Lucy

Inverno de 2005. O lugar era escuro e fedia a fezes. Tinha acabado de acordar. Não sabia onde estava; parecia um bar, havia bêbados por todo o lugar. Foi então que a vi: tinha a aparência demoníaca de quem perdeu os limites. Ela me chamou pelo nome, e este era estranho para mim. Não sei se porque tinha acabado de acordar, ou se era por causa da ressaca. Quando a ouvi dizer o meu nome, fui a sua direção; ela me deu um beijo que quase consumiu o que me restava de sanidade. Foi então que me lembrei de seu nome.

LUCY

Quando pequeno, eu sempre ouvia estórias de assombrações e demônios. Confesso que ficava com medo, mas como nunca eles apareciam para mim. Resolvi não acreditar no que me falavam. Vivia numa cidade pacata chamada Nobres; sempre me divertia nas chácaras dos meus tios e sentava para ouvir meus primos contar estórias de terror. Quem mais se assustava eram as meninas que, de tanto medo, choravam pedindo para que parassem.

Eu levava uma vida simples na cidade. Tudo acontecia do mesmo jeito. Até que, de repente, algo de estranho aconteceu: Seu Zé Cirino, que era conhecido por todos, foi encontrado morto em sua casa. O pânico tomou conta da cidade. Todos queriam saber quem teria sido o autor de tamanha brutalidade: matar estrangulado um velho senhor e arrancar seu coração. Quem fez isso não podia ser uma pessoa. Os boatos logo se espalharam: uns diziam que aquele velho senhor devia ser um traficante de drogas que não honrou suas dívidas, outros diziam que ele tinha feito um pacto com o “desgraçado” e que tinha chegado a hora do “demo” pegar seu pagamento. Eu não sabia no que acreditar. Era tão estranho ele morrer assim e de forma tão violenta.

A polícia iniciou uma busca minuciosa por pistas, mas não conseguiram nada. Os investigadores ficaram assustados com a falta de informações que pudessem levar ao criminoso. Com isso, a única coisa que poderiam fazer era interrogar todos os que tinham contato com o Cirino, mas ninguém o tinha visto naquele dia, a não ser eu.

Estava brincando pelo mato como qualquer um, mas não estava me sentindo bem, então fui andar pela estrada de chão que passa em frente à chácara do meu tio. Vaguei perdido em pensamentos sobre meu futuro como um grande fazendeiro que até esqueci a hora, e quando vi já era quase noite. Já conseguia ouvir os cães latindo, era uma espécie de choro lamurioso. Ouvi também as corujas piando. Quando, do nada, ao fundo, eu vejo tio Zé Cirino. Ele estava numa felicidade que dava gosto de ver. Reparei que ele não estava só, e tentei reconhecer quem estava ao seu lado. Era uma mulher linda, de pálida pele e cabelos loiros que, de tão ondulados e suaves, inspiravam uma tranqüilidade divina em quem os visse. Seu rosto angélico, de traços delicados, trazia luz ao ambiente já noturno e o seu corpo transpirava a doce fragrância das rosas, mas, o vestido era algo que quebrava a imagem de pureza do primeiro impacto. Vermelho sangue, com um decote que de tão ousado fez um moleque feito eu desejar ser homem o suficiente para tê-la em meus braços. Ela percebeu meus olhares e sorriu. O tempo parou quando vi aquele sorriso, senti meu corpo como que em chamas e também um conforto imensurável. Como um encanto quebrado o tempo voltou a dar seus passos, nessa hora voltei a minha atenção ao tio Zé, que já não mais tinha a feição alegre e agora parecia o próprio “tinhoso” com os olhos vermelhos de fúria insana. Sua face parecia me dizer que era para eu não chegar perto daquela mulher, pois ela era só dele. O medo me invadiu completamente, comecei a tremer e baixei as vistas de forma que não a visse. Senti uma mão em meu ombro, nesse exato instante pensei que havia chegado minha hora. Foi então que escutei um sussurro bem perto do meu ouvido: era tio Zé me dizendo “bom garoto”. Depois dessas palavras, ele se foi com a mulher.

Um ano depois não havia mais investigação, e eu já quase não me lembrava do rosto da mulher. A minha única lembrança era o vestido vermelho com seu decote e a sensação de morte que tive ao ver aqueles olhos do tio Zé.

