A Velha Bruxa e Eu
Para contar esta estória terei que viajar muitos anos no passado, precisamente cem anos, porém, não vai ser através da utópica máquina do tempo que muitos cientistas tentaram construir um dia, aquela que supostamente poderia conduzir uma pessoa de um ponto a outro no tempo. E sim, por outra invenção humana, comprovadamente eficaz, conhecida como escrita, que me transportará, como se fora a tal máquina, mas não fisicamente, e sim em pensamento e sensações, até o bairro em que eu morei quando criança. E neste exato momento, enquanto escrevo essas linhas, posso ver do alto, como se eu estivesse flutuando, a nítida imagem da antiga padaria de meu pai, a correria barulhenta da molecada pelas ruas de calçamento daquele bairro cheio de mistérios e crendices e vejo também, me enchendo de arrepios, a figura soturna dela; da velha bruxa. Sim, eu viajei no tempo, e estou agora no ano de 1987.
A estranha e senil senhora morava a duas esquinas da padaria de minha família. Todas as vezes que ela entrava no estabelecimento e se dirigia ao balcão eu me escondia atrás do meu pai. Sua pele ressequida e cheia de rugas, sua enorme verruga na base do seu adunco nariz, o seu insano olhar, aliado ao seu corpo macilento e encurvado, me davam calafrios. Ela possuía uma enorme cabeleira desgrenhada e gris. Sua boca edêntula cismava em chupar a língua e de quando em quando a saliva grossa e asquerosa gotejava por suas comissuras labiais, embrulhando-me o estômago. Ninguém sabia dizer ao certo quantos anos ela tinha, sabia-se apenas que ela era tão velha quanto nosso bairro que já tinha oitenta anos de fundação. Curiosamente ela nutria uma não recíproca simpatia por mim. Sempre que podia arreganhava seus lábios finos em minha direção, deixando a mostra sua rubra e doentia gengiva banguela, e dizia com voz esganiçada:
_Olá jovem Bento, estas cada dia mais bonito e corado - passava sua mão escanzelada em meus cabelos com enlevo. - e continuava a falar: _ Bom menino, você é um bom menino.
Ela residia numa casa vetusta como ela. Diziam que sua fortuna era tão grande quanto a sua sovinice, e que desistira das vaidades da vida depois que seu neto de 10 anos desapareceu sem deixar vestígios. Isso já contava 30 anos. Ela vivia na companhia de inúmeros gatos vira-latas que a seguiam por todos os lugares. O sadismo da criançada da vizinhança não poupava a pobre velha que era alcunhada de bruxa dos gatos. Durante o pequeno trecho de sua casa á padaria ela era perseguida, xingada e maltratada pela turba de meninos. Ela reagia tentando acertar sua bengala nas cabeças que estivessem ao seu alcance, não raro alguns dos traquinos chegavam as suas casas choramingando e ostentando um belo galo na cabeça. De todas as crianças que hostilizavam a geriátrica senhora, a Mariana, sem dúvida, era a mais mordaz. Ela ficava tão entretida em sua pilhéria que ignorava completamente o diabólico olhar da velha sobre ela. Esse olhar da bruxa, para a minha amiga, não me passava despercebido. A Mariana era uma bela loirinha de olhos claros que andava em minha turma, ela jogava bola, bolinha de gude, soltava pipa, era uma moleca e tanto, entretanto, o que ela fazia de melhor era fazer gato e sapato de meu pobre coração adolescente. Eu nunca estava presente nestas algazarras. Desde os oito anos, - neste fato que vou narrar-lhes eu estava com treze -, eu ajudava o meu velho na nossa popular Panificadora Costa & Costa, situada no tradicional bairro do Santo Antônio. Eu entrava às catorze horas, depois que chegava do colégio e almoçava, e saia às dezessete e trinta. Nunca reclamei. Na verdade muito me agradava a lida com as massas e poder sentir, todos os dias, o delicioso cheiro de pão saindo do forno. Contudo, mesmo que eu não tivesse obrigações, tenho a certeza que não zombaria daquela velha. Muito embora fosse mais pelo medo paralisante que ela me causava do que por respeito ou educação.
