O Que Parou a Cidade

Vou contar um caso, nunca antes narrado, mas que não sai da minha memória desde o dia em que o vivi. Do mesmo modo em que, neste momento, rodeado por lixo de todo tipo, e quando falo lixo, falo da maior podridão que se pode imaginar, se encontra o meu interior. As crianças sobem e descem por entre os destroços. As garrafas plásticas formam entulhos que os olhos não conseguem contar; são a perder de vista. O terreno está tomado por montes de carrocerias destroçadas, sendo amassadas por máquinas pesadíssimas, porque dessa forma aumenta o espaço para mais objetos que não param de chegar. É um entra e sai de caminhões; o barulho infernal parece não incomodar aqueles trabalhadores, já acostumados com a rotina do local. Nesse momento, acaba de desembarcar mais um batalhão de colaboradores. Eles chegam em carros abertos, descem em seus uniformes amarelos, portando cada um máscara contra o gás tóxico que envolve tudo. Tudo pode acontecer, pode a mais terrível notícia alterar a rotina dos habitantes das cidades ao redor; nada vai interromper o frêmito inerente a tudo que se faz ali. O que só não pode ocorrer nas próximas horas é a chuva, pois isto poria a perder todo o esforço já empregado desde as primeiras horas daquela manhã.

O ruído é ensurdecedor; as britadeiras transformam peças maiores e mais resistentes em simples restos de matéria orgânica e o turbilhão de fumaça negra torna o ar irrespirável sem o uso das máscaras.

Nuvens de papéis, impulsionadas pelo efeito mecânico, fazem a alegria dos pequeninos, enquanto as mães, com botas até os joelhos e enormes óculos de proteção se agacham na cata do que, para elas possui algum valor. De um dos caminhões, onde me encontro, consegui contar vinte e oito mulheres, todas com o mesmo tipo de vestimenta: calça jeans extremamente grossa, botas, uma camiseta branca, com manga e sem colarinho e lenço marrom prendendo e escondendo os cabelos. A cor de suas peles denuncia seu tipo de vida; de tão crestadas pela constante exposição ao sol. Muitas, ainda jovens, já trazem o corpo curvado pelo peso dos balaios que precisam transportar para os caminhões. O que se vê ao longe não passa de prédios, abrigos dos produtores de lixo, a civilização. A distância não os permite sequer vislumbrar a felicidade no rosto dos marginalizados pela sociedade consumidora. Tampouco conhecem de perto uma ave de rapina, companheira dos trabalhadores do lixo.

O motorista do caminhão basculante que encosta de marcha a ré para descarregar sobre o montão pode causar um acidente fatal ao fazer desaparecer para debaixo dos destroços uma criança ocupada demais com sua brincadeira para perceber a aproximação do que quer que seja. Elas passam o dia ali, trazidas pelas mães miseráveis que não têm onde nem com quem deixá-las. Percebe-se o estado doentio de alguns meninos barrigudinhos carregados de vermes. Os ratos que passeiam na terra úmida, correm para debaixo das imundícies ou desaparecem quando se veem assustados ou perseguidos; fazem balançar sozinhos os sacos de lixos. Os cacos de vidro deixaram de ser empecilhos para os pequeninos. As gralhas, os pombos quase resvalam suas asas em seus corpos franzinos antes de se esvoaçarem pesados e fartos da comilança.

Os compromissos profissionais me mandaram para bem distante dali; acabei ficando dois anos e alguns meses sem colocar os pés em minha cidade. O que fora sujeira, miséria e degradação, deu lugar ao luxo, à modernidade. De ponta a ponta, o que se vê são mansões a ostentarem riqueza e esplendor. A natureza do lugar modificou-se por completo. Ninguém diria que ali houvera um lixão destoante do modo de vida da população. Não havia mais do que se envergonhar.

Arborizaram-se as alamedas que foram criadas exclusivamente para preencher os espaços desocupados. Passando-se à noite pelo local, de cima do viaduto que circunscreve a área vê-se tudo iluminado. A três praças abundam de gente feliz, indo e vindo. O parque de uma delas possui a maior roda gigante da cidade. Os carrosséis enchem o ar de magia e de encanto os pequeninos da classe média. Os carros que passam por cima escolhem os seus destinos à medida que começam a descida. Podem seguir em frente, pegando a estrada que sai da cidade ou virarem à direita e assim dirigirem-se ao que antes eram montanhas de lixo a e agora é o espetáculo da modernidade. O prédio mais suntuoso e significativo da grande transformação é o que mais atrai visitantes.

Ali está instalado o maior shopping center da cidade. Dezenas de lojas formam esse complexo. As pessoas, adolescentes, casais, jovens e velhos, aglomeram-se nos corredores, veículos fazem fila, aguardando uma vaga no amplo estacionamento. Fiquei bastante surpreso com a rápida e radical mudança de cenário e fui para casa relembrando o passado recente, as cenas que vivenciei e assombrado com a rapidez em que, pela mão do homem, tudo pode se transformar. Precisei novamente viajar e deixar minha cidade, mas, quando retornei, meses mais tarde, vi algo que me deixou pensativo. Havia, espalhados por todas as entradas do shopping center, cartazes afixados por funcionários da defesa pública do estado com o apoio da prefeitura local, que, em letras garrafais, expunham a mensagem: “FECHADO POR TEMPO INDETERMINADO”.

