Unico Dono

Parecia perfeito- Maverick 1977,modelo original de chassi LB5EI,V8 de fábrica, rodas de mustang 17 polegadas, cor preta original,nunca bateu, único dono.

O último que Nora viu era perfeito para uma micareta. Uma loucura de luzes, adesivos e caixas de som capazes de incomodar uma cidade inteira.O preço era bom; apesar da parafernália estava bem conservado, mas ela queria autenticidade.

Uma das metas que traçara para sua aposentadoria era adquirir um veículo daqueles com o mínimo de modificações. Nostalgia alimentada por um tio (excelente mecânico) que costumava passear com ela e os irmãos em um Maverick laranja. Na verdade, boa parte de sua vida foi influenciada pelo tio Augusto e seu V8. Com ele aprendeu muito sobre carros. Era um escândalo na época uma moça trabalhar com mecânica, mas não dava a mínima. Uma pena que foi com o mesmo carro que tio Augusto morreu.

O endereço era distante, mas nada que não valesse a pena. Pelo menos nas fotos era lindo e o fato do proprietário não parecer desconfiado contava muito. Alguns chegaram a pedir referências para que ela pudesse ver o veículo. Já esse foi mais simpático.Não tinha problema ela ir à sua casa, seria bem vinda. Nada de encontros em estacionamentos de shoppings, praças ou ruas labirinticas. Um bom sinal, visto que poderia conhecer melhor a procedência.

Ficou na dúvida se iria em seu Corolla ou de ônibus. Mesmo que fechasse o negócio não voltaria no Maverick e pelo visto o local era algum tipo de chácara isolada. Talvez o ônibus nem passasse por lá e ela nem se preocupou em perguntar ao dono quando falaram ao telefone. Depois de dirigir por quase duas horas, sem contar as estradinhas de barro que se curvavam quase a todo momento, agradeceu a Deus por ir de carro.

A chácara era uma cena novelística como ela nunca vira com um paisagismo deslumbrante. Flores tingiam quase todo o lugar, um pequeno lago cristalino com patos acentuava a serenidade, pés de laranja cheios quase lhe fizeram chorar de tão lindos. Aquilo foi o suficiente para ela ter certeza de sua compra.

Um senhor de cabelos brancos resplandecentes e olhos verdes bondosos a cumprimentou com um abraço, mal ela saíra do carro. Embora fosse um pouco mais baixo e franzino, tinha força.

-Seja bem vinda.Teve alguma dificuldade para chegar?- ele a recepcionou numa voz de barítono

Nora sorriu.

-Foi tudo ótimo, senhor Gaspar. Obrigada por me receber em sua casa, é linda!

-Fico contente que tenha gostado.Aceita um café? Acredite, é o melhor que você vai provar.

-Ah, com certeza, aceito sim.

Sentaram-se em uma varanda nos fundos de frente para uma plantação de café que se estendia ao longe. Nora ficou extasiada e desejou que o tempo não corresse.

-Sinta o aroma.- sugeriu o velho aproximando o nariz da xícara.

-Desculpe, mas eu tenho um problema olfativo, não sinto cheiro das coisas.- lamentou Nora

-Que pena. Mas espero que possa apreciar o sabor pelo menos. Então, a senhora gosta de carros antigos.- afirmou Gaspar depois de um gole.

-Mais especificamente o Maverick. Influência de um tio.O dele era um laranja,maravilhoso. Voava na estrada. Fez com que me apaixonasse por carros.Não foi à toa que trabalhei anos como engenheira na Mercedez Benz.

-Difícil uma mulher gostar de carros assim.Minha esposa, que Deus a tenha, não se importava. Sua paixão era isso aqui.- ele fez um gesto largo abrangendo todo o local.

-Entendo. E o senhor, coleciona carros?

-Não chega a ser uma coleção. Nunca me importei em ter placa preta ou expor os carros. Simplesmente gosto de alguns e de vez em quando dou umas voltas.

Se não for incômodo eu poderia ver?

Gaspar devolveu um sorriso.

-Mas é claro, querida. Aliás verá de qualquer modo afinal o Maverick está junto.Mais café?

-Não, obrigada.

Depois,dirigiram-se a um galpão por uma trilha sinuosa de pedras. O interior era projetado para captar bem a luz solar. Havia vários carros estacionados em diagonal de cada lado. Nora abriu a boca e pôs a mão no peito. Imaginou como seu tio teria reagido.

