O Corvo
Seu nome era Estácio, ele tinha quinze anos e todos o conheciam como o Corvo. Ele recolhia lixo pelas ruas da cidade. Preferia a noite ao dia. Não que quisesse passar despercebido, e se esconder na escuridão para não ser notado, não precisava disso, ele nunca era visto, mesmo de dia, mesmo na frente dos outros, mesmo pedindo licença a alguém para apanhar uma lata, ou uma garrafa pet, as pessoas não o enxergavam. Ele era socialmente diáfano, praticamente imperceptível, invisível ao olhar cotidiano. Ele passeava pela escuridão com desenvoltura. Abrindo e fuçando lixeiras, como um vira-lata que anda em duas patas, ele recolhia tudo que pudesse ser reciclado, vendido ou comido. Quanto à comida, não fazia cara feia para nada, comia o que tivesse, até mesmo alimentos em decomposição, muitas vezes proporcionando engulhos em quem estivesse por perto. Nestes momentos, ele sorria mostrando sua fileira de dentes ainda hígidos e brancos como marfim, contrastando com sua gengiva enegrecida. Seus dentes eram fortes e bons como os de um cavalo de raça. Sua pele era negra como azeviche, na cabeça tinha um ninho crespo e lanoso, que de tempos em tempos ele mesmo rapava. Seus olhos pequenos e vivazes de passarinho davam fé de tudo. Tinha o corpo miúdo, magro e enganosamente frágil. Não obstante a aparência debilitada, sua esperteza, inteligência e agilidade de movimentos eram notáveis. Entrava e saia de lojas e casas, cometendo pequenos furtos, com habilidade gatuna. Subia em muros e árvores tão rápido quanto um primata. Aprendeu a ler e a escrever sozinho e sabia somar como um contabilista. Tinha personalidade forte e não levava desaforo para casa. No entanto ele não tinha casa, e por isso mesmo resolvia tudo ali, na rua, na hora. Muitas vezes sua frieza e crueldade, adquiridas por toda uma vida de rua, antagonizavam com sua insuspeita simpatia. Sua alcunha de Corvo foi colocada não só por sua sagacidade e cor, mas também pela sua estranha condição de anunciar maus presságios. Ele sempre pressentia uma tragédia iminente. Foi assim no dia que seus pais e dois de seus irmãos foram carbonizados em baixo do viaduto que eles moravam, também foi assim com Alice, sua namoradinha de infância, quando ela foi apanhada pela polícia e nunca mais foi vista, e também quando foi abusado pela primeira vez dentro do reformatório de menores e em muitas outras ocasiões. Ele sempre sabia quando uma desgraça aconteceria, só não conseguia evitá-la, mas ele sabia, podia sentir o mau em todas as suas densas vibrações. Começava com um embrulho no estômago, ânsia de vômito e uma paralisia corporal de alguns minutos, depois disso uma descarga de adrenalina eletrizava seu coração fazendo com que transpirasse abundantemente. Pouco depois dessa angustia ele tinha certeza que algo muito ruim aconteceria. Era tão certo como o nascer do sol todas as manhãs.
Já passava das 23 horas e uma forte chuva se anunciava. O céu clareava com relâmpagos e os trovões trombeteavam a chegada da tempestade. Ele estava na rodoviária da cidade jantando as sobras que um comerciante que receptava seus furtos lhe ofertava todos os sábados como parte do pagamento pelos seus serviços. Terminou seu banquete semanal e pensou que era demasiado tarde para voltar ao centro da cidade, refletiu por alguns minutos enquanto fumava, com certa fidalguia, depois da satisfação da fome amenizada, olhando as nuvens que se aglutinavam no céu. Decidiu ir até a detenção de menores que ficava a poucos quilômetros dali. Lá poderia se abrigar da tempestade e dormir numa cama macia e seca, além de passar a noite com sua irmãzinha Lenora, de nove anos, a única, sem contar com ele, que conseguiu sobreviver ao pirômano que inflamou o restante de sua família. Correu em direção à mata que separava a rodoviária do internato, seguindo na trilha muito conhecida e por tantas vezes percorrida durante as muitas fugas do presídio juvenil. Estava no seu nicho mais aprazível, camuflado pelas trevas e protegido pela vegetação, desta forma sentia-se seguro. Deslizou pela escuridão com a leveza de uma ave noturna que plana no ar. Uma hora mais tarde chegou à cerca lateral do reformatório. Rodeou-a e foi para os fundos do prédio, entrar por lá era mais confiável. A frente da detenção era o lugar mais vigiado, ali perto ficava a ala dos internos mais perigosos, e por isso existiam duas guaritas sempre com dois homens armados em cada uma, em contrapartida, os fundos eram negligenciados, só de