Encrenca
Riu o riso amargo que era sua especialidade. Curto e abafado, encerrando com um suspiro. Sentia-se um idiota de se ver naquela situação mais uma vez. Se qualquer um de seus pacientes pudesse imaginar que ele estava fazendo aquilo, sua carreira estaria ameaçada. Voltou a questionar o moleque: vai conseguir? Claro, tranquilo, calma, é o que já havia escutado várias vezes. O telefone tocou, estou resolvendo, vai dar certo. Estava nos fundos de um bloco de lojas, numa rua onde ficava um bar frequentado por um acervo inusitado de desajustados sociais, o que propiciava o ambiente ideal para vicejar a selva do varejo de drogas a céu aberto.
Era o último recurso de qualquer usuário: caro, arriscado e a qualidade era muito variável, embora nunca realmente superior. Por isso Jonas estava ali de madrugada, quando a coca que um amigo conseguiu de dia já havia acabado. Sabia que o comportamento era doentio, sabia que a substância dominava sua vida, que mesmo assim seguia adiante com seu consultório e todas aquelas bocas abertas. Todos os demais espaços eram tomados pelo vício, e sua vida afetiva há muito era nula. Ironicamente, estava pensando naquele mesmo momento numa paciente que atendera à tarde. Era uma balzaquiana solteira, mais charmosa que bonita, e simpática, despojada. Ela fizera questão de perguntar seu estado civil, o que já é um sinal. Estava decidido a convidá-la quando acabasse o tratamento, mas aquilo realmente não importava muito. Talvez fosse o único benefício do pó, esboçou mais um sorriso auto-irônico.
O mesmo moleque apareceu pela décima vez com a mesma resposta. Eram sempre crianças de dez anos ou menos que operavam a banca, uma cena dantesca, e todos já o conheciam muito bem. Naquela noite, por algum motivo, ninguém tinha nada para vender: problemas de logística são naturais nesse ramo de atividade. Nenhuma novidade para Jonas, que apesar do hábito nunca conseguiu ter uma fonte estável de abastecimento. O pivete que sumia e aparecia, numa camisa de time muito maior que ele, tinha prometido que alguém ia conseguir, e ele já estava ali havia vinte minutos.
Foi quando surgiu um, um pouco maior, devia ter quatorze ou algo assim. Chamou-o no canto, alcançou por trás de um cano, e mostrou um embrulho de plástico branco, enquanto dizia rapidamente, como alguém que tinha consumido, talvez, que tomasse cuidado, estava muito perigoso. De fato, espiando por uma abertura por onde se podia ver a rua, um carro de polícia pôde ser visto passando. Ele deu o preço, Jonas regateou e conseguiu um pequeno abatimento. Deu o dinheiro e pegou a parada. Esboçou um movimento para abrir o saquinho, e foi quando o menor o repreendeu com veemência: tá louco, não abre isso aqui não. Ainda bateu boca com ele.
Há uma glândula no cérebro que atua sempre que você está na iminência de ser enganado, e garante que você seja enganado. Um drogado com a quilometragem de Jonas aceitar comprar qualquer coisa sem se certificar de que minimamente corresponde à expectativa, ou seja, de que é uma lebre e não mais um gato, é uma infantilidade tremenda. Dá vontade de cheirar tudo e fingir que não caiu como um pato. Tudo isso ele repetia para si mesmo dentro do carro, depois de ter atestado sua idiotice. Esmurrou o volante e gritou irado para aliviar a tensão. Era inútil voltar lá, os delinquentes já haveriam sumido.
Mas eles sempre voltam, e ele não estava disposto a simplesmente aceitar aquilo. Foi para casa onde o amigo compadeceu-se do logro sofrido por Jonas, mas lamentou muito mais a expectativa frustrada de mais algumas carreiras. Ocorre que esse amigo tinha uma arma, e Jonas insistia que ele a buscasse para voltar ao local do golpe. Ele tentou demover o dentista, não valia a pena mexer com essa gente: vamos dormir, tem aquela história que deve rolar amanhã e a gente fica de boa.
