Mea Culpa
Inspirado por Agatha Cristie
e Sidney Sheldon
“Yet each man kills the thing he loves
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!”
Oscar Wilde – Ballad of Reading Gaol
A quem der saber: sim, fui eu. Fui eu quem a espreitou logo cedo, chegando ao ponto de ônibus. Eu que a impedi de chegar ao trabalho naquela manhã fria; que a levei a outro destino, um destino derradeiro, O Último Destino. Eu que, antes de vê-la expirar pela última vez, fiz com que ofegasse, perdesse o ar e experimentasse um pedaço proibido do paraíso terreno.
Mas antes de me julgar, ávido leitor, deverias tomar conhecimento de todo o enredo. Antes de me apedrejar em praça pública, me enforcar no palanque do Paço Municipal, decapitar-me diante da cidade entorpecida, e cuspir em meus restos, deverias, ao menos, dar-me a chance de contar o que houve, através das minhas vistas. Então me entregarei sem quaisquer resistências. Não quero contar minha história para me valer de misericórdia; sei o que fiz e aceito o castigo. No entanto, o que fiz, apesar de injustificável, tem motivo. Ao menos para mim.
Aquela manhã era fria, e estávamos avançando rumo ao fim de Maio. Porém, tudo começara bem antes, no calor abafado de meados de Janeiro, naquele mesmo ponto de ônibus. Eu tomava o circular rumo ao centro, para procurar trabalho. Estava desempregado há dois meses, e minha querida e doce Carola falecera, então, seis meses antes. Meu último patrão mandou-me embora, pois achou inaceitável um homem viúvo permanecer enlutado durante uma semana. Crápula desumano. Antes soubesse que eu passaria a vida enlutado, não fosse um novo amor me despertar. E foi naquela manhã que a vi pela primeira vez.
Eu já estava no ponto há dez minutos quando ela chegou. Alguns diriam que é um tanto irônico o fato de parecer que ela me espreitara antes, mas assim foi. Eu sentado no banco, a ler os classificados, procurando qualquer oferta de emprego e ela se achegou e passou por mim, indo sentar-se no banco oposto ao meu. Ao seu rastro, seguiu-se um perfume único, que dali por diante seria meu céu e danação. Automaticamente, baixei o jornal e me coloquei a admirá-la. A moça parecia contar vinte anos, era um palmo mais baixa que eu (quase a altura de minha doce e amada Carola), tez extremamente alva e os cabelos negros como as chamas do Abismo. Ela se sentou e me fitou. Então minha danação foi assinalada, e no Livro foi escrito e selado meu destino. Aqueles olhos castanhos me cegaram. Talvez ela tenha dito ‘bom dia’, mas me foge à lembrança. A partir daquele dia, minha sina, meu emprego, minha ocupação era encontrar a moça todas as manhãs. E cumpri meu papel religiosamente.
*
Depois de um mês de ‘bom-dia!’, ‘ônibus atrasou de novo. ’, ‘estão em greve!’, ‘que livro estás a ler?’, ela me concedeu a graça (ou maldição) de saber seu nome. Por algum motivo, que eu mesmo desconhecia e estranhara, talvez um golpe do destino, menti o meu. Meu coração acelerou, as palmas das mãos suaram, mas era isso. Agora eu era um mentiroso, desempregado e um projeto de alcoólatra. Ela sorriu, um sorriso que amaldiçoo o dia em que me foi entregue. Disse-me que gostava do nome. Eu sorri de volta, ainda trêmulo. O ônibus dela chegou, despediu-se de mim com um aceno e se foi. Esperei o ônibus descer a ladeira e virar a esquina e comecei a descer a pé o caminho para o centro: não tinha sequer um cobre para a passagem.
