O Clube da Morte - Cap. I, primeiro ato
Capítulo I, primeiro ato – As sombras podem matar
Jaziel espreguiçou a coluna e aconchegou-se na cadeira depois de esfregar os olhos e checar se alguém, pela mais inefável fatalidade do destino, estava vindo e concluir que não estava. Pernoitava na biblioteca municipal de Santa Tereza – após invadi-la - estudando para a prova de história que teria no dia seguinte. Calma, antes que você condene o seu comportamento marginal, saiba que não fora cometido a troco de nada; em seu ingênuo plano, alugaria os livros necessários e estudaria em casa, mas na tentativa de concluí-lo, restou-lhe negado o pedido de aluguel, uma vez que seu amigo Miguel, o mais condenável dos seres viventes, havia pegado em seu nome dois livros semanas atrás e ainda não os entregara. Depois de algumas injúrias e maldições proferidas ao vento, e algumas tentativas fracassadas de ligar para o celular de Miguel, perfez mentalmente um caminho possível para uma invasão à biblioteca quando todos estivessem dormindo. E é da biblioteca de madrugada que partimos, quando toda essa loucura começou.
Jaziel precisava de mais um livro que tratasse pormenorizadamente a história das Américas. Será mesmo que precisava? Mais algumas folheadas nos dois livros à sua frente e, sim, precisava. Andou até a enorme estante que abrigava os livros acadêmicos de história. Daquele ponto, a lua que o observava por entre a imensa janela que se mantinha no fim do corredor, adornava aquele lugar com uma obscuridade aconchegante. Numa das prateleiras encontrou “O guia da história das Américas”, parecia perfeito. Não percebeu logo que aconteceu, seus olhos estavam fitos num ponto fixo qualquer, mas a sútil movimentação no canto de seus olhos foi registrada inconscientemente. Espera aí, eu vi alguma coisa se mexendo, voltou os olhos rapidamente, tornando o que era apenas um detalhe-do-canto-da-visão, o seu foco principal. Uma carta, no chão, que provavelmente estava entre o livro puxado e outro de capa vinho, e no movimento, foi igualmente puxada, cortando o ar rumo ao chão.
Do lado virado para cima, havia o desenho de uma menina de saia rodada, blusa e corpete pretos, cabelos e olhos da mesma cor, portando uma espada duas vezes, no mínimo, o seu tamanho. No rodapé um nome; Scarlate. Se agachou para pegar a carta, do outro lado havia a estampa de dois anjinhos, verticalmente opostos, de expressões frias. O fundo da carta, em seus dois lados, era preto. Segurou aquela carta por alguns minutos apenas admirando-a quando um pensamento despreocupado estalou sua mente; o que raios era aquela carta? De um jogo de tarô? De um jogo de RPG? Não importa, concluiu olhando para o livro em sua mão esquerda, lembrando-se do motivo pelo qual estava ali. Enfiou a carta no bolso, voltou para a mesa e recomeçou os estudos. Do telhado de uma casa próxima, dois pequenos vultos de olhos vermelhos sangue pareciam observá-lo fixamente. Quando perceberam que o rapaz havia pegado a carta, rasgaram o céu com um grunhido agudo agourento monstruoso, pularam em direção ao chão dando mortais no ar, e iniciaram uma corrida em direção à biblioteca numa velocidade impossível aos seres humanos, não pareciam se importar com a parede da construção.
