Cochilo - Reedição



 
          Levantei-me do conforto da poltrona, incomodado pela vozearia que vinha da biblioteca. Enquanto caminhava em direção à porta semicerrada, tentei identificar aquelas vozes. Que eu saiba, não recebemos visita esta noite; então, quem está lá?
          Aproximei-me cautelosamente e, pela fresta, vi que a sala estava repleta de pessoas estranhas, à primeira vista todas desconhecidas. Espantou-me a diversidade delas: seus trajes eram tão variados, que mais parecia terem saído de um baile à fantasia. O espanto do primeiro momento deu lugar à curiosidade. Uma imensa curiosidade que me fazia torcer o pescoço, vasculhando cada canto em busca de um rosto conhecido. Mais estranho ainda era o fato de, ao examinar cada um, ver nele um semblante familiar. Mas quem seria?
          Pela fresta, era impossível alcançar, com a vista, todo o interior da peça. A julgar pelas vozes, havia muito mais pessoas naquela sala do que quantas eu podia ver. Em minha cadeira de balanço, refestelada, estava uma velha de ar ranzinza e indiferente a todo aquele burburinho. Fiquei observando-a e vi que de quando em quando ela levantava os olhos do próprio colo e fitava alguém como se fosse dizer algo, mas logo tornava a baixá-los e ficava longos períodos de cabeça baixa, mascando a língua. Meu Deus! Por que seu rosto me é tão familiar? De onde a conheço?
          Intrigado, continuei a buscar naqueles rostos um que fosse conhecido, que me lembrasse alguém, que pudesse dar-me o fio daquela meada e, qual não foi minha surpresa, reconhecer entre pessoas tão exóticas um simplório matuto que vive nas páginas de um jornaleco de comunidade rural que eu mesmo criei. É ele, não tenho dúvidas! Mas o que está fazendo aqui? E quem é aquele com quem está conversando? Antes que eu pudesse encontrar as respostas um garboso militar irrompeu no recinto. Trajava vistosas bombachas claras, botas com chilenas de prata e o busto musculoso apertado num dólmã militar azul, do início do século XIX, com gola vermelha e botões de metal. Na cabeça, ornada de vasta cabeleira revolta e em desalinho, trazia um chapéu de barbicacho, puxado para a nuca, que por si já identificava a origem daquele homem. O lenço vermelho, atado ao pescoço, apenas confirmava: era um gaúcho!
          Concentrei minha atenção na prosa de Seu Tinoco, o do jornaleco, com o cavalheiro de porte avantajado e modos de fanfarrão. A custo consegui entender algumas palavras. O homem falava alto, sem papas na língua e, não fosse a minha dificuldade com os ouvidos e a vozearia das outras pessoas, poderia ter compreendido melhor. Falavam de briga de galos, politicagens e, se não ouvi mal..., de lobisomem!
          Entender algumas palavras, umas poucas frases soltas, não me adiantou muito. Para dizer a verdade, trouxe mais confusão para minha cabeça. O que fazia toda aquela gente em minha biblioteca? Quem era aquela velha? E o militar gaúcho? Como entender que pessoas tão diferentes pudessem estar reunidas em minha casa, sem meu conhecimento. Havia gente nos mais diversos trajes: cavalheiros elegantíssimos, damas em vestidos longos, camponeses, peões, pessoas comuns... enfim, gente de todo tipo. Mas o que mais me intrigava era a presença de Seu Tinoco. Como podia ele estar ali, se nem existir de fato ele existia? Sim, porque o mascate é fruto da minha imaginação e só existe nas páginas do jornalzinho que eu faço para entreter e informar meus vizinhos de fazenda.
          Quis empurrar a porta e entrar, mas, por cautela, resolvi bisbilhotar mais um pouco. Foi bom. As pessoas se movimentando e falando entre si aumentaram minhas chances, e logo uma idéia, que no primeiro momento achei absurda, começou a tomar forma. Ainda titubeando entre aceitar ou não aquela idéia, fui surpreendido por um ranger metálico de latas se esfregando, então, um cavaleiro em armas surgiu em minha frente.
          Não tive mais dúvidas. Como poderia esquecer o homem que, cavalgando seu pangaré intitulado Corcel Rocinante e combatendo gigantes de vento, me levou por inesquecíveis e hilariantes aventuras? Sim, era ele! Dom Quixote de La Mancha, seguido de seu fiel escudeiro, Sancho Pança.
          Reconhecer o valente Cavaleiro Andante me deixou estarrecido. Por alguns instantes, fiquei sem ação, sem poder acreditar em meus próprios olhos. Entretanto essa sensação durou pouco, pois, no momento seguinte, foi como se uma luz se acendesse dentro de mim e comecei a reconhecer todas aquelas personagens.
          O susto e o espanto inicial não tinham razão de ser. Afinal, aquelas pessoas sempre estiveram ali; embora eu nunca as tivesse visto daquela maneira, bastava folhear qualquer um dos livros de minha estante, para encontrar algumas delas.
Vibrando de contentamento, vi saídos das veredas e dos grandes sertões das Minas Gerais, num canto do aposento em colóquio quase amoroso, os temíveis jagunços Riobaldo e Diadorim, observados de soslaio sob a aba do chapéu de feltro pelo sisudo “Sô Medeiro Vaz”. O militar gaúcho tão altivo e gabola, repetia aos interlocutores suas façanhas pelos campos e coxilhas do Sul do País, e, quando deu com a velha, na cadeira de balanço, parou entristecido. A barreira de tempo que se interpusera aos dois, com a morte precoce do Capitão, não permitia sua aproximação. O grande amor de Rodrigo Cambará e D. Bibiana Terra, assim como o dos jagunços, também terminou em tragédia. Desfiando gentilezas, na mais fina elegância inglesa, Phileas Fogg circulava entre os presentes, distribuindo mesuras, enquanto era cumprimentado por sua magnífica viagem de oitenta dias ao redor do globo terrestre. Numa rápida passada de olhos pelo aposento, vislumbrei mais de uma dezena de velhos conhecidos.
          Envaideci-me ao ver, ainda numa animada prosa, o meu Tinoco e o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Só mesmo nesse mundo encantado, um matuto chinfrim como o Mascate da Vendinha da Grota, pode se igualar a tão destemido caçador de lobisomens.
          No afã de ver quem mais estava na sala, esbarrei na porta, que cedeu, chiando nos gonzos. O encanto se desfez e todos se foram. Num instante, o aposento ficou completamente vazio e o silêncio voltou a reinar.
          O baque do livro, que antes estivera em minhas mãos, ao cair na tábua do assoalho, despertou-me do inconveniente cochilo. Olhei para a biblioteca, vi a porta entreaberta e a luz acesa em seu interior. Claro! Eu mesmo os deixara, quando fui apanhar o livro.
          Levantei-me da poltrona e, ainda na região misteriosa entre o sonho e o despertar, caminhei até a porta. Tudo estava calmo e silencioso, a não ser pelo resto de movimento e o leve ruído da cadeira de balanço...