Mitos do Passado
O que irei contar realmente aconteceu comigo. De inicio achei que era apenas um mito, uma estória para fazer curiosos se afastarem. Hoje uso o que me resta de esperança para quem possa encontrar isto tome consciência de que mitos podem ser verdadeiros.
Pelo que me lembro, me chamo Thomas Cruz, brasileiro, mas com descendência espanhola. Minha família fugiu da Europa quando a Alemanha declarou a 2ª Guerra Mundial. Nos estabelecemos em Rio de Janeiro, onde nos dedicamos a vida pesqueira. Tudo que aprendi sobre como pescar foi com meu pai, falecido Raul Cruz, grande homem.
Ao falecer na década de 80, dona Livia Cruz passou toda a responsabilidade da família para meu irmão mais velho, Juan, onde eu apenas o seguia sem questionar. Nossa especialidade era pesca em alto mar, nosso pesqueiro de porte médio era chamado de Pequena Espanha, em homenagem a nossa terra natal. Em época de temporada passávamos até seis meses em alto mar, enfrentando tempestades, alarmes falsos de uma boa pescaria, e saudades de uma companhia feminina, mas era nosso sustento, gostávamos do que fazíamos, estava no sangue.
Em 1999 minha mãe adormeceu e nunca mais acordou. Foi levada para ao lado de meu pai enquanto dormia, uma morte tranqüila. Após muita conversa com meu irmão, e por não termos filhos, muito menos uma família, decidimos voltar para a Espanha, conhecer a região onde nossa família foi criada. Vendemos tudo que tínhamos, nossa tripulação, composta por 6 homens, sem contar a mim e meu irmão, veio conosco.
- O mar é nossa vida, meu amigo. – Foi a resposta que Miguel, nosso olhos de águia. Ao subir no mastro ele era capaz de avistar cardumes a quilômetros de distância.
E os tripulantes da Pequena Espanha seguiram viagem mar adentro em direção a Espanha. Por sermos filhos de espanhóis, não teríamos problemas para conseguir um visto. Levamos, aproximadamente, três meses para chegarmos em mar espanhol, nosso pesqueiro não possuía velocidade, apenas potência. Avisamos a Marinha Espanhola do porto de Cádiz sobre nossas intenções e fomos muito bem recebidos. Atracamos para resolver problemas burocráticos de nossa embarcação e continuarmos com nosso plano.
No cais havia um oficial da Marinha nos aguardando, com seu belo uniforme branco e gravata azul com a bandeira espanhola na ponta. Ao nos ver, ele tirou o quepe, apoiou-o entre a axila esquerda e a porção superior do braço:
- Quem é o capitão da embarcação? – Perguntou, como se fosse programado para dizer isto, sem demonstrar nenhuma emoção em sua voz.
- Sou eu, Juan Cruz. - Meu irmão estendeu a mão para cumprimentar o oficial.
O oficial retribuiu o gesto.
- Sejam bem vindos ao porto de Cádiz, e a Espanha. – O oficial falou observando nosso pesqueiro. – Homenagem a nossa pátria, pelo que posso notar.
- Sim senhor. – Respondeu meu irmão.
- Poderiam me acompanhar até o escritório da Marinha? Temos que validar sua chegada ao país.
Apenas concordamos com um gesto positivo. O porto era pequeno, talvez pela cidade ser antiga, e não havia muito movimento. Alguns oficiais da marinha caminhavam, outros fumavam seus cigarros, alguns marinheiros estavam limpando seus barcos. Aquela tarde estava realmente ensolarada, e o cheiro do mar pairava pelo ar, algo que nunca cansava de sentir. Ao horizonte podíamos ver, pelo menos aparentava ser, um destróier espanhol, onde descobri que era um dos orgulhos da marinha.
Ao entrarmos em um pequeno escritório, vimos algumas secretárias digitando em seus respectivos computadores, uma estava reclamando e olhando para uma pilha de papel molhado com um líquido marrom, provavelmente café.
