O Encontro
A estória que vou narrar-lhes é sem dúvida fora do comum, não peço que vocês acreditem, seria pedir demais, já que eu mesmo que participei daquela noite sinistra, não consegui ainda digeri-la como realidade. Os fatos acontecidos povoam minhas lembranças como se fora um sonho ruim, um pesadelo, mas, não se enganem, foi real, assombrosamente real. Tenho duas testemunhas oculares dessa noite, e eles poderiam muito bem confirmar toda a estória, porém, eles enlouqueceram e estão internados em sanatórios psiquiátricos longe de qualquer contato com a vida aqui fora.
Eu venho de uma cidade grande e extremamente urbana, no entanto, naquela época eu residia numa pequena cidade interiorana de pouco mais de sete mil habitantes onde a agricultura e a pecuária era a maior fonte de renda. Vivia ali devido minha paixão obsessiva pela carreira policial, o que me levou, depois de me formar em Direito, tentar concursos específicos para delegado de policia civil. Fiz tantos concursos sem conseguir êxito para trabalhar em cidades grandes ou próximas dos grandes centros, antes de finalmente conseguir passar, que já estava quase jogando a toalha diante de tantos fracassos e frustrações. Também sofria com a autopunição por não ser capaz de realizar meu sonho profissional e me sentido indigno por ainda não conseguir me manter com meus próprios recursos e o pensamento de ter que trabalhar no escritório de meu pai me aterrorizava por ser o contrário de tudo que eu sempre almejei. Diante de tantas aflições e a da autoestima descendo bueiro abaixo, resolvi mudar um pouco o meu foco e fazer algumas mudanças, as principais de cunho pessoal, em relação a minha família e a meu pai. Apesar de amá-lo muito, nossas ideias conflitavam em muitas ocasiões e eu estava decidido a fazer minha carreira longe da influência familiar, inclusive, não assinando mais meu sobrenome por extenso, um sobrenome muito conhecido e respeitado na região em que eu morava. Eu, então, decidi ocultá-lo na minha assinatura colocando somente a primeira letra dos meus dois nomes do meio. Comecei assinar meu nome desta forma: Ronaldo F. L. Souto. Curiosamente, essa sutil modificação me renovou as forças e senti-me mais aliviado e esperançoso com a vida, como se um grande peso que eu carregasse saísse de minhas costas. Outra decisão que tomei foi procurar lugares mais afastados onde a concorrência era animadoramente menor e o fardo familiar distante. Deu certo. No primeiro concurso que fiz passei em primeiro lugar, e lá fui eu para Poção dos Anjos no estado de Sergipe. Fiquei por lá durante três anos. Poção dos Anjos é uma cidade a beira do rio São Francisco numa região de sertão, onde a seca castiga todo ano, tendo períodos sem chuva de quase seis meses. A cidade é conhecida por Poção dos Anjos devido a uma cachoeira que se avoluma no inverno, fazendo com que sua queda d’água, de quase trinta metros, encha um enorme buraco - que passa mais da metade do ano seco -, com água fresca e cristalina por pelo menos dois meses, voltando a esvaziar até sua última gota no fim do mês de setembro. Nessa região as chuvas ocorrem com muita frequência entre junho e agosto, o clima de lá é conhecido como uma variação do clima temperado mediterrânico, ou subtropical seco, os verões são quentes e secos e os invernos frios e chuvosos. Esse poço, segundo uma lenda passada de geração em geração, através dos moradores mais antigos, seria o lugar em que anjos caídos se banhavam para tirar qualquer resquício do Paraíso que eles pudessem trazer impregnadas em suas asas, esse banho era acompanhado do olhar maledicente e dissimulado do próprio lúcifer, a quem esses anjos faziam reverência antes de se tornarem escravos fiéis do rei da escuridão. Eu me divertia bastante ouvindo esse tipo de crendice popular. A vida era relativamente tranquila em Poção. Não tinha muitas diligências para fazer, as ocorrências mais comuns eram reclamações sobre bêbados vandalizando na rua, brigas de marido e mulher e vez ou outra algum episódio mais perigoso, como roubo de gado e de motos por bandidos com certa periculosidade, o que requeria um trabalho mais condigno com a profissão de delegado. A delegacia era modesta e os recursos precaríssimos. Tínhamos um carro, um Fiat Uno velho, um computador defasado que travava a cada dois dias e as acomodações eram muito ruins. A casa que servia de delegacia era velha, tinha paredes descascadas mostrando os tijolos, não tinha forro e muito menos laje, muitas das telhas estavam quebradas devido à quantidade insuportável de gatos que andavam sobre ele, e o fedor de urina e fezes desses bichanos empesteavam o ambiente. Contudo, eu não dava a mínima importância para isso. Eu estava muito orgulhoso de mim mesmo para me preocupar com pequenos detalhes. A vida calma, sem muitas tarefas para realizar, me dava oportunidade de estudar bastante e escrever. E eu estudava e escrevia com volúpia.
