O tormento - final
Quase não havia movimentação àquela hora da madrugada no Píer 5 da margem esquerda do porto de Santos. Uma densa névoa limitava em muito a visibilidade naquela parte abandonada do cais e o silêncio só era interrompido pelo som distante da buzina de algum navio. Três homens de calças jeans, gorros e jaquetas de couro aguardavam algo no Píer. Fumavam. Conversavam sobre o sucesso da operação e a recompensa que novamente levariam para casa. Um deles desviou o olhar para o mar e logo surgiram dois faróis. O barulho do motor foi ficando mais intenso. Em poucos instantes, a lancha já estava atracada. Dela apearam dois sujeitos asiáticos, barbas por fazer, também de jaquetas e gorros. Um deles ordenou:
_Rápido! Peguem as caixas! Não temos tempo a perder!
Enquanto os quatro homens retiravam as estranhas caixas da embarcação, aquele que parecia ser o líder fazia anotações. Colocaram-nas numa espécie de carregador com rodinhas, aliás, em três. Cada um com quatro caixas e deslocaram-se rumo a um armazém portuário que parecia abandonado.
Por uma das ventanas laterais, dois homens observavam tudo o que acontecia lá dentro. Eles estavam armados e pareciam prestes a agir a qualquer momento. A iluminação era péssima e o galpão, sombrio. Teias de aranha e ruídos de ratos confundiam-se entre os caixotes que provavelmente não eram usados há décadas.
Os homens se aproximaram de um container frigorifico. Era desses que transportavam carne para outros continentes. Depois de deslacrar e abrir o container, um sujeito asiático subiu no reservatório e ordenou que lhe trouxessem as caixas. Havia um espaço lá dentro reservado só para elas. Fazia parte de um antigo acordo entre Sr. Ching e a administração corrupta do porto.
_Parados! Nem mais um movimento! Quero ver suas mãos acima da cabeça! - gritou o detetive Viana, apontando sua nove milímetros para os facínoras, após invadir o local. Atrás dele, um rapaz, alto, magro, de óculos, também armado, dava-lhe cobertura.
_Joguem suas armas no chão! Virem-se de costas pra cá com as mãos sobre a cabeça! E acreditem, qualquer gracinha, eu estouro os seus miolos! - os meliantes obedeceram imediatamente. Um deles disse:
_Que é isso, senhor! Vamos conversar! Nosso chefe está chegando! É melhor ficar do nosso lado! Ele não é o tipo de homem que gosta de perder...
_Cale a boca, seu rato chinês! Quem está chegando daqui a pouco são os meus amigos federais! - bradou o destemido policial. E emendou para o rapaz atrás dele:
_Vá até lá e abra as caixas!
O rapaz abeirou-se das caixas e começou a abri-las. Um reflexo rubro surgiu nas lentes de seus óculos e, franzindo as sobrancelhas, gritou:
_Estão aqui, André! Estão aqui!
Começou então a descerrar uma a uma, enquanto esvaziava seu conteúdo. O detetive não acreditava no que seus olhos viam: fígados, corações, rins, pulmões, intestinos... Tudo ali diante deles!
_Vocês estão presos por assassinato e tráfico internacional de órgãos
humanos!
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Há mais de dez anos, a quadrilha de Sr. Ching encontrara nesse ramo sua melhor oportunidade de ganhar dinheiro. Desde que a descoberta de um jovem e anônimo cientista chinês chegou ao conhecimento de Sr. Ching e acabou com o principal empecilho do escuso negócio: o curtíssimo tempo entre a extração do órgão e o transplante. O jovem pesquisador descobrira uma bio-substância, produzida por uma rara planta chinesa, que retardava o processo de morte do órgão, desde que houvesse uma refrigeração adequada. Como Sr. Ching queria exclusividade no negócio, matou o pobre homem logo após ele concluir sua última invenção: as caixas térmicas com temperaturas ajustáveis, próprias para o ilícito fim. Pronto! Um coração que, sem essa tecnologia, não poderia ficar mais que quatro horas sem ser transplantado, agora pode aguardar até trinta dias. Fígado e rins, até três meses e assim por diante. Mercado para isso não faltava, pois as doenças não escolhem raça, cor, nacionalidade ou classe social. Sr. Ching alimentava uma verdadeira rede internacional de tráfico de órgãos, onde médicos e hospitais clandestinos, por sua vez, realimentavam os cofres do mafioso chinês. Umas das primeiras vítimas dessa rede sanguinolenta foram os pais de Drim, naquela fatídica noite de verão em Juquehy.