Virou a terceira página aliviado de ter encontrado um livro tão bom, Jaziel estava bem cansado às três horas da manhã, mas definitivamente não podia se dar ao luxo de ir mal naquela prova e perder o seu posto de aluno com invictas notas boas. Estranhamente, naquele momento a carta em seu bolso pareceu tremer. Alguns segundos depois, e Jaziel teve certeza de ter ouvido passos percorrendo o salão da biblioteca. Num reflexo instintivo, fechou os livros e tentou se esconder atrás da última estante antes das mesas de estudo, que naquele ângulo de visão, calculou impossível ser visto por quem entrava pela porta principal. O engraçado é que a porta principal rangia absurdamente quando aberta, e Jaziel não se lembrava de ouvir nada, não era possível que estivesse tão concentrado a ponto de não ouvir um barulho daqueles. Estava agachado, atrás da última estante da biblioteca, com os três livros contra o peito, torcendo para que quem quer que estivesse entrado na biblioteca, fosse embora rápido. De repente a estante ao seu lado tombou, tentando esmagá-lo, não houve tempo para pensar, projetou o seu corpo para frente da forma como dava daquela posição. O barulho da madeira batendo no chão com tanta força acordou os vizinhos da casa ao lado. Jaziel deitado centímetros a frente da estante caída, estava com as pernas bambas de adrenalina, seu coração disparou como que bombeando para uma flagrante fuga. Levantou-se e olhou para o salão, simplesmente não havia mais ninguém por ali que não fosse ele; - mas que merda é essa? Pensou com os olhos arregalados. Olhos que foram piscados com muita força para acreditarem no que estavam vendo naquele segundo, o corpo de duas criaturinhas chifrudas e negras como a noite se formaram emergindo do chão, pareciam sorrir sarcasticamente do seu medo.
- Santa mãe de Deus! Crianças do capeta! - Gritou sem saber para onde correr, encurralado no fim da biblioteca.
- A carta, use a carta. - A voz delicada que o aconselhou vinha do seu lado esquerdo, onde havia se materializado um homem alto de sobretudo marrom, faixas brancas na mão, cabelos longos brancos e uma venda nos olhos. Como surgira bem ali do seu lado? Como enxergava com aquela venda nos olhos?
- Amedrontado, sem voz, forçou até sair trêmula uma pergunta:
- Como eu uso?
- Pegue-a, aponte para o céu e jogue-a no chão. E foi o que fez. Da carta emergiu a menina estampada em seu lado superior, que com um olhar sombrio fitou Jaziel protegendo-o com sua espada majestosa, e por entre os ombros encarou o menino com os seus olhos negros fúnebres, esperando por uma ordem.
- Mata essas coisas aí na sua frente! - Disse desajeitado. A menina manteve-se parada.
- Vortex Scarlate! - Gritou o homem apontando para as duas criaturinhas diabólicas. Dessa vez a menina desferiu dois golpes perfeitamente ensaiados, primeiro puxou na diagonal a lâmina da enorme espada de baixo para a cima, acertando a cabeça da criatura à esquerda que se dissipou como fumaça, depois despejou a mesma lâmina de cima para baixo em direção a criatura à direita, que dessa vez pulou desviando da espadada, passando por cima da menina, alcançando o perímetro de Jaziel. Agora o monstro estava entre a menina e o desesperado Jaziel que preparava-se para implorar por misericórdia.
- Tremendum Scarlate! - Adiantou-se o homem. A menina executou o movimento mais primoroso e artisticamente complexo que os olhos de Jaziel presenciaram até então, nem mesmo os maiores ginastas que havia visto na televisão acertariam uma manobra daquelas. A menina puxou um mortal para trás, desferindo uma espadada ainda de cabeça para baixo em direção à criatura que estava antes em suas costas, e agora à sua frente. A criatura conseguiu desviar de costas, apenas sentindo o fatiar do ar pela lâmina da espada, e pulou em direção ao rosto da menina que flutuava de ponta cabeça. Aquela menina era espetacular mesmo, concluiu Jaziel, uma vez que ela já havia calculado o movimento do monstro, e como quem esperava a sua vez para executar um movimento de um script ensaiado, largou uma das mãos do punho da espada, desferiu-lhe uma cotovelada na cabeça, e ainda no ar, enquanto a criatura caia, rodopiou segurando a espada com a outra mão, rasgando-lhe o tronco. Dois monstros caíram mortos na frente de Jaziel, um que era só pernas e o início de um tronco, e o outro que era peitoral, braços e cabeça. Ambos se desfizeram como fumaça no ar.
- Prodigioso, disse, de olhos arregalados, em estado de choque, Jaziel. A menina abaixou a cabeça num gesto de reverência, e submergiu para dentro da carta, diante dos seus olhos, que insistiam em não acreditar em toda aquela loucura. A adrenalina que o mantinha em sã consciência começou a passar, suas pernas bambearam, seu rosto foi de encontro ao chão e sua vista escureceu.