A NUCA

Saiu do salão com uma deliciosa sensação de leveza.A cabeleleira,acostumada a tratar de sua cabeleira há anos,estranhou que pedisse um corte tão radical."Como o da Raíssa",ela havia especificado.Referia-se à personagem de Mariana Ximenes,na novela América.O estilo desfiado,tornando os cabelos ralos e arrepiados qual um de um patinho ao vento.Guilherme adorava seu manto escuro.Especialmente nas horas mais íntimas."Vestida de cabelos",ele repetia.E passou a chamá-la,nesses momentos,de "Lady Godiva".

A lenda conta que essa mulher ,por saber que o marido,senhor feudal,cobrava altos impostos dos camponeses,submeteu-se à insólita exigência:atravessar a aldeiota a cavalo,nua,coberta apenas com seus lindos cabelos.Os servos deveriam peranecer dentro de suas casas,para não ver sua nudez.E dizem que um deles,sem resistir à curiosidade,olhou a cena por um buraquinho na parede.Ficou cego.De qualquer forma, aí vemos uma senhora,numa época em que as mulheres pouco valiam no conceito masculino,dobrar o marido-os impostos foram reduzidos para o povo não morrer de fome,consta-usando a coragem,o corpo.

Pois agora,separada,Jânia livrava-se de um símbolo de um poder que tivera,mas não queria mais.Cansada das viagens de trabalho constantes,do tipo de ligações que o marido tinha com o "vil metal"("Vil,muito vil",repetira ela à exaustão,na última briga),de ser exibida como objeto de luxo e conquista nas festas que ele oferecia aos melhores clientes,rompera tudo,fora para a rodoviária e apanhara um ônibus para uma cidadezinha do interior.Ficou em uma pensão até o dinheiro esgotar-quando foi sacar,viu que ele bloqueara a conta conjunta,mas não achou errado:não era mais nada dele("Mais nada, mais nada",repetia contando os passos na cidadezinha histórica,enquanto andava pelas ladeiras calçadas de pedra).

Foi falar com o padre de uma das muitas igrejas."Oriente-me!O que fazer para ganhar dinheiro nesta cidade?"O padre,ao acompanhá-la à porta da sacristia,disse que falaria com algumas pessoas.Enquanto isso, almoçasse e jantasse com ele na casa paroquial.Como era idoso,ela julgou que não faria mal e apareceu às sete,pontualmente.Saíra às dezessete horas,para andar um pouco.Ao caminhar,viu inúmeras pessoas espalhando no chão sacos de pétalas de flores e serragem tingida em muitos tons.Como se chegassem do trabalho e quisessem aproveitar o tempo.Aproximou-se e viu que muitos compunham,no chão,modelos sacros,como cálices,uvas,cordeiros,velas,os símbolos pascais.E alguém ,um jovem de barbicha,estava iniciando um rosto de Cristo.

Comida frugal,mas deliciosa.Foi à cozinha,agradecer à cozinheira.E foi esta quem lhe falou que o Seu Salim,da venda,estava procurando uma pessoa para tomar conta da casa,pois a mulher morrera há três meses e o pobre não sabia mais o que fazer para lidar com os filhos adolescentes,três.Jânia riu:

-"Mas não dou conta de fazer serviços de casa.Tinha empregadas e sofro da coluna cervical"

O padre,que chegava para filar um cafezinho que o deixasse bem alerta,pois ia escrever o sermão do dia seguinte,Domingo de Ramos,explicou que o Salim queria uma espécie de governanta,para organizar o que agora era um caos doméstico.Viesse à Missa.Após,sairiam em procissão,o que se repetiria no Domindo de Páscoa.Ela falou dos tapetes de flores e serragem,ele contou da tradição mineira,cada família querendo deixar seu trecho mais bonito que o outro.

-"O Salim não perde Missa,nem deixa filhos perderem.Venha,que a apresentarei.Oito horas!"

Quando ela agradeceu pelo jantar e pela chance,ele moveu a grande mão vermelha,como se minimizasse o que ela dizia.Após os lances de degraus carcomidos,mas muito limpos,virou-se.O religioso estava com olhar parado,direto na sua nuca.A mesma que antes sempre estivera oculta pela massa de cabelos.

No quarto,abriu a porta do guarda-roupas,onde havia um espelho e munida com seu espelhinho de bolsa,virou-se de costas par o maior e olhou seu pescoço.Talvez tivesse apanhado muito sol,ao meio dia.