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Quando o detetive Viana preparava-se para algemar os bandidos, ouviu-se um estampido. A perna do policial fora atingida. Sr. Ching acabara de chegar e disparou contra Viana. Aproveitando-se da situação, os homens saltaram no chão em busca de suas armas e o tiroteio foi geral. Quando a fumaça baixou, os cinco bandidos estavam mortos, assim como o detetive. No centro do galpão, sob a mira de um jovem rapaz, um senhor chinês, grisalho, levemente obeso, terno e chapéu pretos, de joelhos e com uma arma descarregada na mão, pedia clemência:
_Por favor, não me mate! Tenho mulher e filhos! Por favor! A gente pode resolver isso! Pode levar essa maleta aqui, olha! Dá pra resolver sua vida!
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Desde que percebeu não poder mais viver em paz até que fosse atrás do “tormento” e o confrontasse, Drim nunca se imaginara diante de tal situação. Depois daquela noite de reflexão no quarto da pensão, ele sabia que teria de fazê-lo, mas ainda não estava preparado. Continuou estudando, formou-se e conheceu uma pessoa durante a faculdade que seria determinante para a realização seus planos: André Viana. Os dois se formaram em odontologia, mas Viana, logo que deixou a faculdade, ingressou-se por mérito na Polícia Federal. E desde que soube do "tormento", prontificou-se a ajudar o amigo. Começaram a investigar juntos, Drim obteve porte de arma e tornou-se um exímio atirador. Durante os últimos meses, acompanharam a quadrilha de Sr. Ching até que puderam "dar o bote". Agora, estava ali, diante de seus olhos, aquele que levara a vida de seus pais. Que os estripara, como se fossem animais, apenas para alimentar sua estúpida cobiça! Que lhe roubara o gosto pela vida e o transformara em um ser-humano doente! E ainda há pouco, matara seu melhor amigo! Ah, isso era muito mais do que Drim sempre desejou para deleitar-se com o gélido e amargo gosto moroso da vingança. O causador de todo o mal de sua vida, desde sua infância até aquele momento, estava bem ali a sua frente. O imponente era agora impotente.
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_Cale a boca, velho imundo! Nenhum dinheiro do mundo poderia resolver minha vida! - a voz de Drim estava irreconhecível. Era como se estivesse possuído.
Colocou o velho sobre uma mesa enferrujada que achara nos fundos do galpão e atou suas mãos e seus pés aos vértices, de modo que pernas e braços ficassem meio abertos, lembrando “O Homem Vitruviano”, de Leonardo da Vinci. Com uma lanterna entre os dentes, começou a despi-lo. Sua feição era terrível e Sr. Ching começou a se desesperar:
_O que está pensando em fazer, rapaz? Pelo amor de Deus! Pare!
Drim pegou alguns nacos de vidro e metal, que se encontravam nos flancos do velho depósito e dirigiu-se à mesa. Estava prestes a tornar real um antigo pesadelo que o atormentava. Começou a rasgar sem piedade o abdome do velho, da cintura ao externo, passando pelo umbigo. Sr. Ching urrava de dor e desespero:
_Não!! Isso não!! Não sem anestesia...
_Cale a boca, seu desgraçado! Agora, você só vai ouvir! - vociferou o rapaz, metendo seus braços no cruento talho enquanto descrevia, com detalhes, o dia em que encontrara os pais mortos naquele quarto em Juquehy. Começou a eviscerá-lo vivo. Drim bramia de ódio ao expressar o amor que sentia pelos pais. Sr. Ching se debatia, tentava gritar, mas a dor era tão excruciante, que não lhe saía a voz. Nos seus últimos instantes de agonia, ainda teve forças para ouvir Drim pormenorizar os anos de terror e solidão que passara no hospício, o abandono da família e todos os "infernos" que o "tormento" lhe trouxera.
_Tudo por sua causa, obra do mal! Escória da escória! Morra! - Drim estava desfigurado, roupa e cabelos molhados, coração perto dos duzentos, já sem os óculos e tremendo muito. Sabia que, ao matá-lo, estaria exterminando também uma perversa sinfilia que disseminava "tormentos" para a sociedade. Por isso, não sentia nenhum tipo de comiseração.
Com os olhos e a língua pinchados pra fora, o chinês desfalecia em indescritível agonia. Já se tinha sucumbido, quando Drim estracinhou seu fígado com os próprios dentes. Exausto, escorou-se à parede e tombou ofegante.
Quando os federais chegaram, ele ainda estava lá, sentado no chão, todo ensanguentado, rosto e lábios escarlates e um sorriso morbígero. Nem ligou quando foi algemado e interrogado. Tudo parecia distorcido, distante, em câmera lenta. Só queria entender se vencera finalmente o "tormento" ou se fora vencido por ele.
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FIM
"A saudade é o pior tormento, é pior do que o esquecimento."
Chico Buarque