Chove

Lá fora a chuva cai, monótona, insistente.

Também chove dentro de mim.Gotas de ansiedade na noite escura.

O tique-taque do antigo relógio da parede me deixa mais nervosa.Oito horas.O tempo anda, as horas correm, os minutos passam, os segundos voam e,com eles, eu ando, passo e vôo.

Estou num círculo vicioso.Sento, me levanto, corro à janela...sento, me levanto, corro à janela... e nada mais vejo além da escuridão e da chuva que cai, monótona, insistente...

Ele não virá!Foi anteontem, apenas anteontem que eu o recebera:

-Olá, querido!

-Tudo bem, amor?

Beijou-me.Um beijo rápido, frio.Frio?Seria impressão minha?Não, não creio.Sou muito perspicaz.Alex já não era o meu Alex, terno, qquente, amante...

Não sei por que a vida nos prega peças.Eu deixara tudo - pais, lar, trabalho, estudos - para me dedicar a Alex.Havia um ano que morávamos naquele casarão luxuoso da fazenda.Alex dizia ser do seu pai que estava há alguns anos no exterior.

Dois anos atrás eu conhecera aquele rapaz simpático, num ponto de ônibus, na capital.Também naquela noite a chuva caía incessantemente.Apoiada no alto muro do colégio que ficava em frente ao ponto de ônibus, assustei-me quando uma voz se fez ouvir:

-Moça, essa é a Avenida das Seringueiras?

-É isso mesmo, respondi, olhando para o dono daquela voz.

-Pode me informar onde fica o Colégio Nossa Senhora das Graças?

-Este é o muro que cerca o Colégio.A entrada fica a poucos passos daqui.

Agradeceu-me e seguiu.Continuei a esperar o ônibus.Dez minutos depois, estava ele de volta.A chuva, aos poucos, diminuía.

-Não consegui ser atendido.Às oito horas não se recebe mais ninguém no Colégio.Seu ônibus sempre demora?

-Geralmente- respondi- quer dizer, passaram dois muito cheios e resolvi esperar outro.

-Para onde vai, moça?

-Rua Lins de Vasconcelos.

-Posso deixá-la naquela rua, se quiser.

-Não sei se devo...

Olhou-me e sorriu:

-Com medo?

Não sei por que resolvi aceitar a carona.Sempre tive medo.Minhas amigas(um círculo muito restrito) riam de mim e diziam: "Você vive no século dezenove, Adriana!Precisa se modernizar".

Porque resolvera variar, ou porque o rapaz era o mais simpático que eu conhecera, ou sei lá o porquê, decidi aceitar.E lá fomos nós.Eu, desconfiada.Para minha tranquilidade, deixou-me em casa, sem contratempos.No trajeto conversamos,disse-lhe que trabalhava ali perto e estudava à noite.Não me falou sobre ele.Não lhe perguntei nada.

Agradeci e entrei em casa.Meus pais assistiam TV. Naquela noite,não fui à Faculdade.Aleguei cansaço e fui me deitar.

Um novo dia.Lá estava ele...No mesmo ponto de ônibus.Confessou-me depois que fora me esperar.Conversamos e aceitei a carona.Tornamo-nos amigos, depois namorados e, meses após, nosso relacionamento passou a ser completo.

Resolvi seguí-lo quando meus pais me proibiram sair com ele. Talvez minha pouca idade e a falta de experiência tenham sido responsáveis por essa atitude. Cortei relações com minha família e com meu círculo de amizades.Deixei tudo e fui com Alex para a fazenda.Lá vivíamos em lua-de-mel(era o que eu peensava) até pouco tempo.É verdade que Alex passava dois ou três dias comigo e alguns fins de semana.Exercia advocacia na cidade.Agora sei por que ele quis que morássemos na fazenda.

Um ano vivido "em nosso mundo" e com ele meus sonhos, esperança, muito amor...Alex prometia logo regularizar nossa situação assim que eu atingisse a maioridade pois eu tinha esperança de me reconciliar com meus pais e eles eram muito conservadores e religiosos.

Eu preenchia o vazio das horas, vividas sem ele, com livros, jardinagem, música e Tv... até receber aquela carta...

Foi hoje pela manhã.Ele fora ontem para a cidade.Fui pegar a correspondência e lá estava a carta a mim endereçada.Curiosa, abri e deparei com o pior:era de Alex e dizia que sua esposa soubera que ele vivia com outra na fazenda."Peço-lhe perdão.Siga seu caminho.Minha esposa exige a escolha.Se até às nove horas da noite eu aí não chegar, desocupe a casa e não me procure.Esqueça o caso e recome.Você ainda é jovem.Tenho uma filha: não quero fazê-la enfrentar um conflito sabendo que seu pai vive com outra mulher.Cheguei à conclusão de que não a amo, mas a quis muito.Anexo um cheque para suas primeiras despesas;perdoe-me, se puder.Reconheço que fui irresponsável, porém você é tão atraente...Não posso continuar... apesar de tudo, amo minha mulher.Quando conheci você, eu tinha ido pegar minha filha no Colégio e, naquele dia, minha esposa fora buscá-la mais cedo.Seja feliz, Adriana;encontre um homem que possa amá-la sem compromissos."

Furiosa,gritei alto:

-Se filho da ... Odiei aquele momento e aquele homem.Mas , com o passar dos minutos, o ódio cedeu espaço para uma tristeza imensa.Fiquei a relembrar aquela carta até que soaram nove batidas no velho relógio, interrompendo minhas divagações.Pela última vez, corro à janela mas, lá fora, só a chuva cai, monótona, insistente...

Dirijo-me ao quarto para fazer minhas malas.Esperarei no sofá que o dia amanheça, para tomar um rumo.Ouço um CD-

"Walk way "(a música diz:"siga em frente, por que eu não te encontrei algum tempo atrás?").Fecho os olhos e vejo minha imagem seguindo pelos caminhos difíceis de um mundo cruel.

Sobre o criado-mudo, deixo a carta e o cheque rasgado em mil pedacinhos.

Grito:-Não sou uma p... Minha felicidade não tem preço!-Mas, ninguém me escuta, só minha consciência.

Sei que minha história tem um tema banal e tão corriqueiro.Mas sei também que existe ainda muita gente que ama e muita gente que engana.E quantas garotas estão passando por isso,sendo manipuladas, enganadas e muitas também enganando a si próprias e aos outros? Eu,já no século vinte e um, ainda sou das pessoas que amam, por isso,chove dentro de mim.Gotas de revolta dentro da noite escura, fria, porém vou me equilibrar, a vida continua e o sol sempre brilha após a chuva monótona, insistente...

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Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 24/01/2007
Código do texto: T356963