-O senhor está de parabéns.É fantástico!-ela se aproximou de um dodge charger branco de 1978- Nunca vi um de perto.Posso?

Gaspar estendeu a mão com a palma voltada para cima.

-Por favor, fique à vontade.

Um aroma de couro novo a envolveu quando abriu a porta do carro. Ela deslizou a mão no volante, no painel, sentiu a textura dos bancos. Aquilo parecia um sonho. Enquanto suas amigas se deliciavam com Gucci e Prada, ela se derretia por um V8. Por um momento esqueceu porque viera ali e namorou cada carro. Tinha até uma ferrari testarossa de 1988, a qual ela fez questão de ouvir o motor.

Quando foi ver o Maverick, estava zonza de tanto fascinio. Mal acreditava que estava para comprar um carro daquela coleção. O v8 ostentava um brilho como se jamais tivesse sido usado. Sentiu-se constrangida ao sentar-se no banco do motorista. Aquilo era mais do que esperava.

O velho se debruçou na janela e tocou no volante.

-Quer dar uma volta?

Nora lhe entregou olhos castanhos deslumbrados.

-Adoraria.

-A chave está no porta luvas.

Ela se inclinou para o lado e pegou as chaves. Ao ligar o motor trovejante, foi tomada por uma comoção. Por algum motivo teve a impressão de que seu tio estava ali. Uma vez ele a deixou dirigir e foi um dos momentos mais marcantes de sua vida.

Gaspar sentou no carona e pediu para que ela dirigisse para o fundo do galpão onde dois rapazes que ela não notara, empurravam o portão corrediço. Uma pista asfaltada se abriu diante dela.

-Mandei fazer para testes, mas não é muito grande.-comentou Gaspar.

-Perfeito.Até quanto posso testar?

Ele lhe lançou um olhar desafiador.

-Não se intimide.

Nora ignorou seus cinquenta e três anos. Atrás daquele volante ela se tornou atemporal. Chegou até os 140km/h e mal percebeu o fim da pista e início da estrada de terra.Gaspar pediu para que continuasse a dirigir e perguntou:

-Feroz, não acha?

Nora meneou a cabeça, positivamente.

-Um monstro.Amei.Tem certeza que quer vender?

-Parte o coração, mas preciso.

-Se eu tivesse um desses não venderia por nada. O senhor é o único dono mesmo?

-Fora você, ninguém mais dirigiu esse carro em mais de trinta anos.

-E os outros compradores.

-Poucos vieram vê-lo.Acharam distante. Mas quem veio só ligou e nada mais.Não que eu me opusesse, pelo contrário. Deixo a pessoa a vontade.Deve ser medo de estragar ou coisa assim.

-Sinceramente, dá um pouco de medo sim. Está tão bem cuidado.Não da para acreditar que o senhor quer se desfazer dele.

O olhar do velho se endureceu, sem que ela percebesse. Estava atenta à estrada que se inclinava numa bifurcação.

-Tenho bons motivos. Pode virar a esquerda.

-Devem ser.- Nora não acreditava que fosse por motivos financeiros.Na verdade, eufórica como estava, não conseguia imaginar motivo algum para que ele vendesse o carro.

A estrada atravessava uma longa extensão de descampado deserto, dando-lhe a sensação de viver sem destino.

-Imagino que o senhor tenha histórias interessantes com esse carro.

Gaspar suspirou pesadamente como se evocasse o passado.

-Não muitas.

-Meu tio, Gustavo, contava cada uma.Ele dizia que estava casado com o dele.Imagine só a ironia que foi ele morrer num acidente com aquele carro.

-Talvez tenham sido mais interessantes que as minhas. Meu único casamento foi com uma baiana fogosa.

Nora riu.

-Entendo sua curiosidade, querida.-continuou Gaspar com o olhar distante.- Como alguém que parece amar tanto carros se desfaz de uma preciosidade dessas? Bem, digamos que quero deixar o legado para outros.

De súbito ouviu-se um estouro seguido de um tranco. Nora afundou o pé no freio e suspirou forte. Gaspar olhou-a com ar grave.

-Acho que foi o pneu.- sugeriu ela e antes que Gaspar pudesse responder, saiu. O pneu direito estava arriado.

-Foi o pneu?-ele perguntou ao sair do veiculo.

-Sinto muito sr Gaspar. Mas não se preocupe ,já, já troco o pneu.