Não estava avermelhado,porém,mas de um róseo translúcido,qual pele de bebê."De bumbum de bebê,de bumbum de bebê",murmurou sorrindo.Estava bonito.Um aspecto clean.O que diria Gui se visse essa nuca fresca,rosada, erótica?

Na pousada,à mesa do café sentiu um olhar pesando sobre ela.Como acontece muitas vezes,captamos olhares fixos.Voltou-se.Um jovem militar da AMAN,na mesa com vários outros,talvez em viagem de feriado,olhava sua nuca, parecendo hipnotizado.Cumprimentou-o com a cabeça, sem pensar.Ele retribiu,seguido pelos demais."Ora,ora,meus jovens bebês!Já tenho quase quarenta anos!Quarenta! Lembrou-se de sua amiga Heleninha,que diz sempre:"Melhor estacionar nos trinta,Jânia depois de entrar nos "enta",não há volta".Com a mão direita,arrepiou suas penugens e sentiu um arrepio.Uma espécie de prazer.Depois,colocou-a suavemente e deixou os dedos simularem um carinho.Quando abriu os olhos,os moços de verde estavam passando devagar,extasiados com sua expressão de gozo .Corou violentamente.Aquela pele clara sempre a traía...

Achou a Missa longa,mas alegre.O sermão era otimista.Esforçou-se para não deixar os pensamentos passarinharem.O padre merecia.Por duas vezes,sentiu olhos sobre a cervical.Sentiu-se sexy.Então,a nuca tinha tal poder sobre os homens?Olhou algumas mulheres à sua frente,achou alguns pescoços bem feiosos.O diferencial devolveu-lhe a sensação gostosa.

Esperou as pessoas saírem,depois falarem com o Padre Bauer,e viu que perto dele,sentados,haviam três adolescentes desarrumados,conversando baixinho.Em pé,um homem moreno.Deve ser o tal Salim,deduziu.

No mesmo dia,mudou-se para o casarão de esquina,com pé direito alto,velho e escuro,pois as janelas tinham antigas cortinas de veludo vedando a claridade.Romântica,pensou naquelas heroínas de romances."Que decadência".Se suas amigas do Bairro de Lourdes,com quem batia pé na Savassi e nos shoppings da capital soubessem,ficariam horrorizadas.E contariam ao Guilherme.Ele sentir-se-ia vingado do abandono conjugal ou teria pena?Por certo,esconderia dos amigos que a mulher o deixara e saíra pela porta da frente,sem levar nada.Nem escova de dentes."Nem escovas de dentes...Nem escova de dentes",pensava sempre Jânia...Abandono total!

Os rapazinhos a adoraram,desabafaram as caretices do pai,as saudades da mãe,ajudaram a abrir todas as cortinas e pediram para dar uma festinha.Estamos de recesso escolar."E de luto",pensou ela.Negociou com eles,que fosse uma sessão de DVDs.Com papos,pipocas,batatas fritas,

sanduíches.Depois de um churrasquinho no quintal.Preparo tudo,vocês não comentam.Quando ele chegar,digo que não sabia que ele não sabia,que tal?Com o passar dos tempo,organizaria festas de verdade.Entendia que eles estavam tristes e entediados.Jovens não entendem as pressões sociais do luto.

Ouviu muitas recriminações,claro.Mas foi ao escritório de escrivaninha imensa e escura conversar,explicar qu os meninos podiam adoecer de saudade e tédio.Fôra a mesma coisa que almoçar fora,ir a um cinema.Nem música alta ouviam...

Quando se virou para sair,dizendo que ele podia despedí-la,sentiu um arrepio enorme.Voltou-se e lá estava o olhar escuro,cercado de olheiras,colado,por assim dizer,na sua linda nuca."Preciso ir cortar um pouquinho mais,pensou".E ele:"Não precisa ir embora,dona Jânia.Eles gostam da senhora e a senhora está certa:de "férias",órfãos de mãe,podem mesmo adoecer se não fizerem algumas coisas para espairecer".

Com o tempo,Salim foi trazendo mimos para ela,da loja.Breguíssimos,uns.Vasos de flores .Doces.Foi ficando mais tempo à mesa.Cortou os cabelos quando ela pediu que os rapazes fossem ao barbeiro.Nos domingos após a Missa,sentava-se por perto de ode ela estivesse.Olhos de carneiro na sua nuca.