- Se acomodem, o oficial encarregado irá atende-los em breve. – O oficial colocou seu quepe e seguiu para uma porta, onde dava para um corredor.
Ficamos em silêncio, apreensivos. Adilson, o responsável por dobrar e soltar as redes de pesca, não parava de balançar as pernas. Com seus quase dois metros de altura e largura, o som de sua bota incomodava a todos na sala.
- Fique quieto Adilson, esta atrapalhando as moças. – Michel falou em um tom bravo, acertando um tapa no braço de Adilson, fazendo com que o elástico que prendia seu cabelo se soltasse.
Após alguns minutos, um homem com aparência de 50 anos entrou na sala pela porta da frente, ele vestia um terno militar azulado, onde víamos várias medalhas penduradas. Mesmo sem entender nada de patentes, notamos que ele era importante. As secretárias se levantaram e bateram continência para o senhor. Ele retribuiu a continência:
- Como estavam, senhoritas. – Todas voltaram aos seus afazeres.
O senhor caminhou em nossa direção, nos olhou um a um sem demonstrar nenhuma emoção.
- Sou o Capitão-de-Mar-e-Guerra Cortez. O capitão da embarcação queira me acompanhar com os documentos de seus tripulantes? – Respondeu o homem, dando as costas e seguindo para o corredor.
Meu irmão se levantou, pegou as identidades de cada um de nós e seguiu para onde o homem havia se dirigido.
O corredor não era muito longo, havia quatro portas, e em cada porta um marinheiro com um fuzil de prontidão ao lado de cada. Na porta nomes e símbolos militares. O capitão seguiu até a última porta, onde o marinheiro bateu continência, onde, aparentemente, foi ignorado. A sala era espaçosa, com troféus, fotos de grandes embarcações, e até mesmo uma espada emoldurada. A mesa aparentava ser antiga, com uma madeira muito bem alisada e preparada.
- Sente-se capitão...?
- Juan, senhor. – Ele se sentou numa cadeira extremamente confortável, onde seu estofado possuía penas para torná-la mais relaxante.
- Me chame de capitão apenas, não precisa me tratar como militar. – Cortez sorriu.
- É o nervosismo, sinto muito capitão.
- Eu entendo. Agora vamos ao que interessa, o que faz neste nosso humilde porto?
- Bem, como minha única família viva são meus tripulantes, resolvi conhecer o país onde meus pais nasceram.
- Posso saber aonde eles nasceram? – O capitão perguntou enquanto estendia a mão para olhar os documentos da tripulação.
- El Granado, capitão. Viviam de pesca.
- Cidade pequena, tranqüila. Pessoalmente, gosto de passar feriados observando o sol nascer.
- Gostaria de ter uma opinião a respeito, mas não a conheço.
- Você e seu irmão irão conhecer. Sua descendência lhes da direito a um passe livre em nosso país. Infelizmente, seus tripulantes são puramente brasileiros. Não poderão sair desta cidade sem uma autorização de nosso governo.
- Mas eles não têm para onde ir, nosso pesqueiro é onde todos moramos.
- Tente entender capitão, leis são leis. Não posso permitir que saiam desta cidade sem um visto assinado de seu governo. Mas estou deixando que aproveitem a hospitalidade de Cádiz o tempo que precisarem.
- Obrigado capitão. – Juan cumprimentou o capitão, onde recebeu os documentos dos tripulantes.
Voltando a sala principal, Juan estava com cabisbaixo, era possível notar que não havia noticias boas.
- Vamos para o barco, conto os detalhes da conversa lá. – Juan seguiu para fora sem dizer mais nada.
Nós o acompanhamos até nos aproximarmos do pesqueiro, onde ele se virou para nós e cruzou os braços.
- A conversa não foi boa, certo? – Miguel perguntou enquanto tirava um Carlton do bolso da camisa e acendia com um isqueiro antigo que havíamos encontrado em uma de nossas viagens.