O amigo foi embora, ele se deitou sabendo que não conseguiria dormir, pelo que já havia cheirado e pela raiva que o consumia. Entre sucessivas iterações do plano de vingança, chegou a passar por sua cabeça que essa experiência deveria servir para que ele se convencesse de que aquilo tudo estava errado, de que deveria buscar ajuda para superar a dependência. Restava saber qual ideia prevaleceria pela manhã.
Acordou sem a dose que o "ajudaria" a trabalhar por horas, e durante o desjejum, café preto e cigarro, estava extremamente irritado. Lembrou-se da ideia de tentar parar, mas mais uma vez a resposta foi amanhã ou semana que vem. Ele tinha pelo menos que se livrar daquela ideia fixa. Se eu der um fim em um traste daqueles, quem vai se importar? Muita gente me agradeceria. Eu nunca pensei assim, eu dependo deles, afinal, mas agora é pessoal. A primeira coisa que disse à secretária (bom dia estava fora de questão) foi para cancelar todos horários da tarde.
Tinha dificuldades para se concentrar, tremia, e não atendeu o terceiro paciente, incumbindo a funcionária de inventar qualquer desculpa. Ligou para alguns amigos, e nem tão amigos, até descobrir alguém que tinha pó. Ele ia almoçar em casa então deu tudo certo: conseguiu dar pelo menos dois tirinhos até que a grande transação se efetivasse. Dirigiu quase uma hora até uma cidade próxima; havia lá uma feira especializada em produtos roubados e todo tipo de pequenas e grandes ilegalidades. O que ele procurava obviamente era a arma que o amigo lhe negara. Não foi difícil, nem foi muito caro, um clássico trinta e oito. Aquilo já estava mais caro que assumir o prejuízo, mas sua mente não conseguia raciocinar em linha reta.
No fim da tarde, veio a boa notícia: os amigos haviam concretizado a compra que os deixaria tranquilos, ou intranquilos, por algum tempo. Reuniram-se na casa de um deles e cheiraram ouvindo rock no último volume; não conversavam além do imprescindível, não se importavam mesmo uns com os outros, só com a farinha. Na cabeça de Jonas, sua resolução ganhava embalo com a sensação de plenipotência que lhe entrava pelo nariz. O assunto da véspera surgiu, entre risadas; ele dissimulou.
Era perto de meia noite quando ele passou bem devagar pelo mesmo bloco, com a janela fechada. Não viu o rapaz. Parou em um posto e tomou uma cerveja. Tentou mais uma vez, nada. Repetiu a operação, desta vez viu o moleque da camisa de time. Eu não mataria uma criança, embora ele mereça. Foi só na quinta tentativa que desistiu e foi para casa. Voltou no dia seguinte e no outro. Estava quase desistindo, mas sempre que manuseava a arma (afeiçoou-se a ela) seu intento se renovava.
Esperou dois dias e enfim conseguiu o que queria. Lá estava o rapaz, e estava na rua: esperava os carros encostarem para vender ali mesmo. Engatilhou a arma e parou bem devagar, longe dele, que veio andando até o carro; tempo em que ele ainda conseguiu fungar no seu tubinho, para dar firmeza. A mão esquerda acionou o vidro elétrico e a direita puxou o gatilho, quase ao mesmo tempo.
A polícia o alcançou em cinco minutos: estavam sempre por ali e os clientes do bar forneceram a placa. Sentado no chão da cela, esperando para ser apresentado ao delegado, Jonas finalmente concluiu o que sua consciência tentara insinuar: veja aonde essa porcaria me levou, eu me fiz de idiota muito mais do que ele; eu podia ter aproveitado a oportunidade, buscado ajuda, eu poderia conhecer aquela paciente, quem sabe, casar, ter filhos, comer e dormir como gente normal, passear no parque. A grade se abriu e ele foi posto ante a autoridade. Depois das formalidades, o delegado adotou um tom afável, disse que Jonas estava de parabéns por livrar a sociedade daquela escória, mas infelizmente não adianta matar um, vem sempre outro no lugar, e que, embora ele não pudesse sair com fiança, com um bom advogado daria tudo certo. A prisão foi a melhor, ou a pior, clínica de reabilitação que Jonas poderia ter. Não voltou a usar, e se aquela paciente precisou achar outro dentista, tenho certeza de que ele se arranja qualquer hora.