Nesse tempo estava com 14 anos e me preparava para dar um passo importante na minha vida: mudar para a capital Cuiabá.

Quando cheguei na cidade, tudo estava vazio. Não havia quase ninguém nas ruas. Isso era fácil de ser explicado, o ano era de 1994 e naquele instante a seleção brasileira estava jogando contra a equipe de Camarões pela Copa do Mundo.

Não foi muito difícil me adaptar na cidade. Fiz muitos amigos na escola para que fui transferido. Padre Ernesto Camilo Barreto, esse era o nome do lugar onde fiz meu segundo grau. Apesar de ter feito amigos na escola, também encontrei lá pessoas que não gostavam de mim, principalmente o pessoal do “fundão”. Não eram más pessoas, mas só não gostavam que alguém fosse melhor que eles e, para minha infelicidade, aos olhos deles eu era um C.D.F: começaram a caçoar de mim. Quando souberam que eu nunca tivera experiência alguma com mulheres, não pararam de me ridicularizar. Mas também, como é que eu, um simples matuto, iria acompanhar a evolução das cidades?

Eu não tocava neste assunto depois de ter visto aquela mulher. Queria encontrá-la para somente lembrar-me do seu rosto e da paz que este transmitia, mas também não posso esquecer o desejo que senti ao olhar aquele corpo no vestido vermelho. Por isso quase não me importava com as amolações a respeito deste assunto.

O tempo passou, e eu já estava para me formar em Ciências Contábeis na U.F.M.T. O ano era 2004. Como de costume, fizemos um churrasco no fim de semana na casa de um colega de sala. Desta vez foi na casa do Ricardo, que era o mais velho da turma com seus dignos 40 anos. Na festa, como não podia ser diferente, o que mais tinha era bebida alcoólica. Com o passar das horas quase todos estavam caídos de tão bêbados. Já havia anoitecido e eu era o único que não tinha bebido e, talvez por esse motivo, fui também o único a perceber que o filho do anfitrião estava encolhido em um canto do quintal. Não podia ver a cena e continuar a me divertir. Olhei para o garoto e fui a sua direção. Perguntei o seu nome, embora soubesse que era Thiago, e também o que acontecera. Após um pouco de insistência de minha parte, o garoto, que tinha seus quatorze para quinze anos, me respondeu que estava sendo importunado por alguns colegas na escola somente pelo fato dele ser aquele que tira a melhor nota. Isso me fez recordar de quanto eu sofria com isso. Comecei a lhe aconselhar dizendo que, se ele desse ouvido ao que seus colegas diziam, eles nunca iriam parar de lhe torrar a paciência. Atendendo ao meu conselho, o garoto não deu mais atenção aos seus malfeitores, e logo eles pararam de lhe importunar.

Alguns dias haviam se passado desde que aconselhei o garoto, para ser mais exato, um mês e meio se foi no tempo, quando na segunda-feira dia 29 de março, passeando pelo shopping me deparo com Thiago. Assim que me reconheceu, veio em minha direção e agradeceu meus conselhos. Ele disse que os seus algozes lhe encheram a paciência no princípio, mas rapidamente desistiram. Depois disso o garoto até arranjou uma namorada. Os dois estavam ali para assistir o mesmo filme que eu, então propus que, se não fosse incomodá-los, eu os acompanharia até a sala de cinema. Apesar dessa coincidência, a noite ainda me reservava uma surpresa. Após sairmos da sala, me despedi e fui em direção ao meu carro e ao me aproximar senti algo estranho. Quando dei por mim estava totalmente paralisado. Nessa hora ouvi um canto lamurioso que subitamente transformou-se em um choro copioso, ao mesmo tempo em que isso me dava arrepios, sentia uma espécie de alívio. Subitamente fui tocado nas costas e a minha paralisia desapareceu como um encanto quebrado. Viro-me. Minha vista escureceu e meu coração quase parou depois do que vi. Um anjo. Foi o que meus olhos me disseram: traços delicados e olhos desarmadores, como ondas de um mar calmo seu cabelos escorriam pelo corpo. Com sua voz que se parecia com um canto de primavera que traz a vida após o inverno, ela me perguntou o motivo de meu medo. Não respondi. Não que não quisesse, mas porque no meu estado já era difícil ficar em pé, quanto mais falar.

