Além
Estava tudo bem quando disseram que eu havia feito tudo aquilo
Então olhei minhas mãos e estavam sangrando
Escondi-as nas costas para que não vissem
A boca forçava um sorriso, os olhos temiam
Fui até o espelho e então pude ouvir
que meu coração há anos estava chorando
lavei as mãos, esperei que o sangue estancasse
e ordenei ao tempo que curasse aquela dor
As pessoas na rua me encaravam
e tinham olhares e gestos que não me esqueço
elas sabiam de tudo o que eu tentava esconder
e o tempo, ofendido, não levou o sofrimento
Procurei ajuda em todos os lugares possíveis
mas os remédios não fizeram efeito
e as orações não foram ouvidas
Sai sem rumo esperando pelo fim
Cansado, caí no chão entre a sujeira e a morte
um homem estranho, com uma cicatriz estranha
me encarou sem dizer nada
tinha uma capa e um chapéu, não esqueço
Esperei que dissesse algo e ele não disse nada
Desejei que fosse embora e ele não foi
Perguntei quem era e ele não respondeu
Pedi ajuda e ele tirou o chapéu
Seu olhar cansado me causava mal estar
Desviei o olhar para suportar
E ao pegar suas mãos enrugadas me ajudando a levantar
senti nojo e farejei de perto seu cheiro podre
Ele sabia tudo que eu pensava
E ter os pensamentos nus diante de outra pessoa
nos causa a vergonha de ser visto
e o inferno de não ter lugar mais sujo para se esconder
Então encarei seus olhos negros
e no fundo vi que não havia para onde fugir
Ele tirou algo de seu casaco sujo
e me ofereceu
Baixei os olhos, pensei voltar ao chão
voltar ao ponto em que o destino teve meu corpo em suas mãos
já decidido devolver minha vida
para o lugar de onde ela veio
Com toda a ferrugem que o barco mais antigo pode ter
meu braço, meus dedos se moviam ao encontro daquela mão
era a última escolha que podia tomar
era a que já nem ousava pensar
Toquei a mão velha que dolorosamente abria os dedos
senti algo cair sobre minha palma
era algo talvez de engolir
porém extremamente grande
Ele fez um sinal que eu tomasse e levei à boca
Minha garganta fez sentir como as garras de um felino
arranhando e sangrando de cima a baixo meu esôfago
até desdobrar uma dor de estômago que me derrubou novamente
Acordei dias depois com o corpo desorientado
com o vento pelo cabelo desarrumado
o sol me pegou no colo e fez subir
uma criança sorria para mim