Em baixo, em caracteres menores, a explicação do que estava acontecendo. Por ter sido, o shopping center erguido sobre um terreno que, antes, fora um lixão, o perigo de explosão era iminente e, por segurança, decidiram, as autoridades, fechar o complexo e manter isolada a área. Tenho que passar por ali diariamente ao guiar para o escritório da empresa para a qual presto serviço. Dois dias após o fechamento, acabei por perder meu horário e o atraso deveu-se a onda de protestos de manifestantes insatisfeitos com a decisão que fora tomada.

Guardas uniformizados protegiam a entrada do edifício. As portas de aço levantadas expunham o interior, visível através do vidro, com algumas lojas a meia porta, sem movimento, mas com funcionários, como se a espera de uma mudança de decisão a qualquer momento. Eu saíra do automóvel para fugir do calor e do estresse; acabei, sem querer, participando do movimento e me tornei testemunha de insatisfações e ira.

- Veja o senhor, moço - me dizia uma senhorinha escura bem ao meu lado -o que estão fazendo aquelas pessoas lá dentro? Se o prédio pode explodir, deviam proibir a todos de permanecer lá, o senhor não acha?

- Não tiro a razão da senhora. Mas, não esqueça de que também seríamos atingidos; estamos em zona de perigo tanto quanto eles.

- É! Acho que não estão nem aí para as pessoas; querem mesmo é aparecer. - Dizendo isto, se afastou sorrateiramente para o outro lado da rua.

Comecei a me incomodar com o alvoroço. Aos gritos de protestos enfurecidos da massa juntavam-se as buzinas dos motoristas congestionados. As pessoas suavam profusamente; não se vexavam de exibir suas axilas manchadas ao manterem erguidas as faixas de reclamação. Os copos descartáveis, hauridos, voavam das lixeiras que já não mais o cabiam para se esparramarem na grama do passeio, o sorriso dos ambulantes era fácil e destoavam por completo das fisionomias preocupadas da grande maioria. O futuro incerto era motivo de insatisfação. A imprensa entrevistava manifestantes, o câmera esforçava-se por captar, com os movimentos limitados pela grande aglomeração, lances e imagens dignos de uma boa reportagem. O administrador do shopping center, ao ser solicitado veio para fora, sob aplausos da multidão, aplausos que só fizeram se intensificar com suas declarações a favor da reabertura do comércio em nome dos trabalhadores e do público privado de sua doença comum: o consumo.

Ao contrário desta acolhida deu-se a ira e a indignação do povo na chegada do helicóptero com o prefeito e sua turma. Os gritos começaram com a aproximação e o pouso da nave no heliporto do edifício. Ouvi desejos sussurrados ao redor de mim que seria aquele o momento ideal para uma explosão que, certamente iria entrar para a história. Só não pude apoiar a ideia porque os que se encontravam dentro do prédio não mereciam isto. mas, pensado bem, jamais apoiaria este tipo de concepção.

Uma ordem é uma ordem e, ao contrário do que esperavam os mais otimistas, obrigou-se a todos que se encontravam dentro do prédio a abandoná-lo imediatamente. Segundo declaração do prefeito, fora feita, de madrugada, inspeção geral e rigorosa em todo o edifício. Verificou-se cada centímetro de parede, depósitos de gás, tubulações, galerias e subsolo. Equipamentos moderníssimos de medição, sensores e outros aparatos foram utilizados para estudo e previsão de acidentes. A ordem expedida pelo ministério público deixou aos já insatisfeitos totalmente frustrados. Ao fim da entrevista e da confirmação da ordem judicial, carros da polícia de choque fizeram ouvir ao longe suas estridentes sirenes abrindo caminho na intenção de conter desvios comportamentais de panfletistas revoltosos.

Formou-se a bulha; cantaram os cassetetes e só não sobrou para o prefeito porque foi ele o primeiro a sumir com sua equipe para dentro do edifício e levantar voo para a segurança do seu gabinete. Dezenas de prisões e de processos decretaram o fim das manifestações e a noite veio com sua calma habitual. Tudo ficou no abandono.

A área isolada circunscrevia um diâmetro que ultrapassava um quilômetro, tal o perigo que poderia representar uma explosão. Os garis da companhia de limpeza desceram, na manhã seguinte, do caminhão que estacionara bem próximo, despachando-os para o recolhimento da lixarada. Um deles, em meio à varredura, bem próximo à entrada do prédio, largou o que vinha fazendo e correu esbaforido para o caminhão, comunicando o que ouvira. Estalidos ocorriam na estrutura como sinais de que algo estaria para acontecer.

Abandonaram a área imediatamente. Parecia um filme com efeitos especiais quando, horas mais tarde, o estrondo e o fim de uma dúvida. Os que testemunharam jamais irão esquecer. Sobre o viaduto que se avizinha a fila de curiosos fez parar o trânsito mais uma vez. O ar turvou-se pela fumaça acinzentada dos destroços desgovernados indo para o ar e para todos os lados. Poucos minutos foram suficientes para fazer do que era um arrojo de construção um mar de destruição. Só mesmo a proteção vinda dos céus, onde agora se juntavam as ondas do gás tóxico impelido pela catástrofe, evitou maior tragédia, o que seria imperdoável. Fica o prejuízo material, bem merecido pela imperícia de colocar o lucro na frente da cautela e da segurança do cidadão.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 19/05/2012
Reeditado em 25/05/2012
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