- Realmente não foi como esperava. Somente eu e Thomas podemos seguir viagem. O restante não pode sair da cidade.
- Bem, a viagem ainda não foi perdida então. – Cleiton, nosso cozinheiro, sorriu, onde era possível ver que sua higiene bucal era algo inexistente.
- Concordo com o Cleiton. Vocês podem seguir, nós ficaremos por aqui. Temos dinheiro para voltar em outra embarcação, talvez até arrumar um emprego por aqui e voltarmos de avião. – Disse Michel, nosso mestre em comunicação.
- Negativo. Viemos juntos, seguiremos juntos. Vocês concordaram em abandonar tudo, não será agora que iremos chutá-los como se fossem lixo do mar. – Respondi.
Juca, nosso faxineiro, aplaudiu.
- Se este é o caso, irei procurar um lugar para passarmos alguns dias, com comida e água quente. – Miguel caminhou para longe com seu cigarro no canto da boca.
- Adilson, vá com ele. Se ele encontrar uma zona ele não irá voltar. – Respondi.
Ele concordou, colocando a mão nos bolsos de sua calça jeans e seguindo calmamente em direção a Miguel. O restante dos tripulantes subiram na Pequena Espanha e pegaram suas mochilas com seus principais pertences.
Eu e Juan nos sentamos em uma esteira abandonada, completamente enferrujada, e contemplamos o mar. Ao longínquo vimos somente a parte superior do destróier, duas fragatas de guerra atracadas na parte mais afastada do porto e alguns navios de carga vagavam pelos mares. Era um lugar tranqüilo, diferente dos portos que estávamos acostumados a nos acomodar. Poderíamos nos acostumar com a tranqüilidade, não havia a correria de marinheiros e vendedores.
E realmente nos acostumamos. Como nossa tripulação não poderia sair da cidade caso o governo brasileiro não liberasse vistos, e não pretendíamos voltar para o Brasil, ficamos em Cádiz. Conseguimos uma casa média próxima ao porto onde nos alojamos nos anos seguintes. O ramo de pescaria não era tão lucrativo como antes, naquela região os cardumes não se agrupavam, talvez pela diferença climática, ou algum outro fator, mas tínhamos dificuldade.
Passávamos parte de nosso tempo em um bar próximo ao porto, onde conhecemos alguns oficiais da marinha, alguns marinheiros, rebocadores, e até mesmo pescadores. Quando falhávamos na pescaria, ajudávamos nos consertos de máquinas e outras embarcações. Como eu e Juan éramos os únicos com visto permanente no país, abrimos umas contas bancárias para ajudarmos a tripulação. Cleiton não gostou muito da idéia, mas aceitou. Depositávamos o dinheiro de todos em uma única conta e anotávamos em um caderno quanto cada um dia havia. Evitava que tirássemos dinheiro deles.
Depois de alguns anos morando em Cádiz, e a Pequena Espanha não estava sendo tão requisitada, resolvemos seguir os conselhos dos boatos do bar, iríamos reformar a Pequena Sereia e iríamos transformá-la em um rebocador. Tínhamos a tripulação, o motor, só nos faltaria algumas peças úteis para um rebocador.
E assim o fizemos, conversamos com a Marinha Espanhola e eles nos ajudaram a transformar o velho pesqueiro e um rebocador, e devido a ajuda teríamos de ajudar em suas missões, caso fosse necessário.
Se não me engano, nossa 1ª missão foi no ano de 2004, em agosto. Um veleiro norueguês havia emitido um sinal de SOS devido a uma tempestade que os atingiu de surpresa. Por milagre, todos os 4 tripulantes estavam bem, mas o veleiro estava em péssimas condições, não sei como não tinha afundado. Mesmo o veleiro sendo maior que a Pequena Sereia, o rebocamos até o porto de abrigo de Sesimbra, em Portugal.