Os empregos estavam escassos naquela cidade. Dada a época do carnaval, as empresas estavam mais dando férias aos funcionários que chamando outros para o trabalho. Em geral eu rodava pelo centro, nas agências de emprego e comércios, distribuindo currículos que, certamente, viravam rascunho tão logo eu virava as costas. À hora do almoço, estendia-me sobre o banco de concreto da praça em frente à igreja e comia uns nacos de pão com manteiga que levava no bolso. As preces que fazia, a observar os santos no vitral da igreja eram sempre a pedir perdão, proteção (para mim e para a moça) e descanso para minha Carola, que muito provavelmente me observava de seu lar Eterno com olhos doces e aborrecidos. Depois de descansar no período do almoço, retornava por outras ruas, visando novos comércios onde ainda não teria entregado meu currículo. Às seis da tarde, ia para o bar, onde ficava entre tragos de conhaque, cigarros de filtro vermelho e conversas de gente desiludida, desempregada e desprovida como eu. Dali saía meia noite, às vezes mais, seguia cambaleante pela rua até em casa. A conta que abrira só ia crescendo e, a cada copo que eu pedia, os olhos do dono do bar se tornavam mais ferozes.
E no outro dia, lá estava eu, em meu ofício, cargo dado pelo destino, registrado e timbrado no Livro do Universo: observar Lídea pela manhã.
*
Um certo dia, já no final de Março, passado o carnaval, o Brasil despertando para o novo ano, tardio como sempre, dei-me conta que não tinha mais nenhum vintém sequer. O leitor talvez se interesse por saber onde, afinal, eu morava, posto que é a segunda vez que repito não ter dinheiro para nada. Minha pobre mãe, que jaz ao lado de minha doce e adorável Carola nos céus, deixou-me a casa que lhe foi deixada pelo verme asqueroso que era meu pai. A pobre mulher sofreu tantos desgostos nas mãos do velho bêbedo, que adoeceu ainda moça, e assim viveu até os 45 anos; tempo suficiente para ver enterrado o infeliz desgraçado, que ela tanto amara e a quem tanto se dedicara. A casa era simples, apenas um quarto e cozinha, donde vivíamos os três. Sou filho único, razão pela qual meu pai a amaldiçoava dia e noite, chamando-a pecadora estéril, e lhe batia e obrigava a se deitar com ele, o que não era necessário, pois ela certamente o faria de bom grado, tamanho amor que por ele tinha.
Além da casa, aprouve a minha mãe deixar alguns vinténs numa poupança, para que deles eu pudesse me valer em alguma dificuldade vindoura. Não sei se foi um simples ato altruísta materno, ou se a pobre mulher, com seu alvo espírito, previu a desgraça que sobre mim se abateria. Ah, se ela ao menos me tivesse alertado! Mas não. Preferiu deixar alguns recursos para que eu não perecesse tão logo a danação me alcançasse. Esses cobres guardei até não mais poder. Não os consumi em passagens de ônibus, pois as pernas me sustentavam bem. Paguei parte da dívida de conhaque e cigarros que tinha no bar, e usei o resto para comer. Acredito que o leitor está, agora, mais esclarecido quanto à minha subsistência.
Meus cobres haviam se enxugado por completo, e eu padecia de fome. Naquela manhã, quando a moça se achegou ao ponto de ônibus, encontrou-me por demais pálido, em ponto de sofrer um desmaio. Afligiu-se por mim e começou a inquirir-me sobre o que se passava. Envergonhado, passei a contar-lhe minhas desventuras. A pobre moça lançou sobre mim seus olhos castanhos de piedade, que, ai de mim, não merecia. Ela tencionou dar-me uns vinténs, para que eu, pelo menos, pudesse comer algo. Recusei com veemência, dizendo que de maneira alguma tiraria dinheiro de uma pobre moça. Ela me interrompeu, e disse para que eu a acompanhasse, então, até sua casa, e lá tomasse um desjejum.
Por quê? Oh, pelos céus e pelo abismo, por que aceitei tal convite? Talvez pudesse ter evitado o futuro se nesse dia eu tivesse me lançado a correr para longe dos olhos de Lídea. Por outro lado, eu já me encontrava perdidamente apaixonado pela moça e ir ou não à casa dela não faria muita diferença. Envergonhado, sentindo sobre mim o peso dos olhos da minha amada Carola, que também sabia olhar de forma cruel e vil, entrei na casa da moça.
