O Clube da Morte - Cap. I, terceiro ato.
Capítulo I, terceiro ato – As sombras podem matar.
- O que aconteceu ontem não pode se repetir, eu não aguento mais emoções como aquela e além do mais, eu tenho prova de história.
Eu acho que não! - Um sorriso tenso se instalou no rosto do homem vendado ao pular por cima de Jaziel, que acompanhou o trajeto e a leveza do seu movimento com a cabeça, e pousar ao lado da carta – Pegue-a!
Jaziel abaixou-se para pegar a carta no chão quando uma fenda na parede do banheiro foi rompida, surgindo a cabeça de uma criatura gigante, que não tinha olhos, braços, nem pernas, apenas dentes afiados, cabeça e tronco, descortinando ao que parecia uma cobra demoníaca de mais ou menos uns cinco metros, negra como as duas criaturas da noite anterior. O barulho ensurdecedor da parede abrindo ecoou por toda escola.
- Droga, tarde demais, corra para o pátio enquanto eu tento segurá-lo! - Gritou o homem vendado com sua voz agora nenhum pouco delicada. Jaziel ao seu turno iniciou uma corrida alucinada, e quase foi surpreendido pelo monstro que se esticou tentando abocanhá-lo por trás na sequência, não fosse o homem que projetou o seu corpo para frente daqueles dentes vorazes, segurando com as duas mãos a boca que cobria todo o seu corpo e que não se importaria de também estraçalhá-lo.
- Jaziel não olhou mais para trás e atravessou os corredores do colégio o mais rápido que seu fôlego e vigor físico – que a bem da verdade, não era dos mais atléticos – permitiam. Os alunos em peso desceram as escadas para ver o motivo daquele barulho, todos se depararam com um buraco que abria a parede do banheiro do teto ao chão, e Jaziel correndo.
- O que aconteceu aqui? - Perguntou o diretor estatelado, ao sair de sua sala, a uma aluna que estava no corredor.
Eu acho que aquele menino do segundo ano explodiu uma bomba no banheiro! - Respondeu apontando para Jaziel que dobrava a esquina do corredor para o pátio.
- Droga, droga, droga – agachou-se para recuperar o fôlego já no pátio – como eu uso essa porcaria de carta? - perguntava-se aflito segurando-a. De repente, a sentiu tremer. - deve ser isso, é o momento de usá-la! - apontou a carta para o céu. Concentrou-se e pensou com toda força que ainda lhe restara; por favor, não falhe. Não pôde ouvir mais nada naquele momento, apenas o seu coração disparado. O corpo do homem vendado surgiu cortando o céu do pátio, arremessado em direção a parede da cantina, que se encontrava um pouco atrás de Jaziel, esboçando cerca de oito metros de lançamento. Para o desespero do menino, o homem bateu na parede e caiu desacordado. A criatura satânica gigante surgiu destruindo a quina do prédio na esquina do corredor para o pátio. Jaziel respirou fundo, e enquanto a boca monstruosa lançou-se em sua direção, jogou a carta no chão. Scarlate emergiu com sua majestosa espada.
Vortex Scarlate! - Era apenas um dos dois comandos que havia escutado na noite anterior, só restou ao pobre menino torcer para que fosse o suficiente, ou aquele seria o seu fim.
Scarlate não precisou de grandes movimentos, conquanto sua sagacidade lhe permitiu executar o mais sútil e estratégico deles. A frente de Jaziel e de frente para a enorme criatura, Scarlate agachou-se o máximo possível, como quem permitiria o ataque da cobra deliberadamente. Jaziel chegou a achar mesmo que morreria. Quando o hálito de carniça do monstro já podia ser sentido pelo menino, Scarlate firmou uma base com as pernas, segurou com toda a força o cabo de sua espada e levantou a lâmina na direção da cabeça bestial, que já estava próxima demais para conseguir desviar. E foi assim que o pátio ficou coberto de tripas, Scarlate rasgou o monstro em todo o seu cumprimento, da cabeça à calda, partindo-o completamente ao meio. De tão brutal que fora o ataque da fera, o seu corpo atravessou bipartido o perímetro de Jaziel - sua cabeça e corpo, percorreram partidos de três a quatro metros ainda depois de onde Jaziel estagnara. Scarlate mais uma vez executou o seu pequeno ritual de honra a Jaziel, e recolheu-se à carta. O homem vendado permaneceu desacordado. O corpo e restos da criatura se desfizeram em fumaça. Um pedaço da quina da parede destruída do prédio de esquina do pátio que ameaçava cair, por fim caiu. Jaziel dessa vez manteve-se firme, talvez estivesse começando a se acostumar com tudo aquilo. De repente se deu conta da multidão de pessoas que estavam observando aquela loucura. Elas, porém, não enxergavam o que Jaziel enxergava, e viram apenas um menino com um comportamento esquizofrênico, e pedaços da escola simplesmente explodindo, se partindo, ruindo. Jaziel quis ter sido devorado pela criatura quando ouviu o barulho da sirene de uma viatura policial.