"Afinal, não tenho despesa alguma",claro,não pretendia ficar ali para sempre,mas faria um pé-de-meia.À noite ,ia para o inglês,com os filhos do patrão.Podia acordar tarde,porque eles estudavam pela manhã e não precisavam dela,a cozinheira preparava a mesa bem cedo,na cozinha mesmo,porque Salim saía cedinho.Vidinha tranqüila,não se lembrara de ter tido outra semelhante.Engordou um pouco,mas por ter ossatura delicada,ficou muito bem.Agora,o convite:Salim ia à cidade,queria levá-la para comprar cortinas leves.Foi.No caminho,ele falava sem parar,como se há tempos,não o fizesse.Contou ser homem de paz.Nem tinha arma,apesar de dono de loja.A esposa fora belicosa,implicante.Morreu de que?Jânia ousou perguntar.Caiu da escada,à noite.Tropeçou num tapetinho perigoso.Ela arrepiou-se,imaginando a mulher rolando...Mas a escada do sobradinho dava para o quintal e para a rua,a que horas ela caiu?De madrugada,ia ao pé de capim limão apanhar folhas para um chá,estava insone...

Jânia recostou-se,meio hipnotizada pela voz grave.Moça de capital,usava,claro,chá em sachês,comprados no supermercado.Ele fez-lhe umas poucas perguntas sobre sua separação.Não divorciada,separada."Ah!"O tom,quase de decepção.Será que o patrão estaria pensando que...Fez questão de introduzir na conversa sinais como:"Não pretendo casar de novo","Não estou pronta para namorar".

Com o tempo,no entanto,todas as pessoas comentavam que o Seu Salim da venda(na verdade,fôra vendinha, há vinte anos.Agora era um armazém de secos e molhados,atulhados de tudo) estava namorando aquela moça simpática.Tinha impressão de que todos falavam deles pela sua nuca,pois a impressão de peso sobre ela,andava forte.

Um dia,chegando do açougue(não,aqui não mandavam entregar cortes de carne encomendados,selecionados, prontos para o freezer,como em Belo Horizonte,na zona sul),parou por um momento no hall e ouviu a voz grave de Salim,um pouco alterada,contar:"Então descarreguei o revólver todo,correndo atrás dele.Por quatro meses, no hospital até morrer,os jornais falando que não tinham notícia de quem atirou".Riu .Riram.O visitante também.Jânia,assustada,

voltou pé ante pé e entrou pela lateral,que dava direto na cozinha.

Muito franca, pois após deixar o marido jurara não ficar de nhém-nhém-nhém apenas para parecer que concordava,perguntou a Salim:

-Você tem uma arma?Eu penso que ouvi você dizer que nunca atirou!

Encantado porque ela acabara de retirar o "senhor",o patrão acabou explicando que já tivera,mas que a esposa não gostava,então deixou-a no sítio."Mas você já atirou em alguém?"Sim,no irmão de um jogador de futebol"contou ele animado.A esposa e ele saíam de uma festa,quando o rapaz,que passara a noite olhando para Nina(era a primeira vez que nomeava a esposa),se aproximou alcoolizado e o chamara para repreendê-lo porque,durante a festa,vira quando ele pegara a mulher pelo braço,dizendo que ela estava "dando bola"para o cafajeste."Corri atrás dele,embrenhei por um matagal e quando vi o vulto,pei,pei,pei,atirei até esvaziar o tambor da arma".

Jânia pediu licença e à noite,após jantarem a sós, porque o trio não estava,ela voltou ao assunto:

-Porque me disse que não tinha arma e até atirou em alguém?

Ele afirmou que nunca dissera aquilo."Não suporto armas",rearfirmou a moça e levantou-se da mesa.Ele a segurou,dando um pulo.Passou as mãos grandes e ásperas no rosto,na nuca.Ela sentiu um arrepio de temor,uma sensação de mal estra indefinível,mas forte.Parada e olhando-o nos olhos,para tentar estudar suas intenções,Jânia acabou falando que ia pedir demissão.Salim não estava acostumado a ser contrariado.Disse que teria paciência,a viuvez dele era recente, a separação dela,também.

Mas passou a cobrar que se divorciasse.Que não fosse sozinha aos empórios,ao cinema.Bastaria chamar e ele viria correndo.D.Filhota, a arrumadeira, contou que ele tivera uma namorada no primeiro mês de viuvez e que não desgrudava dela.Muito ciumento.E onde estava a tal?Sumira da cidade,cansada de tantos ciúmes.Ele dizia que ela ria para qualquer pessoa,primos,amigos.