*
Lídea morava sozinha, num conjugado muito parecido com o que me deixara minha mãe. Os móveis eram bem organizados e limpos, com aparência de novos, apesar de rústicos. O piso era de tacos, cor de mogno, assim como todos os móveis. Uma penteadeira, um guardarroupas de duas portas, uma cama de solteiro do tipo grande. Na cozinha, dois armários de dispensa, também em mogno, um pequeno fogão de quatro bocas e uma geladeira, que ela abriu logo que entramos e tirou alguns frios, como apresuntado e queijo prato. Foi à dispensa e pegou um pacote de pão de forma, e me fez três sanduíches, que devorei em poucos segundos. Ela pegou na dispensa uma garrafa de suco de uva natural e encheu dois copos. Jamais me esquecerei da ternura de seus gestos, e do olhar que ela deixou escapar. Enquanto eu virava o copo de suco, ela me olhou de uma forma que não consigo descrever, senão como ‘profundamente’. Posso jurar, caro leitor, e nisso pode ser que eu peque e tu me consideres réu qualificado, que a vi morder o lábio inferior e conter um olhar de desejo e paixão.
Terminei meu copo e olhei para minha benfeitora. Ela mexia na ponta dos cabelos negros e suas faces estavam ruborizadas; o tempo era ameno àquela hora da manhã, mas eu podia ver que ela transpirava. Agradeci com humildade a bondade da minha salvadora, tirando a boina cinza e torcendo entre as mãos. Num gesto de maior desespero e emoção, tomei suas mãos brancas entre as minhas e comecei, não sei se por alucinação da fome, ou por estar transbordando de gratidão, a confessar meus sentimentos ocultos e contar tudo o que lhe narrei até agora, leitor. Sobre como ia ao ponto de ônibus somente para conversar com ela, sobre minha amada e adorada Carola, e como teve morte precoce, sobre minha mãe e o cão malfeitor de meu pai e disse que a moça era uma tábua de salvação no oceano de minhas desventuras. Ela entregou suas mãos às minhas, e pareceu saborear minhas palavras, como quem bebe o mais doce licor dos deuses.
Comecei a levantar da cadeira onde estava, recuperado de minhas forças, e me aproximar da moça, olhando-a nos olhos castanhos profundos. Ela me olhava, não sei se aflita ou extasiada, e seus lábios foram se entreabrindo. Nossos corpos começaram a se aproximar lentamente, seus braços foram enlaçando meu pescoço e minhas mãos contornando sua cintura. Eu fechei os meus olhos e vi, claramente, o olhar de reprovação e mágoa da minha doce e querida Carola. Avancei em direção aos lábios da moça, ignorando o presságio da visão, e não encontrei senão o ar. De um susto, abri os olhos e vi que Lídea se desvencilhara dos meus braços e me olhava assustada, já sem cor alguma nas faces. Perguntou-me asperamente quem eu pensava que era, e o que achava que estava fazendo. Trêmulo, tentei me defender com palavras, mas tropecei nelas como um menino. Estava atônito, leitor meu, diante do que via. A moça me olhava como se eu a tivesse atacado dentro de sua própria casa. Consegui, por fim, replicar, dizendo que, embora pobre e desgraçado, jamais faria mal algum à uma moça. O semblante de Lídea se contorceu em fúria, e ela começou a me insultar e dizer as maiores injúrias sobre minha índole. Tomei minha boina de cima da mesa, fiz uma reverência pedindo todas as desculpas que podia e disse que um dia retribuiria o que ela fez por mim. Ela ameaçou atirar-me algo, então me apressei em sair.
*
Pensas que eu não imagino o que insinua teu pensamento agora, leitor? Certamente duvidas de minha narrativa, e acreditas que o episódio na casa de Lídea é uma fábula para justificar meus atos e me sair como vítima da situação. No entanto, nobre leitor, saibas que me senti deveras culpado e aflito desde então. O olhar de Carola passou a me perseguir de dia, nos vitrais da igreja, num piscar de olhos, nas crianças que brincavam na praça. Enquanto o de Lídea me atormentava as noites; aquele olhar ardente, que posso jurar por minha sanidade que vi nos olhos dela, me açoitava nas madrugadas quando o episódio recém-narrado me voltava à lembrança como em sonhos despertos.
Não mais fui ao ponto de ônibus para encontrá-la. Evitei a todo custo cruzar seu caminho. Por essa ocasião consegui um biscate como lavador de carros, para ganhar 30$ por semana. Fiquei alegre, a pensar que era o primeiro sinal de que minha sorte mudaria dali em diante. E, com o tempo ocupado por um trabalho, seria menos provável me pôr a pensar nos olhos reprovadores da minha doce e amada Carola, ou os provocantes olhares de Lídea. Ah, como eu gostaria de estar certo.