hora em hora um guarda passava em ronda. Ele tirou o papelão que cobria o estreito e curto túnel que conduzia, por baixo da cerca, ao interior do Bloco. Arrastou-se pelo buraco e entrou. A poucos metros de chegar ao pátio à chuva precipitou-se sobre ele. Correu e protegeu-se na cobertura do corredor que levava ao dormitório infantil. O silêncio era absoluto e os corredores estavam vazios. O vento que se juntou ao pé d’água zunia como o uivo de um lobo triste. A ala das crianças era precariamente vigiada, e o Corvo assiduamente fazia visitas clandestinas a sua irmã. Ele passou silenciosamente pelo senil vigia que dormia sentado em uma cadeira a sono solto, boca aberta e roncos altos, com a cabeça caída para trás do encosto fazendo com que seu pescoço ficasse esticado, seu pomo de adão subia e descia lentamente no ritmo de sua respiração. Seus braços estavam largados ao lado do corpo e os dedos de suas mãos por pouco não encostavam ao mármore do piso. Ele está com o uniforme azul da empresa de vigilância e sua arma descansava despretensiosa e menosprezada em cima de seu colo. Ele, o Corvo, segue pelo longo corredor até o quarto de sua irmã, a segunda porta a direita do corredor. Ela dorme em uma das camas da fileira da esquerda bem perto do janelão do final do quarto. Ele caminha cautelosamente sem emitir nenhum ruído e para sua surpresa vê que Lenora não estava em seu leito. Nessa hora ele é atingido pela agitação física que precede suas premonições, imediatamente pensa em sua irmã e em seu Romão, o diretor da casa. As lembranças do vilipendio e do estupro povoam sua cabeça, ele esfrega com asco suas mãos pelo corpo como se quisesse tirar algo imundo que lhe cobria a pele, sempre se sentia sujo quando tinha essas recordações. Saiu rapidamente do dormitório. O suor escorria pelo seu corpo. Seguiu pelo corredor e pegou sorrateiramente a arma deitada sobre o ventre do velho que ressonava. Correu silenciosamente com a arma em punho até a sala da direção, era ali naquele cubículo com chão de carpete verde e paredes úmidas cheirando a mofo que acontecia os abusos. Ao chegar ao local viu a luz de dentro da sala acesa. Controlou seu ímpeto e aproximou-se lentamente da porta do cômodo, olhou para dentro do quarto pelo basculante de vidro na parte superior da porta e viu o decrépito homem de calças baixas e a mão de sua irmã segurando o membro rígido do canalha pedófilo. A pequena Lenora exprimia nojo e pavor em suas faces. Ele entrou no quarto e fechou a porta com violência atrás de suas costas. O diretor assustou-se e se virou de forma atabalhoada, quase caindo. Levantou em um único movimento suas calças arriadas e se recompôs. Lenora imediatamente correu para o seu irmão e escondeu-se atrás dele. O libertino diretor tinha uma barriga agigantada pela gula e a preguiça, bigodes amarelados de nicotina, cabelos ralos escurecidos por tintura barata, olhos doentios e frios. O Corvo repugnou-se. O homem olhou com cara cínica para o menino franzino a sua frente reconhecendo-o de imediato. Escancarou um sorriso torvo e amarelado e disse:
_O que está fazendo aqui seu tiziu dos infernos?
_Eu sou o Corvo.
_Ah sim, eu me lembro de você perfeitamente sua ave agourenta. Lembro que você e eu brincávamos aqui em minha sala, lembro-me também de como você gostava, meu menino. O Corvo levantou a arma na altura da cabeça do homem, que recuou um passo sem se desfazer da expressão lasciva e continuou falando:
_Baixa essa arma minha criança e venha se juntar a nós nessa festinha, sua irmã é muito mais esperta que você, aprende muito rápido e suas mãozinhas são muito ágeis e macias. O Corvo nada dizia, apenas olhava placidamente com a arma firmemente apontada para o crânio do homem. O diretor enfureceu-se e vociferou
_Solta logo essa arma ou vou cortar sua garganta e dessa putinha preta, seu filho de uma rampeira! Antes de matá-los vou me aproveitar bastante dos dois. Soltou uma sonora gargalhada. Lenora chorava e se agarrava ao irmão desesperadamente. Então o Corvo disse:
_Nunca mais. Um estampido ecoou por todo o pequeno compartimento, seguido de um baque surdo de um corpo que caia e encontrava o chão. Sangue escorria da testa do homem sem vida. Ouviram-se gritos e correria. Os guardas chegaram ao local rapidamente, mas já era tarde. Ninguém viu dois pequenos vultos entrelaçados que se esgueiravam na escuridão e se embrenhavam na mata, engolfando-se na alma da noite a procura de proteção. A chuva cessou e o céu estrelou-se.