NOITES PÓSTUMAS -ATO I

Personagens:

O Poeta

O Velho

O Nobre

Cena: I

(A cena: Uma taverna. Em um canto um poeta dialoga fervorosamente com um velho ébrio e um nobre mancebo. A noite já se espreita por entre as nuvens e condensa-se no horizonte enegrecido. O sol já morrera no horizonte há algumas horas e os convivas dialogam entre si)

Poeta:

Vinte anos! E não vivi um minuto sequer,

Na febre que doura a fronte macilenta,

Derramei-os todos em uma orgia qualquer,

No fervor carnal que Deus inocenta.

Contudo, sinto uma nódoa pesarosa,

Vibrar como a lira que enfim destoa,

Foi por um anjo! Uma pálida rosa,

Que a solidão em meu peito ecoa...

Se a amei? Sabe o bom e sábio pastor,

Quantas insones noites então chorei,

Tantas lágrimas, no incontável horror,

Na minha fronte corada derramei...

Lembro-me bem da sua morena tez,

Dos teus lábios afoitos em amor,

De seu róseo corpo e lívida palidez,

No olhar triste de inconsolável dor...

O Mancebo:

O hálito do amor verbera,

Como um punha cravado ao peito,

Se a beleza torná-la tão bela,

A virgem dormirá em meu leito.

Mas dizei-me do que vale o penhor

Em gemidos e momentâneo prazer,

Evapora-se com a fumaça o amor,

Que ao meu peito se faz morrer?

Mesmo que o dia raie cedo,

E o frescor da mocidade evapora,

Sou um gentio! Um nobre mancebo

Que aos pés do amor senão chora!

Amar! Palavra via e assim vazia,

Espalda o frescor nos lupanares,

É o inicio e o fim da minha agonia,

A destruição dos sagrados lares

Embriago-me e ainda a lucidez,

Vibra alto como a póstuma sinfonia,

Quando se ama, nossa sensatez,

Transforma-se em louca fantasia

Velho:

Não derrames uma lágrima sequer,

Pelo amor impuro de uma mulher,

A idade já sulca meu rosto enrugado,

Com as marcas da velhice derradeira,

Haveria senão de estar enamorado?

Por uma jovem de beleza faceira?

E tu poeta que escreve no papel,

A idéia que requeima a mente

Haveria de sentir aos lábios o fel,

De amar uma jovem inocente?

Poeta:

Velho, pois bem, que a tua idade,

Pesa-te nos pés como uma sentença,

Tua juventude como a virgindade

Já fora morta como a sua descrença.

É sublime o amor, essa união espiritual,

Que nos acolhe junto dos braços divinos,

Creia senhor, que a pureza angelical,

Torna-nos mais viris como jovens meninos...

Velho:

Tuas palavras são como o conhecimento,

Daquele que jamais provara o amor,

Mas lembra-te que todo sofrimento,

É a mãe póstuma de incontável ardor.

Quando jovem pulsava-aqui no peito,

A febre que erguia meu espírito juvenil,

Pois veja agora! Meio morto em meu leito

Restaram-me apenas as flores murchas de abril

Bem dizeis, que a minha decepção,

Foi o infortúnio de uma desregrada,

Quantas lamúrias este meu coração

Já não chorou pela mulher amada?

O Mancebo:

Chorar!Eis uma palavra de alento,

A afogar-te no mar do sofrimento,

Mas não temas, que uma cicatriz,

É como um ilusório afago,

Tende a cortar-me até a raiz,

Rompendo-o sem estrago,

Pobre de ti, que amou sem ser amado,

Não seria melhor por fim ter morrido?

Pois a terra que não recebe o arado,

Poderia por fim ter um campo florido?

Quem semeia, é a sina ingrata,

Com suas riquezas de sutil sabor.

Beija-te na testa, por detrás te mata,

Confiaria nela seu puro amor?

Por mais que seja duro o percalço,

É a paixão o estandarte final,

Que perdura em um beijo e abraço

Até a incandescência astral

O poeta:

Se em tua fronte por fim assim brotou,

Uma lágrima de paixão nasceu,

Pelo teu anjo! Então tua alma chorou,

E essa dor não é somente seu?

Não te julgo, pois a miséria dos amores,

É o ramalhete morto de colhidas flores!

Velho:

Bravo!Eis que vossas companhias,

Afastam a dor e tantas melancolias,

Um nobre fidalgo e outro poeta,

Dentro de mim a existência desperta,

Suas almas são como os círios ardentes,

Límpidas, juvenis, visionárias e carentes!

Velho:

Bravo! Arde em tuas têmporas o gênio

De Castro Alves¹ a poética de Lamartine²,

Lembrar-te-ei no fim deste milênio,

Em um funeral abastado e sublime.

Debalde as marcas da existência,

São as cicatrizes de um mau agouro,

Na reclusão, tenho a penitência

Como meu precioso e único tesouro!

No entanto, meu pesar é o luto

De uma vida sem glória nem fruto.

Casei-me na mocidade aflorada,

Com uma moça de família abastada,

Lembro-me se não me vagueia,

Ela era linda como uma escultura,

Lânguida no luar que a noite prateia,

E menina em sua beleza pura...

Teu nome- Cassandra, assim batizada,

Foi à mulher que por mim fora amada!

O Mancebo:

Amastes? Essa mulher com tanta candura,

E descreve-a como certo Balzac³,

Foi tua estrela d’alva a amante pura,

Da sobriedade de um “cognac”

O poeta:

Quanta nostalgia, e quanta leveza,

Faça-a santa de seu universo,

Pois no esmero de um pobre verso,

Leva-a contigo em doce pureza...

E teu anjo por onde caminha?

Estará ela caminhando sozinha?

Velho:

Pois bem, meus caros ouvintes,

Abrem-se a cortina da tragédia,

Amar e seus malignos requintes

Não é uma mera comédia,

Sintam-no um adocicado amargor

Corar-vos a face em leve rubor

Quem dirá que o corvo da sorte,

Seria senão o mensageiro em morte!

Tenho sede! Preciso respirar,

Que minha descrição seja breve,

Tragam o vinho, quero bebericar

A uma defunta a terra seja leve

(...)

***Fim do ato I***

Notas:Castro Alves:Poeta Brasileiro

Lamartine:-Poeta Francês

Cognac:-Conhaque

Honoré de Balzac:-Político e escritor francês

opoetakurita
Enviado por opoetakurita em 21/03/2012
Reeditado em 25/03/2012
Código do texto: T3566379
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