Trabalhava cerca de doze horas diárias. Estava exausto, mas feliz, pois aos poucos não só paguei as dívidas de conhaque e cigarros, como diminuí razoavelmente o consumo. Passado o primeiro mês, eu me sentia outro homem. Nas primeiras semanas, quando tinha alguma pausa, logo a imagem dos dois pares de olhos me vinham à mente, mas depois o trabalho aumentou e me esqueci destes temores. À noite, deitava-me tão cansado que em poucos minutos já dormia. Porém, uma noite fria de Maio, fui ao bar com os novos colegas de trabalho. Pensei que me faria bem conhecer gente nova e construir novas amizades. Fomos. Bebemos conhaque, cerveja, jogamos cartas, rimos de anedotas e histórias. Fui-me para casa a pé, cambaleando, como de costume.
Ia já eu pelo caminho, aproximando-me de casa. Quando passei pela parada de ônibus onde conheci Lídea, vi um espectro a espreitar o muro detrás do ponto. Estava a cem passos de onde se encontrava a sombra, e minha miopia não permitia que eu divisasse do que se tratava. O máximo que via era um vulto branco. À medida que me aproximava, o coração se apertava em meu peito e eu imaginei que teria um colapso.
Se não era minha própria Carola – a doce e amada Carola – que se espreitava pelo muro. Desatei a tremer e suar frio; estava ainda a dez passos do fantasma quando comecei a me justificar e a dizer esconjuros. O espírito, alma penada, diabo, o que quer que tenha tomado a forma da imaculada Carola, fitou-me com os olhos frios e doces, ásperos e cálidos de Carola, e me falou com a mesma voz da minha doce e amada, já falecida, esposa (embora alterada, talvez, pelo além) que viu meu pecado. Ajoelhei-me diante da aparição e implorei pelo perdão Divino, pelo perdão de Carola, pela misericórdia dos céus. A Aparição me disse que havia sangue em minha alma, sangue de luxúria e desejo profano. Roguei que me purificasse desse sangue, pois eu já me havia arrependido dos pecados adúlteros que cometera em meu coração. O Espectro, no entanto, disse que esse sangue só poderia ser lavado se o sangue de meu objeto de desejo fosse derramado. E desapareceu, não me deixando chance de replicar.
*
Acordei no outro dia com sede. A ressaca me despertou ainda de madrugada. Pensei ter sonhado tudo o que narrei anteriormente. Fui ao banheiro, lavei o rosto com água fria e me fitei no espelho. Havia profundas olheiras sob meus olhos. Eu parecia extremamente pálido. Comecei a procurar um maço de cigarros nos bolsos da calça jeans que ainda estava usando. Encontrei um bilhete escrito às pressas, num papel amassado, que dizia somente: ‘Você tem três dias’. Estremeci de todo, novamente, mas já sabia, resoluto: precisava assassinar Lídea.
Na manhã seguinte, fui para o ponto de ônibus onde encontrara meu céu e danação pela primeira vez. Observei-a escondido onde o fantasma me aparecera na noite anterior. Ao vê-la chegando, meu coração disparou e se apertou ao mesmo tempo. Eu estava, a um só momento, apaixonado e aflito. Ali estava a moça que despertou em mim um amor que havia sido enterrado há um ano. Agora cabia a mim enterrá-la. Fiquei somente a espreitá-la, até que veio o ônibus e a levou.
Não fui trabalhar nesse dia. Voltei para casa. Dei um telefonema do orelhão, dizendo que havia contraído uma doença contagiosa, e o médico me dera uma semana de repouso. Depois trataria de me entender com eles. Eu precisava arquitetar o crime que me limparia da culpa. Fui à adega da vizinhança, comprei um litro de Presidente, três maços de cigarro e voltei para casa.
Na volta resolvi ir pelo caminho mais longo, para ter tempo de por as ideias em ordem. Passou-me pela cabeça que tudo não passara de um engano: eu voltava bêbedo, provavelmente tivera um sonho daqueles que parecem muito reais. Mas, e o bilhete? Que seria, então? É verdade que a caligrafia não se parecia em nada com a de minha doce e amada Carola, mas uma mensagem do além não pode ser escrita com tanta perfeição. Segui para casa, ainda a argumentar comigo mesmo, tentando me convencer que não era necessário derramar o sangue de Lídea, afinal.