(...)
Jaziel estava sentado numa poltrona na sala do diretor, - esperando os policiais que o levariam a delegacia conversarem com Reitor da escola, enquanto a perícia apurava a causa das destruições provocadas nas paredes e estrutura da escola – quando ouviu a voz delicada já conhecida:
- Pense pelo lado bom, a prova foi adiada. - Disse o homem vendado, sentado na janela, descascando uma laranja com um canivete.
- Seu desgraçado foi você que me colocou nessa confusão! - levantou a voz Jaziel.
- Fale baixo! Apenas você é capaz de me ver, as outras pessoas vão achar que você está falando sozinho e a situação vai se tornar ainda mais delicada. E não fui eu que te coloquei nessa situação, você que encontrou Scarlate na biblioteca, inclusive eu te salvei ontem e hoje de ser devorado.
- Era para a maior emoção do meu dia ser a prova de história. - completou o menino debruçando-se sobre as pernas com as mãos nos olhos.
- Não se preocupe, o Clube está cuidando do caso para te inocentar.
- Que Clube?
- Tudo bem, já passou da hora de você entender o que está acontecendo aqui – levantou-se da janela, a laranja havia sumido de sua mão, olhou fixamente Jaziel, que nesse momento já havia levantado a cabeça para ouvi-lo. - Você é um guardião das almas Jaziel.
- ARGH! COMO ASSIM? OO' - Revirou-se na poltrona com as pernas para cima.
- No minuto em que você encostou na Scarlate, o seu destino foi selado. Ninguém mais pode vê-la, além de você, e nós seres espirituais.
- E o que isso significa?
- Que a partir de agora o combate aos demônios que tentam devorar as almas mortais, depende também de você.
- Também?
- Sim, você não é o único. Existe uma organização chamada “Clube da Morte”, da qual eu faço parte, que é especializada em caçar demônios.
- E por que existem esses demônios?
- Eles são criados a partir da maldade humana. Quando alguém se corrompe, um demônio nasce das sombras com uma fome descomunal de almas.
- E esses demônios comem as almas de pessoas específicas?
- Não, não há critério. Podem devorar as almas dos humanos que os criaram, ou não. Geralmente tentam atacar o primeiro que veem. Existem demônios por todo o mundo nascendo nesse exato minuto. Felizmente o Clube da Morte é relativamente grande, e vários guardiões lutam para manter o universo mortal e espiritual em harmonia. Claro que nem sempre as coisas saem como a gente quer, como hoje.
- Você é um guardião?
- Não, eu sou um mentor. Apenas um ser humano pode ser um guardião. Místicos, os seres que se abrigam nas cartas sagradas, como a Scarlate, só são despertados por humanos. Scarlate dormia há milênios dentro da carta 77, essa que você terá eternamente em seu bolso, não importa qual roupa vista, ela se materializará próximo a você automaticamente. O que significa que não há como se desfazer dela, pelo menos, em regra.
- E se eu estiver sem roupa? XD
- Ora seu miserável, não ouse suscitar a majestosa Scarlate nu! Seria uma terrível falta de respeito!
- Digo, se ela se materializa sozinha nos bolsos das roupas que eu visto, onde ela se materializaria se eu não vestisse uma? - Alguns segundos de silêncio se passaram, até que Jaziel percebeu a expressão irônica do homem – COMO É QUE É? EU NUNCA MAIS TIRO A CALÇA! - O vendado caiu na gargalhada.
- Não seja tolo, ela se materializa na sua mão! - Um evidente alívio se instalou no rosto de Jaziel.
- Você ainda não se apresentou. Por qual nome posso chamá-lo?