Os tripulantes nos agradeceram e até nos ofereceram pagamento, aceitamos sorrindo.
Não parecia ser um trabalho difícil, bastava ser paciente e torcer para que nada extremamente ruim acontecesse. Algumas missões eram trágicas, não havia sobreviventes, alguns faleciam, outras não passava de um alarme falso, assim achávamos.
Em 2006 o Capitão Cortez chamou a tripulação inteira da Pequena Espanha em seu escritório:
- Sentem-se, cavalheiros. Em primeiro lugar, agradeço a todos pelo ótimo serviço que vocês estão desempenhando.
- Obrigado, capitão. – Juan disse.
- Os chamei aqui pois tenho um pedido a fazer. – Nós nos olhamos com certa desconfiança. – O que acham de prestar serviços a marinha espanhola?
- Capitão? – Perguntei.
- Nossa marinha não é tão grandiosa como a inglesa, nos falta recursos para muitas missões, e vocês possuem um ótimo rebocador. Precisamos de uma embarcação deste porte em algumas missões.
- Não iremos precisar de armas, certo? – Nikolas perguntou apreensivo , um ex-fuzileiro naval que havia desistido de tudo ao disparar acidentalmente em um civil. Era nosso faz tudo no barco, nunca reclamava de nada.
- Não, não. Apenas auxiliar em missões de resgate com o rebocador. Nada mais. – Nikolas sorriu.
- Bem, aceitamos de bom grado, capitão. – Juan respondeu.
O capitão Cortez pegou seu telefone e falou com alguém.
- Eles aceitaram, peguem os equipamentos e comecem a instalar na Pequena Espanha.
- Equipamentos? – Perguntei.
- Sejam bem vindos a Marinha Espanhola. Tomei a liberdade de aprimorar o sistema de navegação, vocês irão receber um sonar e o emblema de nosso país. A partir de hoje, todos podem trafegar em nosso país sem nenhuma restrição. – Ele sorriu.
Não conseguimos conter a alegria, nos abraçamos. Miguel bateu continência, como se fosse um verdadeiro militar para o capitão, que retribuiu o gesto.
Mas este foi nosso maior erro, ter aceitado a proposta.
- Aconselho que ajudem no melhoramento. Amanhã já terão sua primeira missão.
E nos apressamos para o porto.
Havia 8 marinheiros nos esperando. Eles bateram continência ao nos ver.
- Permissão para subir a bordo, capitão. – Falaram olhando para Juan.
- Permissão concedida.
Levamos a tarde inteira para instalar os equipamentos. Miguel ficou o tempo inteiro conversando com um dos marinheiros a respeito do sonar. Parecia entender perfeitamente como funcionava. Juca ficou no lado de fora, ajudando a pintar o brasão espanhol abaixo do nome do barco. Adilson ajudava a melhorar o motor com outros dois marinheiros. Nossa Pequena Espanha estava recebendo uma bela tarde de maquiagens e adornos. 16 de março de 2006, o dia que a Pequena Espanha se tornou a Imperatriz.
No dia seguinte, recebemos nossa missão. Iríamos responder ao Primeiro-tenente, ou Alferez-de-navio na Espanha, ele comandava o Navio-patrula Lady. Além de nossa embarcação, a Fragata Epifania iria acompanhar na missão, que era simples. Encontrar o Transatlântico Perola que havia emitido um SOS e desapareceu dos radares. Sua última transmissão foi próximo da ilha Madeira.
Lady nos guiava, por ter equipamentos de navegação melhor, enquanto Epifania seguia atrás de nós, como se fossemos uma carga valiosa. Mantínhamos comunicação constante entre os capitães das embarcações.
- Será que iremos conseguir rebocar um transatlântico? Eles são colossos dos mares! – Indagou Michel para mim.
- Bem, acho que a idéia é primeiro avaliar as condições da embarcação, se necessário rebocar, há dois navios de guerra, podemos utilizá-los e rebocar em conjunto. – Respondi.