*
Aqui me cabe fazer outra pausa, leitor. Sei que estás aflito para que eu logo confesse o que fiz, e conte-lhe os detalhes ardilosos, para que possa, então, condenar-me à forca ou o que o valha. Porém, pense consigo o que farias se estivesse em meu lugar? Tenhas em mente que, até aqui, embora tentasse argumentar contra minha mente, algo no fundo de mim estava resoluto que tudo o que ocorrera era verdade. É fato que eu mal pensara em Lídea no mês que se seguiu e nunca comentei o caso com ninguém, e nunca mais a vi; por que, então eu teria tal alucinação? Meu coração implorava para que eu não concretizasse tão vil tarefa. Que me negasse a fazê-lo, ainda que, por causa disso, as chamas negras do Abismo me fossem reservadas. Eu não me importava com as chamas do abismo, ou a eterna danação. Só não queria ter os olhos doces e frios de Carola sobre mim, novamente. Não os suportava enquanto ela vivia; mas contemplá-los tão nitidamente depois de tanto tempo de sua morte era algo inimaginavelmente pior.
Portanto, ó sábio e astuto leitor, não sejas tão ávido em julgar. Até o mais sábio pode cometer erros graves.
*
Naquela noite embriaguei-me de conhaque e fumei maço e meio de cigarros. Rolei pela cama durante toda a madrugada e tinha sobre mim dois pares de olhos. Ora os de Carola e sua voz em meus ouvidos, impelindo-me ao meu destino. Ora os olhos castanhos de Lídea, seu doce sorriso de menina e seus gritos de horror quando me visse saindo do esconderijo e me precipitando sobre ela.
Li e reli o fantástico bilhete que me fora supostamente destinado do além. Não me dizia nada, senão que eu precisava assassinar Lídea, a qualquer custo, agora dentro de dois dias. Lembrava claramente da Aparição, dizendo-me que o sangue de meu objeto de desejo precisava ser derramado, para que o sangue que sobre mim havia fosse limpo. Seria, então, indispensável que o sangue de Lídea corresse para fora de seu corpo sem vida? Resolvi me apegar aquele detalhe, para ter noção do método que usaria ao cumprir o Destino que de forma cruel me fora traçado. E por alguém que eu tanto amava! Minha Carola! Minha doce e amada Carola!
Levantei-me, depois de muito tentar dormir, em vão. Tomei um banho frio, e a água gelada arrastou consigo para o esgoto as últimas lágrimas de amor que eu derramava, depois de tanto tempo. Vesti a roupa mais apresentável que possuía, tomei de um trago o conhaque que restara na garrafa. Depois escovei os dentes e os cabelos, passei um perfume barato, que comprara de um mercador de rua, e parti em direção ao ponto de ônibus.
*
Cheguei antes de Lídea, como de costume. Mas não fiquei à espreita no muro atrás do ponto de ônibus, como estás pensando, leitor. Sentei-me no banco de costume, e fingi ler o jornal de classificados, distraído. As mãos tremiam um pouco, estavam tão frias, o coração acelerado. Tentei me acalmar. Passados cinco minutos, olhei para o lado e a vi despontar no fim da calçada. Meu coração desatou a bater desenfreado, as mãos começaram a tremer mais do que nunca. Ela chegou no ponto e me olhou. Quando me reconheceu, veio ao meu encontro. Respirei fundo, dobrei o jornal e coloquei no banco ao meu lado. Levantei-me para cumprimentá-la. Para meu espanto, enquanto eu tentei dar um beijo seco em sua bochecha, Lídea me puxou para si e abraçou-me. Fiquei atônito. Ela me disse que sentira minha falta, elogiou meu perfume, enlaçou meu braço e começou a me arrastar para um lado e para o outro do ponto, como se passeássemos pela praça.