Certo dia, num sábado preguiçoso por volta das duas da tarde, eu recebi a ligação avisando que o padre Gomes tinha morrido. O padre Gomes na verdade era um ex-padre. Ele tinha largado a batina há muitos anos, e vivia numa casinha carcomida pelo tempo no Alto da Pedra, um minúsculo lugarejo fincado ao lado do poço que dá nome a cidade. Esse povoamento foi começado há mais de trinta anos pelo padre Gomes, tornou-se uma pequena comunidade que sobreviveu algum tempo com recursos próprios, através da caça e da venda de artesanatos feitos pelos religiosos que compunham aquela espécie de seita. As peças eram pequenas esculturas de anjos e diabinhos, feitos em barro. O lugar durou muito pouco e há quinze anos o único morador do Alto da Pedra era o padre Gomes. Nos três anos que morei em Poção só o vi uma única vez, e ele me pareceu ser meio amalucado. Ele ostentava uma longa barba branca e andava apoiado num grande pedaço de madeira na forma de um cajado dos antigos pastores de ovelhas. No dia em que o vi, ele estava vestido em farrapos acinzentados, mas mantinha uma postura reta e altiva como a de um guerreiro e sua lança. Carregava em seu olhar toda a petulância e arrogância que só os loucos possuem. O corpo foi encontrado por dois jovens que caçavam teiús pela região e foram até a cabana do velho pedir um pouco de água para refrescar o calor escaldante do meio-dia. Lá chegando sentiram um forte odor de putrefação e quando entraram no barraco descobriram o velho padre sentado em sua cadeira de balanço, mortinho da silva e fedendo muito. Eu como delegado da cidade, e já farto de tanta calmaria e me encontrando ávido por emoção, ofereci-me a fazer o translado do corpo do velho pároco. Para isso precisava de ajuda e resolvi ligar para o doutor Juarez. Doutor Juarez era o médico da família da cidade há mais de vinte anos, chegou à cidade quando tinha 26 anos e nunca mais saiu. Para minha sorte consegui encontrar ele em casa, o que realmente era raro para um sábado à tarde, Juarez não costumava passar os fins de semana na cidade, ao contrário de mim, ele, não tinha a menor paciência para aquela modorra dos fins de semana. Ele gostava de movimento, de barulho e de diversão. Ele ficou muito sentido com o acontecido, mas quis se esquivar de me acompanhar até o local que estava o defunto, alegando que não era do IML, e não tinha nenhuma obrigação de se deslocar até onde estava corpo. Tive que usar todo meu poder de persuasão para convencê-lo, na verdade tive que fazer certas ameaças para que ele cedesse. Tive que dizer que sabia muito bem dos seus encontros com a filha de Duca de Vilermando, e que a menina só tinha quinze anos, enquanto ele tinha quase cinquenta, e que isso era caso de policia, além dele ser casado, mas, que eu faria vista grossa se ele me acompanhasse até o local. Enfim ele cedeu, não antes de me chamar de chantagista. A minha sede por ação era tão grande que atenuava qualquer crise de consciência que ameaçasse aparecer pela minha falha de caráter, mesmo que essa ação fosse resgatar um corpo morto e apodrecido no alto de uma serra. Depois de alguns minutos já nem lembrava mais das covardes ameaças que tinha feito a Juarez e tentava puxar uma animada conversa com ele quando estávamos dentro do carro na direção da serra da Pedra. Estávamos ele, eu e uma maca, que foi pega emprestada na ambulância da cidade, dentro do Fiat Uno branco da polícia. Logo atrás, numa moto, vinha o sargento Getúlio.