- Esperto, não tinha pensado nisso. – Juca falou enquanto mascava um pedaço de fumo, escorrendo um líquido escuro do canto de sua boca.
- É por isso que nós somos os responsáveis por vocês, e limpe essa boca Juca. – Juan falou, sem tirar os olhos do leme.
- Capitão, captei algo no sonar. É grande. – Miguel falou, cortando completamente a conversa aleatória. Juan pegou o comunicador e falou o Alferez.
- Vocês também captaram?
- Captamos, iremos seguir mais a frente e iremos averiguar.
- Sim senhor.
A Lady aumentou a potência dos motores e se distanciou de nós, enquanto a fragata se emparelhou com nós e seguiu o curso.
Era 1:23 da manhã, a única luz que víamos era de nossos holofotes que usávamos para iluminar a nossa frente. A fragata mantinha dois holofotes virados para trás, talvez alguma tática militar. Adilson os copiava da popa usando um dos nossos faroletes.
Em questão de 15 minutos, o Alferez mandou um comunicado.
- Encontramos o transatlântico. Parece em perfeitas condições, mas sem resposta pelo rádio. Entrem em condição dois.
Ao terminar de falar, a fragata emitiu um alarme, todos os marinheiros correram para postos de batalha, alguns carregando suas metralhadoras. Um dos marinheiros fez um sinal de recuar para Nikolas, que gritou da Proa para Juan.
- Eles querem que fiquemos mais atrás, a Epifania vai seguir adiante.
- Thomaz, pegue o leme, acompanhe-os a distância.
- O que você pretende Juan?
- Condição dois é estado de alerta e a postos para batalha. Vou subir para minha cabine e deixar minha arma carregada.
Michel não gostou do que ouviu.
- Vou para a sala de máquinas. – Michel falou dando as costas para todos.
Acompanhei a fragata a distância, ela iluminava vários quilômetros a sua frente, a imagem no sonar indicava uma mancha enorme, ao lado de uma menor. Próximo ao centro, uma mancha menor. A mancha enorme deveria ser o transatlântico.
Alguns minutos depois, encontramos o Navio-patrulha rondando o transatlântico, era um monstro de metal no meio do nada. Completamente apagado, sem demonstrar um único suspiro. A fragata se aproximou e ficou praticamente colada na lataria do monstro.
- Todos em condição três, fuzileiros, quero um reconhecimento total da embarcação. – Ouvimos pelo rádio, era a voz do Alferez.
Em menos de um minuto, trinta homens subiram no transatlântico com suas armas, onde se dividiram em cinco grupos e seguiram para direções diferentes.
- Tripulação da Imperatriz, aguardem.
Em menos de uma hora, as luzes do Transatlântico se acendeu. Podíamos ler “Perola” escrito na sua lateral. Era imenso, o Navio-patrulha não era nada comparado com o Perola. O mais estranho era o silêncio no rádio. Não havia nenhuma mensagem vinda do Perola.
- Capitão da Imperatriz, queira nos acompanhar a bordo. – Ouvimos a mensagem do rádio vindo da Epifania, o capitão responsável iria embarcar.
- Miguel, você ficará no comando. Thomaz e Nikolas, quero vocês comigo.
- Por que a mim? – Nikolas indagou.
- Você é um ótimo mecânico, caso seja necessário quero você comigo.
- Tudo bem.
E seguimos para o transatlântico.
Os principais oficiais das embarcações estavam na proa, o Alferez estava com uma caderneta nas mãos, lendo-a aflito.
- Bem vindos a bordo senhores. Temos uma situação inusitada em nossas mãos.
- Qual seria? – Perguntei.
- O navio esta em perfeitas condições, não irá precisar de reboque.
- Mas...? – Juan perguntou.
- Esta caderneta indica que há mais de duas mil pessoas a bordo. Tripulantes e passageiros. – Nikolas olhou para os lados, mexendo seus cabelos negros para retirá-los dos olhos.
