Sem saída
_Boa noite senhora. Aceita uma água?
_Não senhor, obrigada.
_Talvez seja melhor para que a senhora se acalme e possa nos contar tudo sem faltar nenhum detalhe, não é mesmo?
Vânia tomou meio copo d’água e olhou para os olhos do policial.
_Estou pronta. Mas antes preciso saber sobre minha filha.
_Está sob nossos cuidados, não tem com o que se preocupar. Ela saiu ontem do coma e está melhorando.
_Minha filha... Tudo minha culpa, senhor. Eu deixei chegar a esse ponto, como pude?
_Tenha calma senhora, conte-me a história desde o começo.
_Está bem:
“Durante os dois últimos anos a minha vida era essa: fugir. Já era a terceira vez em que mudava de cidade e nada resolvia o nosso problema, ele sempre nos achava. Eu apanhava muito do meu marido, mas resistia a tudo, pois não tinha como sustentar minha filha sozinha. Eu não tenho uma perna devido a um acidente e meu rosto e pescoço foram queimados devido às chamas do carro, não é era fácil arranjar um emprego. Depois do ocorrido meu marido começou a me tratar com desprezo e não me queria mais na cama de frente pra ele, ele falava que não aguentava olhar para o meu rosto. Dizia a mim mesma que só deixaria o meu marido se um dia ele fizesse algo de mal com minha filha.
Há pouco mais de dois anos cheguei em casa contente por ter encontrado um emprego, graças às vagas reservadas à deficientes, mas encontrei meu marido abusando da minha filha. Ela chorava baixinho e ele dizia pra ela ficar calminha que ele já estava acabando e que se ela contasse algo para mim, ele me matava. Ela dizia: “Ta bom então, papai. Não machuca nunca mais a mamãe. Por favor.” Fui até a cozinha, sabia que tinha que ser rápida, pois minha filha estava nas mãos daquele monstro. Fiz barulho na porta e gritei que estava chegando. Dei um tempo pra ele poder se arrumar e entrei na sala. Minha filha veio me abraçar e disse que me amava muito, segurei a vontade de chorar e a abracei forte. Sabia que eu ia acabar com nosso sofrimento. Como sempre ele foi pro bar e voltou bêbado, me levou pra cama e eu não resisti, me virei de barriga pra baixo e enfiei a mão embaixo do travesseiro. Quando ele acabou e me pediu pra virar, eu enfiei uma faca na sua barriga. Minhas coisas estavam prontas para fugir, peguei minha filha no quarto e saímos dali.
Minha vida não foi fácil desde então, consegui um emprego de faxineira na casa de uma antiga amiga minha, Melissa, fazia tempo que não nos víamos e ela sempre disse que estava disposta a me ajudar se algum dia eu resolvesse ser feliz. Que ironia! Mal estava começando. Morei na casa dela por quase um ano, até que em uma noite um homem bate a porta. Eu não podia atender, pois estava no andar de cima arrumando um quarto para um casal de convidados que Melissa iria receber no dia seguinte. Minha filha se mostrou disposta e abriu a porta, quando ela voltou me entregou uma caixa e disse que deveria ser entregue a mim. Minha amiga perguntou à minha filha como era o homem que tinha deixado a caixa, ela disse que não conseguiu ver o rosto dele que estava com um chapéu, disse que ele estava com um sobretudo longo, botas e luvas negras, e que a chamou pelo nome.
Naquela hora minha cabeça rodou, eu sentei na cama e minha filha abriu a caixa. Era uma faca suja de sangue fresco e um pouco enferrujada. Eu reconhecia aquela faca. Foi a mesma que eu usei. Como o desespero não podia ser maior, o marido da minha amiga não chegava nunca em casa, ligávamos para o seu celular e ele não atendia. Chamamos a policia, pois estávamos sozinhas em casa, trancamos tudo e ficamos aguardando. Quando a policia chegou veio uma surpresa junto, havia um carro parado na porta da frente e lá havia um homem morto, com uma facada na altura da barriga. Entendemos tudo na hora. Ele matou o marido dela. Não contamos aos policiais sobre o meu passado, mas dissemos que um homem tinha me perseguido uma vez e descrevi o meu marido a ele. Dissemos que ele poderia estar tentando um assalto, ou sei lá. Já estava perdida.
Com nossa vida de cabeça pra baixo, decidimos ir pra longe dali. Fomos parar em uma cidade histórica, do outro lado do estado, onde minha amiga tinha um sitio. Tentamos reconstruir nossas vidas, mas todas as noites minha filha tinha pesadelos com o pai. Ela era só uma criança de 11 anos, mas já tinha entendido tudo, mesmo que eu não tenha contado nada para ela. Era uma moça já madura, vendia bombons e salgadinhos na escola pra nos ajudar em casa, Melissa retomou o seu trabalho com artesanato e montou uma lojinha no centro da cidade. Eu continuava em casa, mas tinha começado a fazer doces, salgadinhos e bolos para festas, pois isso eu sabia fazer muito bem e lá não tinha concorrência ainda.