Eu não sabia o que fazer. Ali estava Lídea, como sempre fora. Doce, amável, delicada. Falava comigo, indagava por minha vida contava-me suas novidades, como se fôssemos amigos de infância, e aquele episódio em sua casa jamais tivesse acontecido. Comecei a amolecer. Tentei espantar a ideia de ter seu sangue em minhas mãos. Era óbvio que aquilo não era necessário, não passava de uma loucura por causa da bebida. Numa das voltas de Lídea, contemplei o muro onde eu vira, há poucas noites, a Aparição em forma de minha Carola. Espreitando pelo muro, vi dois olhos – sim, aqueles mesmos olhos, leitor – doces e frios. Os olhos de Carola. E dentro de meus ouvidos sussurrou-me sua voz, dizendo-me para não perder mais tempo, para acabar logo com aquilo.
Senti-me nauseado. O sangue começou a me subir à cabeça, ao mesmo tempo em que sumia de minhas faces. Lídea logo notou meu estarrecimento. Virou-se para mim, colocou suas mãos frias em meu rosto, olhou-me com seus olhos castanhos. Pude ver em seus olhos uma aflição crescendo. De repente, lágrimas começaram a lhe brotar nos olhos. Ela disse que não me podia ver naquele estado. Sentia compaixão de mim. Amava-me. Queria cuidar de mim, queria me fazer um homem digno, dono de uma casa. Queria se deitar ao meu lado na cama, ser minha esposa, minha mulher. Ela me confessava essas coisas entre lágrimas e sorrisos, e senti meu corpo se acender por Lídea. Todo o meu ser tinha gana de possuí-la. Ela me abraçou de novo, e suas mãos começaram a me contornar. Fechei os olhos e beijei seus lábios. Quando nossas bocas se encontraram, vi (de olhos fechados) os olhos graves de Carola me censurando e ouvi um grito horrendo de pavor.
Puxei Lídea para o ponto cego, atrás do muro da parada de ônibus. Cada vez que a beijava, ou que olhava em seus olhos, ou que ouvia sua voz doce dizendo aos suspiros que me queria, seguiam-se imagens de Carola chorando sozinha, abandonada, a me culpar por abandoná-la, e depois imagens de Lídea banhada em sangue, e Carola sorridente a me agradecer. Enquanto minha mente divagava em meio ao turbilhão de fantasmas e temores, ameaças, gritos e sangue, meu corpo agia autônomo, as mãos passeando pelo corpo de Lídea, e suas mãos passeando pelo meu. Possuí Lídea ali, em plena luz do dia, no meio da rua. Seus gemidos de prazer e sussurros me jurando seu amor jamais sairão de meus ouvidos. Jamais poderei esquecer suas expressões de satisfação. Jamais esquecerei seus olhos vidrados ao atingir o êxtase do amor e receber, no mesmo momento, a fria lâmina da faca de minha cozinha entre seus seios.
*
Lídea não me disse mais nada. Seu último suspiro foi, a um só tempo, de prazer e medo. Seus olhos não me procuraram para dizer adeus, nem seus lábios tentaram, em vão, dizer palavra. Não sei se ela morreu feliz, mas antes de sair correndo, deixando Lídea com a faca enterrada no peito, juro que a vi sorrir para mim. Voltei às pressas para casa. Durante todo o trajeto, os olhos de Carola me acompanharam, agora doces, radiantes e satisfeitos, e pude ouvi-la me agradecendo, sorridente, como fazia quando a levava ao cinema. Pensei que um peso me sairia do peito, mas agora, junto aos olhos de Carola, outros dois olhos me seguiam. Eram os olhos castanhos de Lídea, que me olhavam piedosamente, e tristes, como que me perdoando pelo que lhe fizera. Mas esse olhar, ainda que de perdão, só fazia aumentar a culpa que senti.
Cheguei em casa, tirei toda a roupa que vestia. Entrei debaixo da água fria do chuveiro, comecei a me esfregar com força. Apertava os olhos com medo de que algum outro fantasma me aparecesse, mas a imagem de Lídea morta em meus braços se projetava em minhas pálpebras fechadas. Saí do banho, olhei-me no espelho. No pescoço havia marcas dos lábios de Lídea, em meu peito arranhões de suas unhas. Vesti uma roupa velha. Fui ao quintalzinho atrás da casa e lá queimei as roupas que vestia quando cometi o crime que deveria expiar meus pecados. Enterrei as cinzas a quatro palmos do chão e voltei para dentro.