Indagou a Salim sobre essa pessoa,mentiu que alguém na cidade(não, não sabia o nome!)contara que mal a mulher morrera,já estava namorando."Era um caso antigo",disse ele,calmamente.Não era uma história nova.Falava como atenuante,mas para ela era um agravante.Além de ter amante,ainda o confessava sem constrangimento...

Resolveu ir embora.Quando entregava-lhe as contas da casa,seu telefone tocou.Guilherme.Respondeu depressa,disse que ligaria depois.Salim pediu um cafezinho,antes de ir para a loja.Foi buscar.

Mais tarde,resolveu ligar para o ex.Ele mencionara que precisava da assinatura dela para vender um terreno na praia.Procurou o celular,sem encontrá-lo.Indagou a todos,os adolescentes ajudaram a procurar,as empregadas também.No dia seguinte,recomeçou a busca.Abriu

o quarto do patrão,onde jamais entrara.Assustou-se ao ver seu próprio celular na mesinha de cabeceira,com a capinha vermelha a sinalizar perigo.

Foi imediatamente à loja do patrão,esclarecer aquilo."Ao jantar,perguntei se o senhor viu"Ele,inabalável, comentou:"por que voltou a me chamar de senhor?"Sou sua funcionária.Ou melhor,era.Não gosto que invadam minha privacidade.Isso é crime"."Pois sou um criminoso,sabia"?

Estremeceu e disse:"Faça as minhs contas,vou arrumar as coisas".No caminho,o celular tocou,era Gui."Jan,você já está namorando?"A pergunta veio assim que tratou da venda do terreno e ela disse que chegaria "hoje mesmo" em Belo Horizonte.

_Não estou namorando,Gui. você?

-"Pois você tem um fã aí.Ligou-me e disse que você vai casar com um patrão ...Você está trabalhando em casa de família?"

Jânia corou.Ele devia estar impactuado com sua decadência.Ele disse que ela poderia ser gerente de uma das firmas,mas se não quisesse,arranjaria um cargo para ela com outras pessoas."Mas,Jan,doméstica?!"Finalizou dizendo:"Se não for fã,é um fofoqueiro de plantão..."Riu."Não,deve ter sido o Seu Salim"desabafou ela.Contou o assédio contínuo do patrão e Gui aconselhou que saísse imediatamente daquela casa.

Depois de arrumar as roupas em uma sacola,Jânia escreveu um bilhete de despedida para os três e um para Salim.O deste,foi colocar na escrivaninha.Tinha economias,depois receberia o pagamento.Viu as chaves,numa penca,penduradas na primeira gaveta.Ele sempre as mantinha trancadas.Com o coração batendo descompassado,abriu-a.Um revólver grande,antigo,foi primeira coisa que encontrou. Fechou a gaveta,a boca seca,ofegante.Foi à cozinha,despediu-se da cozinheira e da lavadeira,que descascavam ervilhas.A mulher mais nova,sob o pretexto de acompanhá-la,para fechar a porta d hall,disse:"É bom que vá,Seu Salim é um perigo.Desde moço.Toda moça que namora,some.Dizem que manda matar.D.Fátima mesmo,a mulher dele,detestava chá,como disse que caiu porque foi buscar chá?Ela não ia sozinha ao quintal,tinha medo de tudo,vivia apavorada...Cala-te boca"Bateu na boca três vezes e abriu a porta.

Do lado de fora, Jânia tremia e ofegava.Resolveu ir se despedir do Padre.Subiu a ladeira depressa.Teve forte calor na nuca sensível,colocou nela a mão.Úmida,embora o dia estivesse frio.Na sacristia,esperava o padre que estava no confessionário.Demorava e ela naquela aflição.Resolveu deixar mais um bilhete,agradecendo .Foi colocá-lo sobre um grande móvel de ébano,marchetado em madrepérola,o que chamou sua atenção,tal a beleza.Então a nuca se eriçou,como os pêlos de um gato ameaçado.Não teve tempo de virar-se.Um tiro certeiro,saído de uma arma com silencioso,nova em folha,como se diz,atingiu-a na nuca.O atirador se retirou a passos largos.Hora de almoço,ninguém na rua.

O padre,ao chegar,vira a mulher esvaindo-se em sangue.Da nuca, brotava e se espalhava.Devagar,colocou mão vermelha de ácido úrico sobre aquele pescoço lindo, na tentativa de estancar a hemorragia.Só então,se deu conta que estava morta.

Clevane Pessoa,em 22/07/2005