-De jeito nenhum, moça.Não vou permitir que suje suas mãos.

-Não tem problema, vai servir como experiência. Estou acostumada.

-Mesmo assim, gostaria que não se incomodasse.Posso fazer isso em instantes.

-Fui eu que furei o pneu, então...

Rapidamente, Nora foi para trás do carro e abriu o porta-malas. Um grande saco preto ocupava quase todo o espaço. Tentou movê-lo, mas era mais pesado do que pensava.Precisava retirá-lo para apanhar o estepe.Com as duas mãos pegou uma das pontas e sentiu algo deslizar. Notou que as laterais estavam costuradas, mas alguma coisa escapava de uma brecha.Era semelhante a um dedo retorcido e esbranquiçado. Um pressentimento funesto lhe sobreveio, mas o ignorou. No momento não conseguia imaginar o que fosse e também não importava. Precisava trocar o pneu e fechar logo o negócio.Mas não conseguiria tirar aquilo sozinha.

-Senhor Gaspar, se incomodaria em dar uma mãozinha aqui? Tem alguma coisa sobre o estepe.

-Mas é claro.- ele estava a poucos centimetros atrás dela. Com o extintor golpeou-a na nuca uma, duas, três vezes, até ela perder os sentidos. Nora se dobrou sobre si mesma, bateu com os braços na lataria e caiu.

Cerca de uma hora depois, abriu os olhos turvos com uma dor de cabeça explosiva. Uma voz distante dizia coisas que a principio demorou a compreender. Sua consciência ainda flutuava em uma mar revolto.

-É realmente uma pena, minha querida que situação tenha chegado a esse ponto. Ultimamente ando muito distraido. Como pude esquecer de uma coisa dessas? A idade é uma desgraça.

-O que, o que?- balbuciou Nora assustada.

-Você queria ouvir histórias, certo?Eu vou contar. Sim, tenho muitas com esse carro. Rodei quase todo o país com ele e me diverti muito. Lembro de cada corpo, cada grito, cada olhar desesperado. Já viajei dias com a mala cheia sem que ninguém percebesse.

Ele segurou a cabeça de Nora com as duas mãos e forçou-a a olhar para o retrovisor.

-Eu achei que poderia parar, sim, eu acreditava nisso, até você se mostrar interessada pelo carro. Eu senti que seria a última vez, que finalmente eu me livraria dele.Então, ontem foi como...como se fosse uma despedida. Não pude me conter. Quem se importava com a garota? Droga, o mundo está cheio delas. Faz diferença uma a menos? Se ela tem pais, filhos, o diabo que seja, não me importo.

-O que você quer?Por que está fazendo isso?- gritou Nora, mais desesperada e consciente. Suas mão estavam amarradas ao volante e sua cintura presa com o cinto.

-Deveria ter deixado eu trocar o pneu.Teria evitado isso. Mas eu entendo, é uma mulher determinada, independente, precisava tomar uma atitude. Admiro isso. A questão foi o meu desleixo. Sabe, passei a vida inteira escondendo rastros. Fui tão bom nisso que minha esposa nunca percebeu. Incrível né? Mas veja o que aconteceu, sem querer você esteve perto de me desmascarar.Que piada!Descoberto por uma perua fanática por carros velhos. Eu não me importo mais. Cedo ou tarde vão me descobrir. Mas eu já fiz o que tinha de fazer.

-Não, espera, me tire daqui.-Nora se debateu. Seus pulsos queimaram com o roçar das cordas.

Gaspar ficou em silêncio. Seu rosto se petrificou em uma máscara de fria hostilidade. Bateu a porta e foi para trás do carro. Colocou as mãos sobre o porta-malas e empurrou. Nora sentiu o carro se movimentar e tentou apertar o freio, mas nada aconteceu. O ruido do pneu esmagando as pedras reverberou em seus ouvidos com uma intensidade aterradora. Sua mente girava. Era o fim. Da pior maneira possível. Pensou em seus filhos, sua vida e como tudo terminava de um modo tão banal.

A poucos metros do veiculo se estraçalhar no precipicio para onde Gaspar empurrava, ela pensou em seu tio e como devem ter sido seus ultimos pensamentos. Depois tudo se acabou em gemidos férreos.

Renan Moraes
Enviado por Renan Moraes em 23/04/2012
Código do texto: T3629554
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