Fitou-me nos olhos e, como se pudesse ler meus pensamentos, disse para não me preocupar. Ao ouvir sua voz e olhar em seus olhos, senti uma espécie de calor que preencheu meu peito, e novamente senti-me aliviado, mas dessa vez algo me chamou a atenção. Era como se eu já tivera experimentado essa sensação outrora, mas por mais que me esforçasse, a lembrança de tê-la visto anteriormente não vinha. Enquanto vagava em pensamento, a mulher virando-se, partiu em direção ao longe e antes que desaparecesse, gritei perguntando seu nome. Lucy, respondeu, e foi-se na escuridão. A imagem da garota misteriosa não me saia da cabeça. O esforço que fazia para lembrar onde poderia eu conhecê-la era inútil.

Os dias passavam, mas meu tempo parou no instante que ela me disse seu nome. Durante meses procurei, mas nem uma pista sequer encontrei. Nesse instante da minha vida, a única coisa que me importava era achá-la, vivia apenas para isso, esqueci dos amigos e das minhas responsabilidades, perdi meu emprego e reprovei em algumas matérias na faculdade, tudo parecia rumar para minha destruição, até que num dia frio e deprimente, recebo uma ligação, era Thiago, me convidando para sair, disse-lhe que não dava e um monte de outras desculpas para tentar encobrir minha obsessão por Lucy, mas isso não foi o suficiente, o garoto me convenceu, então saímos.

Diversão, isso era algo que não fazia a muito tempo, até me fez, por instantes, esquecer meus problemas. A noite terminaria num bar, e foi no bar que aconteceu o que ansiava e/ou temia por meses, não sei ao certo qual dos dois sentimentos era predominante ou se sentia os dois, o que sei é que ao vê-la meu corpo ficou estático. Era impossível isso estar acontecendo, o acaso trabalhando em meu favor. Fui em sua direção, isso logo depois de recobrar os movimentos e um pouco da consciência. Quando cheguei perto ela me surpreende dizendo:

– Olá, garoto do shopping.

Quase não acreditei que ela me reconheceu. A partir daí a conversa fluiu, a bebida rolou solta e tudo parecia perfeito, até que senti alguém batendo em meus ombros, era Thiago dizendo que ia embora porque estava tarde, mas antes de ir percebi que ele estava olhando para Lucy, isso me deixou muito nervoso, mesmo não tendo motivo, e quanto mais elhe olhava, mais eu via desejo em seus olhos e mais eu o odiava, e no instante que eu saltaria em seu pescoço ele olhou em meus olhos e abaixou a cabeça, entendi que ele havia percebido meus sentimentos então despedi dele com um abraço e disse em tom de sussurro:

– Bom garoto.

O menino foi embora e minha paz chegou, pensei – pensei errado, porque nessa hora Lucy virou em minha direção, mirou meus olhos, e eu cai no sono.

O lugar era escuro e fedia a fezes. Tinha acabado de acordar. Não sabia onde estava; parecia um bar, havia bêbados por todo o lugar. Foi então que a vi: tinha a aparência demoníaca de quem perdeu os limites. Ela me chamou pelo nome, e este era estranho para mim. Não sei se porque tinha acabado de acordar, ou se era por causa da ressaca. Quando a ouvi dizer o meu nome, fui em sua direção; ela me deu um beijo que quase consumiu o que me restava de sanidade. Foi então que me lembrei de seu nome, Lucy. Abri os olhos depois do beijo, e lá estava ela, totalmente diferente daquela a qual me encantava, olhos frios e macabros que me arrepiariam normalmente, mas isto foi algo que não senti, aliás, nesse momento não sentia nada, absolutamente nada. Quando ela se afastou de mim, minha vista ficou turva, e tudo ficou mais escuro, foi então que vi que ela carregava em suas mãos aquilo que era a essência da minha vida, e antes que eu pudesse dizer algo, ela falou:

- No passado você me deu seu coração, agora, só vim cobrar.

FIM

Luís Dias
Enviado por Luís Dias em 27/01/2007
Código do texto: T360304