afeminado. Não contive uma risada. E, Puf, dei outro tiro, desta vez na cabeça. Seu corpanzil cai sobre meus pés. Com os gritos que ele deu seu Menelau veio correndo subindo as escadas. Quando me viu com a arma e o corpo do seu filho querido no chão ele gritou:
- Oh meu Deus o que você fez?
- Bom dia seu Menelau, olha aqui a cabeça do meu pau. E, Puf, acertei um tirambaço na cabeçorra do velho que caiu pra trás, rolando pelas escadas. Norma abriu a porta do seu quarto e botou a cabeça pra fora para saber o que estava acontecendo. Puf, um tiro certeiro em sua cabeça. Ela caiu dentro do quarto fechando a porta na queda. Dei dos passos pra frente, fiquei bem no começo da escada e dei um tiro na maçaneta do quarto das devassas lésbicas do outro lado do curto corredor. Elas saíram de lá espantadas com o barulho. Elas usavam baby-dolls curtinhos e transparentes, que dava pra ver as calcinhas minúsculas que elas usavam. Estranhei aquilo, sempre achei que esse tipo de mulher dormisse com shorts, ou pijamas masculinos, pensava que elas usassem até cuecas, mas não, elas estavam realmente atraentes. Puf, Puf, um tiro na cabeça de cada uma. Elas caíram no corredor. Desci as escadas e dona Cida passou por mim correndo, chorando e gritando. Mirei o revólver pra sua cabeça, contudo, não atirei. Eu gostava daquela velhinha. Apesar dela ser sovina, ela era verdadeira. Nunca fingiu ser boazinha comigo e falava sempre a verdade, sem rodeios. Sempre me respeitou e nunca foi falsa comigo. Deixei que corresse. Ouvi quando ela se trancou no quarto e gritou no telefone com alguém, - provavelmente com um policial -, que um maluco tinha matado todo mundo na casa dela. Fiquei na sala sozinho. Sentei na cadeira de balanço de dona Cida, estiquei minhas pernas para o sofá e liguei a televisão com o controle remoto. Tava passando a Liga da Justiça, meu desenho favorito. Sempre sonhei em ser um super-herói.
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