Em meados de julho, num fim de tarde frio e com o céu carregado de nuvens negras, quando sai da padaria e ia andando em direção a minha residência, encontrei a Mariana me esperando encostada no muro de uma casa na esquina da rua que eu morava. Ela olhou-me com seus charmosos olhos verdes e perguntou:
_Vai fazer o que agora?
_Tô indo pra casa, vou calçar meus tênis de futebol de salão, o time do meu colégio vai jogar contra o time do Arqui, lá no ginásio deles, é uma partida preparatória antes dos Jogos da Primavera. Por quê? Emendei.
_Tô querendo fazer uma visita a casa daquela bruxa velha, não quer me acompanhar.
_Não. Respondi e segui rapidamente meu caminho antes que ela me convencesse. Ela me acompanhou e insistiu:
_Tem certeza Bentinho? Não lembra que dia é amanhã? - Ela mesma respondeu. Amanha é o dia da quermesse, e também o dia do concurso de comida, e quem é que faz as melhores guloseimas e acepipes deste concurso? Passei agora em frente à casa da velhota, e de lá esta saindo um agradável cheiro de comida. Parei onde estava. Comida era meu assunto favorito, e eu sempre estava com fome. E apesar da desagradável aparência daquela idosa, sem dúvida ela cozinhava como ninguém. Ela foi campeã tantas vezes deste certame que ela não mais competia, seus pratos só eram de demonstração, não valiam nota. Vacilei por uns instantes, e enfim falei.
_É arriscado demais, não vale a pena. Mariana não desistiu e continuou a falar:
_O cheiro era daquela torta de carne que ela fez ano passado. Lembra? Perguntou ela. Como poderia me esquecer daquela torta, comi seis pedaços dela naquele dia, e ela, Mariana, sabia muito bem disso. Girei nos calcanhares muito irritado por não conseguir controlar minha gula e por nunca resistir aos pedidos de Mariana. Olhei para minha amiga e disse.
_Vamos arriscar. A Mariana abriu um sorriso encantador, e de imediato, como num cacoete, colocou na boca seu estimado pingente com o símbolo do infinito, que ela usava pendurado no pescoço com um cordão, - ela costumava fazer isso quando estava apreensiva. A casa ficava a três quarteirões dali, chegamos lá em menos de cinco minutos. A aparência do sobrado era tão aterrorizante quanto à da sua dona. Era uma construção antiga, com três pavimentos. A falta de zelo e a deteriorização causada pelos anos fazia com que o casarão não tivesse cor definida, eram apenas matizes entre o preto e o cinza como numa radiografia. Em muitos lugares o tijolo enegrecido pelo tempo estava aparente, algumas janelas estavam com os vidros quebrados, e quem não conhecesse aquela rua apostaria que se tratava de uma casa abandonada. Quando chegamos perto da janela da cozinha, a poucos passos da entrada dos fundos, eu enregelei de pavor, meu coração batia tão forte que podia senti-lo pulsar nos meus dentes. Estava com o coração na boca. Soube naquele instante que não conseguiria seguir adiante. A Mariana foi em frente sem perceber que eu estancara. Quando ela chegou junto da porta se deu conta da minha ausência, olhou pra trás e me viu petrificado. Fez um gesto com as mãos me chamando para segui-la, balancei negativamente minha cabeça, ela insistiu no gesto, desta vez com mais vigor e demonstrando aborrecimento. Não fui. Ela rosnou baixinho já abrindo a porta e entrando:
_Mas que covarde! Falou isso e sumiu dentro da casa. Eu continuava parado em frente à janela da cozinha sentindo um frio angustiante na barriga. Concentrei-me e quando reuni força suficiente para me mover de novo, vi a bruxa pela janela. Ela estava de frente a um buraco circular na parede da cozinha e falava com algo que estava dentro do furo. Pude ouvir quando ela chamou com sua voz aguda:
_Senhor Jingles, meu lindinho, saia já daí. De repente, de dentro do buraco, saiu um enorme rato. A velha esticou seu braço e o bicho correu sobre ele indo parar no ombro da enrugada mulher. Aconchegou-se entre o pescoço e a vasta madeixa grisalha e ficou a fazer carinhos esfregando o focinho na face da velha com se fosse um namorado a dizer asneiras no ouvido da amada. A velha regozijou-se de prazer, e deu uma estridente gargalhada. Ao ouvir aquela maligna gaitada, saí do meu torpor e corri de forma impetuosa e veloz em direção a minha casa, generosos pingos de chuva começaram a cair. Assim que bati a porta atrás de mim, o firmamento despencou em forma de água. O céu chorou copiosa e violentamente durante toda noite, em meio a soluços e engasgos que ribombavam e iluminavam o escuro horizonte...