Chegamos à entrada do sítio de seu Cruz e paramos. De carro só se avançaria até ali, o resto do percurso seria a pé. Caminharíamos por uma íngreme trilha, durante três horas, até a cabana do ex-padre.
Eu estava muito excitado, como um garoto preste a acampar com seus amigos escoteiros, e falava pelos cotovelos. Pegamos a maca, duas lanternas e um candeeiro a querosene. Já passava das quatro da tarde e certamente seria noite sem lua quando chegássemos á casa do ex-sacerdote. Eu me voluntariei para levar a maca, ela era leve e dobrável, o que facilitava de ser carregada. Na frente ia o doutor Juarez, no meio eu e atrás o sargento. Eu vinha falando como aquele lugar era bonito e procurando e mostrando passarinhos nas árvores. Minha agitação não era compartilhada pelos outros trilheiros que seguiam o caminho absolutamente em silêncio. Depois de uma hora de caminhada acabei me calando, não estava acostumado a andar tanto, e comecei a sentir os efeitos na minha respiração, andando sem falar se tornou quase que obrigatório. A luz do dia foi caindo aos poucos, o sol baixando mansamente e a escuridão chegando com força e rapidez. Os sons noturnos da mata começaram a cantar em nossos ouvidos e eu me concentrei neles. Distingui o canto de um sabiá-laranjeira e de um tico-tico, mais o que mais me chamou a atenção foi um canto melodioso e melancólico que achei ser de uma coruja, no entanto, o sargento Getúlio, conhecedor de pássaros como poucos, me corrigiu dizendo que era o canto de um urutau. Fomos seguidos pela melodiosa e arrepiante ladainha do urutau até chegarmos ao poço. Quando avistamos o buraco quase seco,- estávamos no começo de setembro e já não chovia como nos meses anteriores -, todos os sons que nos enchia os ouvidos cessaram, e até mesmo o vento estancou. As folhas pararam de balançar e o ar ficou denso, tão espesso que podíamos vê-lo como se fosse uma espécie de nevoeiro com cheiro forte de enxofre, como se milhares de fósforos estivessem sido acesos ao mesmo tempo expelindo a fumaça de sua combustão. Perguntei ao doutor o que seria aquilo, o doutor não soube responder e disse que nunca tinha presenciado nada daquilo antes. A névoa aumentou consideravelmente e eu não mais via o doutor que ia a poucos passos a minha frente, levantei a lanterna que eu segurava em uma das mãos até a altura dos meus olhos e não vi nada, só a fumaça branca e pestilenta. Um frio congelante baixou sobre nós. Fui tomado por uma forte sensação de tristeza que me mordeu o peito e abriu um vácuo em meu estômago. Minhas entranhas derreteram como manteiga em panela quente, senti o medo se apoderar de mim. Naquela hora tive vontade de rezar e pedir a ajuda de Deus, só que eu não sabia rezar e tão pouco acreditava em Deus. Senti inveja da fé inabalável de minha mãe, por que por mais que eu não aceitasse a existência de um criador, e por conta disso também ignorasse completamente qualquer força maligna metafísica, eu, naquele momento, me sentia completamente envolto por uma força estranha e ruim que me afligia e me angustiava, e talvez, só a crença em algo superior pudesse me confortar. Ouvi o choro compulsivo e soluçado do sargento Getúlio. Tentei falar com ele, entretanto, não conseguia, e também não o via, e não identificava de onde vinha o choro. O doutor Juarez que estava a minha frente começou a orar baixinho, eu podia ouvi-lo, mas, não o via. Suas preces baixas e ritmadas passaram para um praguejar alto e sem sentido e findou num grito desesperado, grave e terrivelmente doloroso. Depois disso, silêncio total. Eu já não conseguia mais mover minhas pernas, elas estavam como se estivessem enraizadas na terra embaixo de mim. Foi então que olhando para o lado do poço eu os vi. Eles eram pouco maiores que crianças de dez ou onze anos, tinham uma cor amarelada e desbotada, eram cinco, estavam lado a lado, com suas asas abertas, asas como de morcegos, coladas na lateral de seus corpos, começando nos pés e terminando nas mãos. Eles tinham feições humanas e emanavam uma perversa melancolia de seus olhos vermelhos e tristes. Fiquei