- Mas aonde estão? – Nikolas realmente estava preocupado.
- Não há ninguém aqui. Encontramos pertences dos passageiros, onde estamos catalogando tudo, meu subordinado esta na sala do capitão ouvindo as transmissões para entender o que houve.
- Como não há ninguém? Fugiram com os botes? – Juan perguntou.
- Olhem em volta, os botes estão devidamente fixados em suas hastes. Não há vestígios de sangue, no máximo furto. Encontramos malas espalhadas, como se procurassem algo, mas nada mais.
- E qual a ordem? – Perguntei.
- Levar o navio para Portugal, que é propriedade deles. E passar o que encontrarmos para o Capitão Cortez.
No mesmo instante, um oficial apareceu ofegante.
- Senhor, encontrei algo. Você tem de ouvir isto. – Ele estava pálido.
O Alferez correu até a sala de comando, onde nós o acompanhamos. Todos os marinheiros presentes estavam com olhares de medo.
- O que aconteceu homens? – Perguntou o Alferez
- Escute a transmissão. – Respondeu o oficial.
“Aqui é o transatlântico Perola. Estamos sendo abordados por homens armados, no começo achamos que era um teatro marítimo, até nossos instrumentos falharem. Quando notávamos, três Naus estavam no cercando. Isto mesmo, Naus. Socorro, eles estão atirando.”
Sons ecoados de tiros era escutado na transmissão, até que tudo se silenciou.
Um dos fuzileiros chegou com uma câmera digital, entregando-a para o Alferez. Na filmagem era possível ver um dos Naus visto do convés. Não havia símbolos, mas era possível ver que era de madeira com grandes velas. Era de uma coloração vermelha sangue, até mesmo as velas. Homens pulavam para o transatlântico e subiam com armas antigas e espadas, todos vestindo trajes de couro e grandes botas. Isso era uma peça, só podia. Piratas antigos? Seria engraçado se não fosse a situação.
- Não há lógica. Como isto é possível? Houve tiros e não há sangue? Nossos radares teriam captado tais embarcações. – Um dos oficiais falou.
- Tendo ou não lógica, temos uma missão. Levar o transatlântico para Portugal. Todos a seus postos. Capitão da Imperatriz, consegue navegar com esta embarcação? – O Alferez estava mantendo sua pose militar, mas podíamos ver que seus olhos demonstravam medo.
- Consigo, senhor. Preciso apenas de alguns homens na sala de máquina e faço esta beleza deslizar pelo mar.
- Fuzileiros, vocês seguem para a sala de máquina. Qualquer sinal de problemas, abram fogo. – Eles bateram continência e saíram da sala de comando. – Alguns dos meus homens ficarão aqui, comunicação, transmita nossa situação para os outros navios e para o comando.
O comunicador avisou todos os navios, as respostas eram vagas, como se algo interferisse no sinal.
- Senhor, não consigo avisar o comando. O sinal esta sendo bloqueado.
- Como bloqueado? Estamos no meio do nada com o tempo aberto. Veja se o aparelho esta funcionando corretamente.
- Esta, eu verifiquei duas vezes. Imperatriz, Lady e Epifania reportaram o mesmo problema.
O Alferez correu e pegou o rádio da mão do comunicador.
- Todos para seus postos de batalha. Voltem para Cádiz o mais rápido possível.
- O que esta acontecendo? – Perguntei.
- Seremos abordados.
- E como sabe?
- Longa história, mas isto é um mito que nossos superiores contavam sobre embarcações místicas. Se for verdade, não quero estar aqui para ver.
O Alferez correu para o leme, pegou o comunicador e gritou.
- Força total nos motores, estamos saindo daqui.
O colossos de metal ecoou seus tambores, podendo ser escutado a quilômetros de distância. Fumaça saiu da traseira do monstro, iniciando o giro de seus motores. As outras embarcações imitaram seu gesto em um tom menor, estávamos fugindo de algo.