- Ah sim, perdão jovem mortal, como pude ser tão indelicado. Você pode me chamar de Lord Supremo! - Nesse instante um pequeno corpo flutuante se materializou ao lado da cabeça do homem vendado com um pequeno porrete na mão, revelando uma menina de cabelos ruivos e sardas, com seus aparentes quarenta e cinco centímetros de altura, vestindo um maiô preto com dois furos nas costas, por onde saiam duas asinhas de morcego que batiam esforçadas a mantê-la no ar.
- Como ousa proferir tamanha falácia ao nosso novo jovem guardião seu salafrário – desferiu a pequena fadinha uma porretada na cabeça do vendado.
- Ai sua miserável!!
- Perdão pelas insanidades do seu lamentável mentor. Chame-o apenas pelo nome: Abadir.
- T-t-tudo b-bem. - Respondeu o confuso Jaziel – o meu nome é Ja...
- Nós sabemos! - Responderam em coro uníssono – Sabemos tudo sobre as pessoas apenas de olhá-las – completou a menina – e meu nome é Adisah, muito prazer. ^^
- Muito prazer.
- Então agora eu sou um membro do tal Clube da Morte?
- Ainda não, uma cerimônia de batismo deverá ocorrer em pouco tempo, mas como estamos em guerra, suas funções já foram-lhe entregue. Eu vigiava a biblioteca desde que Scarlate acidentalmente foi parar naquela prateleira. Sempre que um ser humano fora dos padrões de um guardião se aproximava, eu tentava despistá-lo, ou espantá-lo dali, pois se encostasse na carta, ele despertaria o Místico Scarlate, e aí teria que ser ele mesmo. Certa vez até tive simular ser um fantasma para espantar um senhor. - explicou divertido, Abadir.
- Não é todo ser humano que tem o perfil para ser um guardião?
- Definitivamente não. Eu e Adisah, que faz parte da minha turma no clube, estávamos procurando alguém com o seu perfil há tempo.
- Quando o vi aquela noite, soube de todas as suas características: observador, reservado, inteligente e principalmente...
- Oh Abadir, não diga, deixemo-lo apenas com a parte boa.
- Não, pode dizer.
- Principalmente solitário. Precisamos de pessoas sozinhas para desenvolverem a função de guardião, por que sua rotina e hábitos se tornam diferentes demais caçando demônios. Por isso eu permiti que você se aproximasse da carta. - Um traço de tristeza franca percorreu o rosto de Jaziel.
- Tá vendo tadinho, não queria te ver chateado. - Aproximou-se a fadinha acariciando sua cabeça.
- Não tem problema, agora a segurança das pessoas depende mim – seus olhos chegaram a brilhar – e apenas isso importa agora.
Bravo. - disse a meia voz, concordando com a cabeça Obadir.
- Mais uma pergunta Obadir, por que disso tudo?
- Como assim?
- Por que existem os demônios? Quem os criou?
- Essa é a pergunta fundamental sobre a centelha da vida. Quem está por trás do palco da existência jamais saberemos, nem mesmo nós mentores sabemos quem nos criou. Mas há alguém por trás dos demônios.
- Quem?
- Um ser chamado Ceifador. Uma criatura mais maligna que os próprios demônios, que aproveita da fome desses seres caídos para fins particulares.
- Um ser ainda pior que os demônios?
- Sim, muito pior. Ele manipula horda de demônios para a conclusão de missões de interesses particulares.
- E o que é esse tal de Ceifador?
- Não sabemos. Dizem que é uma força onipresente nas sombras, que é capaz de comandar todos os demônios em todos os lugares escuros do universo.
- A sua existência é comprovada?
- Não. Alguns mentores e guardiões garantem tê-lo visto, mas tudo o que temos são relatos.
- E quais seriam esses interesses particulares do Ceifador?
- Então, partimos do princípio que os demônios não são unidos, e a maior parte deles nem inteligentes. Apesar disso, existem focos de ataques ensaiados incríveis demais para serem obra da mente de um demônio. Somamos esses fatos aos relatos da existência de um ser ainda mais poderoso existente nas sombras, e concluímos que ele só poderia estar manipulando essas bestas para a consecução de um jogo particular.
- Que coisa terrível.
- E fica pior – acrescentou Adisah – estima-se que o Ceifador esteja presente em todos os lugares onde há ausência de luz, esteja lá um demônio ou não. Então toda vez que passamos em um lugar escuro, estamos em tese, sob ameaça.
(Continua no Capítulo I, terceiro ato – segunda parte)
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