As Visitas de Isaac Maia

Todos nós temos um dom, algo especial que fazemos melhor que qualquer outra pessoa. Um pintor extraordinário, um cantor formidável, um escritor fora de série, um genial jogador de futebol, são exemplos de dons especiais, daqueles que quando vemos em ação, nos vem de imediato à pergunta: Como eles fazem isso? E aí vem a melhor parte, talvez, realmente, não tenha explicação, eles simplesmente fazem, não dá para explicar, é nato. Como falei anteriormente, todo mundo tem um dom. Meu nome é Isaac Maia, e eu também tenho uma habilidade incomum. A minha dádiva é decifrar crimes, precisamente, crimes de morte, assassinatos são minha especialidade. Só que o meu dom, mesmo me acompanhando desde minha infância, não pode ser chamado de natural. Querem conhecer o meu dom? Vou mostrar-lhes

Ando em direção ao ponto de encontro com passos apressados. É uma madrugada fria e silenciosa, assustadoramente silenciosa. A rua está mal iluminada e deserta. Olho para os lados procurando alguma alma viva ao redor, não vejo ninguém, estou completamente só. Sinto que estou bem próximo, o reboliço emocional que elas me causam quando estão por perto está começando. Um imenso vazio se apodera de mim, paradoxalmente me preenchendo. Sou tomado por uma vaga e persistente tristeza. É um sentimento confuso, entre a melancolia e o medo. Um frio na barriga, vontade de chorar e xerostomia completam a angustia. As pupilas se dilatam, devido à escuridão e a descarga de adrenalina, captando o menor vestígio de luminosidade. Sinto o sangue se esvair e depois correr desesperado, acelerando meu coração. Suo, e ele, o suor, escorre das minhas têmporas e vai descendo mansamente por minhas avantajadas bochechas, que apesar de não conseguir vê-las, sei que estão enrubescidas. Estou excitado, adrenalizado, em alerta total. Todos os meus sentidos trabalhando no máximo. Um arrepio sobe pela a base do meu crânio, eriçando os pelos de minha cabeça, como a um felino assustado pronto pra atacar. Estou cada vez mais perto. O prédio é assustador. A mata atrás dele muito mais. A lua ilumina os galhos de árvores do matagal que reverberam nas paredes do edifício formando figuras bizarras. As janelas semicerradas parecem esconder olhos que me vigiam. Minha respiração está ofegante. Vou chegando mais perto, tentando manter os passos firmes, e acalmando as mãos inquietas dentro do bolso do casaco de moletom que estou usando. Enfim chego ao lugar marcado, o bloco K da 215 norte. Encaminho-me para a porta da garagem. Empurro o portão de correr e entro. Dentro do amplo estacionamento vejo apenas dois carros cobertos de poeira, com os pneus murchos e os para-brisas quebrados. A visão é anacrônica. Os veículos dão a impressão de estarem ali há décadas. Os modelos são antigos, um Corcel II bege e um Passat amarelo de quatro portas com faróis redondos, meu pai possuía um desse em 1981. O longo corredor está em silêncio absoluto. Todas as outras vagas estão desocupadas. A garagem, no subsolo do imóvel, é típica da arquitetura original dos prédios de Brasília. São blocos de apartamentos de seis andares, com o térreo livre e desimpedido, maiores horizontalmente do que verticalmente, com quatro a cinco portarias, e quatro apartamentos por andar. O ponto de encontro dessa vez foi escolhido a dedo, e mexeu comigo, mexeu com minhas lembranças da infância. Já as encontrei em muitos lugares insólitos, mas, nunca tinha encontrado nenhuma delas em Brasília, uma cidade que eu não visitava a mais de trinta anos. Paro exatamente no meio da garagem e grito:

_Viviane. Minha voz percorre todo o vão da garagem, singrando no ar como uma jangada no mar, bate na parede do fim do corredor e volta ecoando em meus ouvidos. Viviane aparece saindo de trás de uma pilastra. Ela está de vestido azul claro de tecido fino, parece uma camisola, na altura dos joelhos, os cabelos, negros como a noite, estão soltos. Como de costume os pés estão descalços. Ela vem ao meu encontro, é sempre assim, meus músculos retesam na presença delas, fico completamente imóvel, e a respiração fica sobressaltada, asmática. Ela me abraça e sussurra em meu ouvido. Três minutos se passam parecendo a eternidade. Não posso mais aguentar. Estou asfixiando, tento mexer meus braços, eles não respondem, não consigo respirar, não consigo me mexer...

Acordo levantando meu corpo subitamente, com a boca escancarada e as narinas arreganhadas tentando sugar oxigênio a todo custo. A sensação do ar entrando em meus pulmões é inefável, e eu os encho com um prazer vital. Estou ensopado de suor, meu coração estronda dentro do meu peito. O jazigo da família Bandini está escuro, contudo, vejo ao meu lado os restos mortais da jovem Viviane, morta por sete facadas, há quase um ano. Levanto e saio da sepultura. Do lado de fora me espera John Bandini, marido de Viviane, que está sendo acusado de assassiná-la. Apesar de ser o principal suspeito do crime, conseguiu responder ao julgamento em liberdade graças aos seus bons antecedentes, a falta de provas contundentes e a sua fortuna. Mas agora ele vai poder dormir sossegado. Ele vai poder provar sua inocência e colocar na cadeia o responsável pela morte de sua mulher. Viviane falou-me quem a matou e onde está a arma do crime, sumida desde a ocasião do assassinato. O matador foi um antigo namorado de Viviane, que ainda não se conformava com a separação. Posso agora dirigir as investigações até o verdadeiro culpado.

Um mês depois da minha visita a Viviane, todas as acusações contra o doutor John Bandini foram retiradas, o assassino está preso esperando o julgamento. Doutor Bandini ficou muito satisfeito com meu trabalho e me recompensou muito bem.

E é isso, esse é meu dom, faço visitas a almas mortas onde quer que elas estejam. Ainda não consegui descobrir se os lugares onde as encontro são escolhidos por elas, ou sou eu quem, inconscientemente, escolho. Provavelmente nunca saberei a resposta. Não me importo com isso. Gostaria mesmo era de controlar o terror que eu sinto ao encontrá-las nos meus sonhos, nos meus transes. Na maioria das vezes apenas um obejeto da pessoa morta, qualquer coisa, um vestido, um livro, uma caneca, faz com que eu viaje até elas. Com Viviane isso não funcionou, por isso tive que apelar ao seu túmulo e deitei ao lado de sua carcaça desfigurada. Deu certo, e o caso foi resolvido. Tenho uma agência de detetives, e sou procurado sempre que as investigações não têm resultado eficaz. Já resolvi trinta e cinco casos usando esse método, pode parecer inacreditável, porém, é infalível.