Pegamos velocidade e nos distanciamos de onde estávamos. Aparentemente, era apenas um susto. Assim queríamos que fosse verdade.
O Perola seguiu a frente, ao lado da Lady, mais atrás a Imperatriz com a Epifania. O relógio da sala de comando indicava 5:22 da manhã, o sol já dava seus primeiros indícios de um novo dia.
Até que ouvimos um grito.
- Parada total, manobras evasivas, virar a bombordo. – O Alferez gritou. – Preparar para impacto.
Não entendemos o que estava acontecendo. O sonar estava louco, uma grande massa surgiu a frente do transatlântico, com cinco outras do tamanho do Navio-patrulha rodeando a nossa frota.
Batemos em algo imenso, o Alferez foi jogado por cima do leme, alguns de nós fomos arremessados para o chão. A proa havia sido completamente danificada.
Batemos numa rocha imensa que não estava lá a segundos atrás.
Ouvimos tiros de canhões, talvez três ou quatro tiros. Em seguida, uma explosão. Pelo rádio ouvimos:
- A Epifania esta afundando. Repito, Epifania esta afundando. Abandonar o navio.
O alferez se levantou e olhou pela janela.
- Não acredito. A ilha dos viajantes.
Todos olharam espantados para ele, sem entender o que ele queria dizer. Tiros de armas de fogo eram escutados por todos os lados, tanto do Perola como da Lady. Gritos eram ecoados pelos ventos marítimos.
- Não adianta resistir vermes. Vocês irão se render. – Ouvimos uma voz feminina pelo rádio, com um sotaque francês.
- Que ilha é esta? O que esta acontecendo? – Juan perguntou.
- Esta ilha será nosso tumulo, tentem se esconder, mas eles o encontrarão. – O Alferez sacou sua pistola, colocou na lateral de sua cabeça e apertou o gatilho. Pedaços de seu crânio foram arremessados para o vidro da sala de comando.
O restante de nós corremos. Alguns fuzileiros haviam formado uma barricada na porta e atiravam em homens com trajes de pano rasgado, mas as balas pareciam não os acertar.
- Não parem de atirar, homens. – Um dos fuzileiros gritou.
Uma bala de canhão atingiu o Perola, criando um buraco que faria com que ela afundasse em questão de horas. Agora tínhamos que sair do navio o quanto antes. O sol já estava raiando em nosso horizonte. Podíamos ver a imensa ilha que surgiu do nada a frente do Transatlântico. Era mais um vulcão do que ilha, com imensos canhões antigos presos a suas rochas. Nos rodeando havia cinco Naus antigos, com imensas velas e canhões laterais. Eram piratas a moda antiga, pela forma de suas roupas e suas armas. No convés do Perola jazia apenas marinheiros, mas nenhum deles. Eles possuíam espadas e nós armas automáticas, e estávamos perdendo.
- Vamos voltar para a Imperatriz, talvez tenhamos como fugir. Não temos como fugir.
E corremos, fazendo gestos para a Imperatriz, no qual se emparelhou com o Perola. O Navio-patrulha atirou uma rajada de tiros com seus canhões em um dos Naus, dividindo-o ao meio. Os outros 4 Naus viraram para manter seus canhões na linha de fogo da Lady.
Juan, eu e Nikolas pulamos do Perola na Imperatriz. Juan atingiu o convés, quebrando seus dois tornozelos. Seu grito de dor foi escutado mesmo com o som de tiros e explosões.
Eu e Nikolas erramos. Caímos no mar a poucos metros de nossa embarcação.
Mais uma salva de tiros vinda do Navio-patrulha, mas errou. As Naus sumiram assim como apareceram. A ilha se moveu lentamente, movendo os canhões em direção a Lady. Aqueles canhões poderiam derrubar um porta-aviões sem muito esforço. O navio recuou lentamente, mas em vão. Dois tiros vieram da ilha, atingindo o centro da embarcação. Se houvesse sobreviventes, não acredito que iriam agüentar a pressão vinda do impacto. Nós a sentimos a metros de distância.