petrificado e quase sem respirar, tentando não fazer o menor ruído. Depois de alguns longos minutos, tão longos quanto à eternidade, comecei a me mover cuidadosamente, sem tirar os olhos daquelas criaturas. Eu tinha que me retirar dali de qualquer jeito, algo me dizia que eu tinha que sair dali. A sensação era de emergência, uma emergência vital. Quando comecei a dar meu segundo passo para longe do poço vi as criaturas inclinando seus corpos para frente, todos ao mesmo tempo, numa sincronia demoníaca, num comprimento cheio de mesura. Foi quando eu compreendi. Voltei meu rosto para frente e ele estava lá, a um palmo de minha face. Olhando fixamente para meus olhos. Não consegui ver detalhes, ele se camuflava no ar da noite e a pouca luz que existia no local passava por ele. Ele não tinha cara de monstro, suas feições eram humanas. Tinha um rosto sombriamente delicado, com contornos suaves e seus cabelos cacheados vinham até o ombro. Ele era alto, muito mais alto que os outros cincos, muito mais alto que eu, que tenho um metro e oitenta, ele deveria ter uns dois metros de altura. Suas asas repousavam em suas costas, elas eram diferentes das dos outros, elas começavam em sua escapula e desciam uma de cada lado até roçarem o chão. Seus olhos eram frios e doentios. Incrivelmente meu medo se dissipara, a única coisa que sentia era admiração, e também sentia todo o poder que aquele ser infernal exalava. Os pequenos que estavam no poço levantaram voo silenciosamente. Ele, o maior deles, o chefe daquelas criaturas aladas, andou em minha direção e me atravessou como se eu fosse fumaça, uma sensação de estar caindo tomou conta de mim e antes que eu perdesse totalmente os sentidos eu o vi abrir suas deslumbrantes asas e subir lentamente desaparecendo por trás da queda d’água, então desmaiei. Acordei muito tempo depois dentro de um quarto de hospital. Fomos achados por uma comitiva, que foi atrás de nós avisados por dona Doda, a mulher do doutor Juarez, que desconfiou da nossa demora e reuniu algumas pessoas para nos procurar. Até hoje tenho crise de amnésia relacionada a esse acontecimento. Não lembro o que foi feito do corpo do padre Gomes. Quando pergunto sobre os meus companheiros de aventura, me dizem que eles enlouqueceram e vivem hoje internados num manicômio. Não sei há quanto tempo foi isso, eu não sei se foi ontem, ou há cinquenta anos, às vezes acho que ainda vai acontecer. Só sei que sai daquela cidade e vim para uma delegacia perto da casa dos meus pais. Eles frequentemente veem me visitar. Minha mãe sempre trás um bolo e uma bíblia e nós comemos e oramos. O episódio com os demônios mudou minha visão sobre Deus, se existem aquelas coisas, então, sem dúvida Deus também existe. Escuto um barulho vindo atrás de mim, viro e vejo que são meus dois novos companheiros aqui da delegacia. O soldado Nilo e o sargento Messias. Eles são dois negrões altos e fortes e vivem enfiados em roupas brancas. Até hoje não entendi o motivo daqueles trajes. Eles se aproximam. Messias, o mais alto deles, fala:
_Doutor Ronaldo, estávamos lhe procurando, o que está fazendo aqui neste computador?
_Estou aqui escrevendo aquela estória que vocês já conhecem, estou pensando em escrever um livro sobre isso. Respondi. Eles se olham e riem. O soldado Nilo me oferece uma balinha bem pequena de cor verde, fiz menção de recusar, por alguma razão a visão daquele doce não me agrada, ele insiste e põe em minha boca e me faz tomar um copo com água. Andam comigo, um de cada lado, segurando cada um em um braço. Eu olho para os meus pés e vejo que estou descalço, acho aquilo muito estranho, todavia, o sono que sinto faz com que eu não consiga pensar em nada. Sou levado até a minha sala particular na delegacia. Eles ficam na porta me olhando e eu vou me deitar. Minha mãe daqui a pouco vem me visitar com um bolo e com a bíblia, eu preciso orar, preciso conversar com Deus, preciso falar do eu vi a ele. O som metálico da grade da cela do Hospital Psiquiátrico se fecha estridentemente ecoando pelo corredor, eu não escuto, já estou dormindo.