Vivemos neste lugar por mais 8 meses, todos os dias o medo me acompanhava, qualquer coisa fora do normal me abalava. E quando aconteceu algo realmente fatal, eu não me dei conta. Minha amiga ligou dizendo que iria se atrasar, pois um grupo de turistas chegou à loja uns 10 minutos antes de fechar e que estava uma loucura. Minha filha chegou em casa com um filme que tinha comprado e me chamou para assistir. O filme acabou e minha amiga não tinha chegado, não achei muito estranho, mas que loja fecha duas horas depois do horário normal por causa de alguns turistas? Ela deveria se atrasar uns 30, 40 minutos, no máximo uma hora.
Fui tomar um banho, minha filha esquentou o jantar e comemos conversando sobre a aula dela. Um carro estacionou na porta e fiquei aliviada porque minha amiga tinha chegado. Mas bateram na porta, pensei que ela poderia ter esquecido a chave, mas quando abri não era ela. Era uma policial acompanhada de um rapaz também fardado. Não pude acreditar que ele tinha nos encontrado de novo, me disseram que encontraram uma mensagem endereçada a mim no local do crime. Estiquei o papel amassado e pude ler claramente: “Vânia minha amada, ainda faltam duas. Já tirei do meu caminho quem me atrapalhava”. A policial me pediu para ir até a delegacia no dia seguinte pela manhã, mas essa hora eu já estava na estrada com minha filha. Não tinha destino, não sabia onde ir, a quem pedir ajuda, então o padre da cidade me deu um endereço que eu precisava encontrar logo.
Dois dias depois de ter partido, encontrei a tal fazenda. As pessoas cuidavam de canaviais até onde a vista alcançava, fui entrando e cheguei na casa principal. O dono da fazenda me recebeu quase que sem interesse e perguntou se eu era forte. Disse que sim, e que minha filha também poderia ajudar. Cuidamos dos serviços da casa, pelo menos não precisaríamos enfrentar sol e chuva para cortar cana.
Só ficamos tranquila por mais 3 meses. Eu não sei como, mas ele conseguiu nos achar e começou a trabalhar no canavial, mas como eu quase não saia da casa, eu não o vi. Até o dia em que minha filha passou mal na escola, pedi ao meu patrão pra ir buscá-la e ele chamou um de seus homens pra me levar. Peguei minha filha na aula e quando sai, o carro não estava mais lá. Fiquei me perguntando onde aquele homem tinha ido parar. O ônibus da escola inda ia demorar, mas disse à minha filha que teríamos que esperá-lo de qualquer jeito, pois a fazenda era longe pra ela ir caminhando passando mal. Cerca de 20 minutos depois o carro do patrão parou na porta e nós duas entramos no banco de trás. Perguntei onde ele tinha ido e ele não me respondeu. Na metade do caminho ele parou o carro e desceu. Quando ele abriu a porta de trás eu vi quem era o sujeito. Gritei pra minha filha fugir e ela abriu a outra porta e conseguiu sair, mas ele me segurou pela perna falsa e me puxou. A perna soltou e eu cai no chão do outro lado do carro. Minha filha me segurou pelo braço e me deu apoio pra levantar, mas foi aí que ele bateu na cabeça dela com pedaço de madeira. Ela caiu no chão e ficou meio tonta, não conseguia levantar. Eu tentei puxa-la, mas ele me derrubou pra trás e me apontou uma faca. Eu tentei me arrastar pra trás, mas estava lenta demais. Ele debruçou em cima de mim e eu segurei as mãos dele, pra segurar a faca. Os dois faziam muita força, eu precisava sobreviver pra ajudar minha filha a sair dali viva, eu tinha que protegê-la, ela era uma criança e dependia de mim. Por fim, minha filha se levantou e pegou o pedaço de madeira e bateu nele, fazendo com que caísse do meu lado. Tirei a faca da mão dele e comecei a esfaqueá-lo, mas parei quando vi um carro se aproximando.
Peguei minha filha pela mão e tentei fugir, ninguém entenderia o que eu fiz, não conseguia ligar o carro, nunca tinha dirigido na minha vida. Foi então que o homem desceu e atirou contra a gente, acertando a minha filhinha. Ele pediu pra que eu parasse de tentar ligar o carro e que descesse do mesmo. Desci com a arma apontada na minha cabeça, e chorava feito criança pedindo pra ele não matar a minha filha, que eu só estava protegendo a minha filha. Desceu uma senhora do carro e pediu para que ele parasse. Me deu um pouco de água e mandou ele chamar a policia e uma ambulância. “
_Por isso estou aqui senhor. Eu matei o meu ex-marido, pela minha filha. O senhor pode me deixar presa pelo resto da minha vida, escute bem, mas a minha filha está salva, ele nunca mais vai encostar a mão nela entendeu?
_ A senhora sabe quantas facadas deu no seu ex-marido senhora Vânia?
_Não contei, estava muito nervosa.
_A senhora estava fraca, somente uma perfuração foi profunda, outras duas foram rasas, e mais outras duas pegaram uma no braço e outra na perna. Sinto muito te dizer, mas ele ainda está vivo.