- Vão, fujam! Não voltem para nos buscar. – Nikolas gritou.
- Você quer morrer? Esta louco? – Perguntei desesperado.
- Você quer que eles morram também? Nem mesmo os militares conseguiram algo.
Me calei. Ele tinha razão.
Vimos a Imperatriz se distanciar com força total nos motores. Adilson ficou na ré gritando:
- Voltaremos com ajuda, não se preocupem.
E eles se foram.
Antes de pensar no que fazer, um Nau surgiu ao nosso lado, como se a mão de Deus o colocasse ao nosso lado. Impossível saber de onde veio.
Fomos içados como se fossemos peixes, com uma rede de pesca, e levados a bordo daquele museu aquático. Fomos recebidos por vários homens com espadas e armas a base de pólvora em suas cinturas, com roupas de pano suja e algumas peças de couro.
Eles riam e gritavam em coro algum tipo de cântico.
Até que silencio total. Eles pararam e abaixaram a cabeça. Ouvimos o caminhar de alguém, um pisar forte no convés de madeira daquele Nau. Aqueles homens abriam caminho até que pudemos ver quem era.
Uma linda mulher ruiva, com 3 tranças, a roupa dela era, aparentemente, mais bem cuidada, com uma longa blusa branca que era presa por 2 tiras de couro, evitando que caísse e mostrasse os seios. Sua calça era larga, mas de couro, como se fosse uma calça de cowboy escura, cobrindo um tipo de ceroula branca, com botas que cobriam a parte inferior da calça. Em sua cintura, duas espadas com bainha dourada. Ela usava um chapéu que só via em filmes, como se fosse um comodoro inglês.
- Bem vindos ao Capitólio, a linha de frente da ilha dos viajantes. Sou a capitã Le’Fla – Era a voz que havíamos escutado no rádio, com o sotaque francês.
- O que querem? – Nikolas perguntou.
- Direto aos negócios? – Ela gargalhou. – Não queremos nada, apenas nos divertir.
Todos os homens gargalharam, e agarraram Nikolas e o arrastaram pelos cabelos. Ele tentou lutar, empurrou dois para os lados, um ele agarrou e arremessou para fora do navio. A capitã, sem ter a chance de conseguir pará-la, correu com extrema velocidade, empunhando uma espada na mão direita, e acertando o peito de Nikolas.
- Não gosto de baderna em meu navio.
Ela retirou a espada e a limpou na roupa de Nikolas, que caiu sem nem ao mesmo se manifestar. Ele estava morto. Ela se virou para mim, que estava paralisado de medo.
Alguns homens pegaram o corpo de Nikolas e o arremessou ao mar, ficando apenas a poça de sangue onde ele estava.
Le’Fla caminhou em minha direção, eu ainda ajoelhado, e passou a mão em meu rosto sorrindo.
- Gostei de você. – Ela disse.
E senti uma pressão imensa na nuca. Não vi mais nada.
Acordei com um mal cheiro, sentindo uma dor de cabeça. Estava preso pelos pulsos com correntes de aço, em uma espécie de calabouço. Havia esqueletos humanos espalhados pelo lugar, e algumas outras pessoas comigo.
O cheiro do lugar me causava ânsia, era imundo, sem o menor indicio de raios solares. Aonde quer que eu estivesse, sabia que não estava em boas mãos.
- Não se preocupe, se você esta vivo é porque gostaram de você. – Um senhor com a barba por fazer falou comigo.
- Considero isto sorte? – Perguntei.
- Bem, se você é religioso, considere isto como o purgatório. – Ele sorriu.
Eu abaixei a cabeça e suspirei. Conseguia ouvir o som do mar e algumas gaivotas. E esta é o inicio de minha nova vida. E caso eu sobreviva, eu contarei mais detalhes desta ilha e seus integrantes.