Deitei-me na cama, fechei a casa sobre mim, tranquei portas e janelas, e me encolhi sob os cobertores, ansiando dormir logo. Não fechei os olhos toda a noite, assombrado com a terrível lembrança das mulheres que amara e matara ao longo de minha vida. Minha mãe, para quem neguei meu carinho e cuidado quando mais precisava, em prol de me casar e dar à Carola uma vida segura e estável. Carola, que adoeceu tão logo nos casamos e não pude pagar tratamento adequado devido ao emprego medíocre que conseguira pela falta de estudo. E, finalmente, Lídea, a única que morreu em meus braços e por minhas próprias mãos.
*
Na manhã seguinte levantei decidido em ir direto ao bar. Tomei caminho diferente, evitando passar pelo ponto de ônibus. Pelo caminho fui ouvindo retalhos de conversas, ‘a moça assassinada’, ‘abusada antes da morte’, ‘safado, cruel e desumano’, ‘crime hediondo’. Fui apertando o passo a cada frase solta que ouvia. Ninguém sabia de nada! Ninguém conhecia meus motivos, minha sina, meu carma, minha missão dada pelo Além, vinda dos lábios da minha doce e amada Carola. Pro inferno, todos eles! Eu não abusara de Lídea! Ela se entregara a mim, de boa vontade. Partiram dela as primeiras carícias! Mas para ninguém eu podia contar, ninguém ouviria minha versão em silêncio. Nem mesmo tu o fazes, ó leitor. Sei que me culpas e me julgas a cada linha que lês!
Cheguei ao bar trêmulo, ansiando por um trago de conhaque. Pedi uma dose ao rapaz do balcão. Do fundo do bar veio a voz do dono, gritando ao rapaz que parasse, que não me servisse um copo sequer. Tremi. Ele sabia! De alguma forma tinha me visto cometer o crime que lavaria minha alma. Passara de auto pela rua, tão rápido que me passou despercebido, ou à pé, por um trecho mais obscuro onde a vista não alcançava. Maldito! Ia me denunciar, entregar-me à polícia, sem nem mesmo saber dos temores que tanto me atormentaram e impeliram a fazer aquilo.
O homem se achegou ao balcão, olhou-me nos olhos e me perguntou como eu tinha coragem de aparecer lá sem o seu dinheiro. Eu não entendi, pedi desculpas polidamente e disse que não sabia a que se referia. Ele me olhou, vermelho de cólera, puxou do avental um papel onde havia marcado as contas que eu ainda não pagara. Meu corpo todo se relaxou. Ele nada sabia. Eu estava salvo. O homem disse que ia refrescar minha memória. Relatou sobre minha última visita ao bar, com os amigos do trabalho, de quantas doses eu tomei naquela noite e do aviso que ele me dera sobre pagá-lo antes de três dias. Retruquei dizendo que ele não deveria confiar essas coisas a um homem etilicamente alterado. Ele riu. Disse que era dono de bar há mais de vinte anos, sabia o que deve ou não fazer a um homem embriagado. Contou-me, então, que ao me falar, colocou discretamente no bolso de minha calça um bilhete, para que eu não esquecesse a dívida. Um bilhete que dizia ‘Você tem três dias’. Tirei o dinheiro da carteira, paguei o homem e voltei, sem beber nada, para casa.
*
Era aquilo, então. Um erro. Um delírio. Eu matara uma mulher que acabava de me jurar seu amor e me entregar seu corpo. Por uma ilusão de embriaguez. Decidi, então me entregar. Por isso escrevi essa confissão que lês, meu leitor, e contei minha versão dos fatos. Mas se pensas que poderá me cuspir nas faces enquanto eu estiver dependurado numa corda, em cima dum palanque, em frente ao Paço Municipal, estás enganado. Voltarei ao ponto de ônibus onde conheci a última mulher que me amou. Levarei três flores brancas, em homenagem às mulheres de minha vida. E quando o primeiro ônibus do dia passar, estarei embaixo dele, esperando ver novamente Lídea, minha mãe e minha Carola – minha doce e amada Carola – mesmo que seja a última vez. Afinal, elas merecem o céu. Eu, a danação.
William G. Sampaio [28/5/2012]