O amanhecer do outro dia me fez lembrar o antigo axioma que diz que sempre depois da tormenta vem a bonança O dia estava tão ensolarado, que falar que na noite passada tinha ocorrido uma tempestade poderia soar como mentira. Não havia nada que denunciasse o aguaceiro do dia anterior e cheguei a desconfiar que a terrível chuva tivesse sido fruto da minha fértil imaginação juvenil. Levantei por volta das nove horas, tomei café e fui para a padaria. No sábado eu ficava o dia todo por lá. O movimento foi intenso fazendo com que o tempo passasse rapidamente. Meu pai e eu baixamos a última porta metálica de correr ás dezoito horas. Era o dia da quermesse da igreja da colina e por isso fechamos mais cedo. Fomos direto para a igreja. Meu pai por ser um notório e bem sucedido empresário do bairro, todo o ano era convidado para compor a banca de jurados do concurso de melhor prato e, por conseguinte, eu tinha meu lugar cativo ao seu lado. Depois de todos os pratos serem degustados, todos muito bons por sinal, era a vez de experimentarmos o que a velha tinha preparado. Ela serviu a todos, um por um, pessoalmente. Quando ela chegou a mim, fiz menção de rejeitar, a imagem daquela mulher e seu rato de estimação ainda estavam fresca em minha mente, no entanto, o aroma que invadiu minhas narinas era extremamente tentador. Acabei não resistindo e aceitei o regalo. Era um guisado de carne com legumes envolto por um denso molho de cor púrpura. Estava delicioso. A carne derretia na boca e o molho tinha um sabor indescritível. Quanto terminei, raspando o prato com um pedaço de pão, deixando-o limpo como se não houvesse sido usado, pensei que poderia muito bem comer mais uma vez. Mal levantei a vista e vi duas mãos medonhamente magras que seguravam uma cumbuca cheia do picadinho, ouvi quando ela perguntou se eu gostaria de comer de novo, balancei afirmativamente a cabeça, sem olhar para aqueles olhos que me assombravam. Ela pousou a comida em minha mesa e disse:
_Este prato foi feito especialmente pra você jovem Bento.
Agradeci e caí matando na iguaria. Quando estava dando a última bocada, mastiguei um pedaço de pedra ou osso, bem em cima de um dente que mais parecia uma panela destampada de tão grande que era o buraco que ele tinha. Um dente que eu relutava em tratar devido a minha aversão a dentistas. A dor aguda fez que meus olhos lacrimejassem, cuspi no prato o tal objeto, e para minha surpresa não era nem pedra e muito menos osso. Era o pingente com o símbolo do infinito que a Mariana usava. Levantei a cabeça assustado e só então me dei conta que não tinha visto minha amiga durante todo o dia. Levantei-me, sem sair do lugar, e comecei a procurar a Mariana, olhando para todos os lados, não a vi em lugar nenhum, o que vi foram os olhos da bruxa fixos em mim. Ela tinha um sorriso de escárnio, parecendo saber por quem meus olhos procuravam. Sua expressão mudou de repente e passou a ser de uma frieza demoniaca, enquanto seus olhos não desgrudavam de mim. Um frio percorreu minha espinha. Neste exato momento chegou seu Otho, o pai da Mariana, acompanhado de dois policiais. Eles foram direto em minha mesa, a expressão de seu Otho era de desespero.
_Bentinho, por acaso não viu a Mariana por aí. Na hora que eu ia falar, a velha chegou para recolher o prato, tirou-o da mesa e ficou por trás do pai da Mariana a me fitar com seus olhos monstruosos. Engoli em seco e disse:
_Não vi não seu Otho, tem dois dias que não vejo a Mariana. O que aconteceu? Perguntei. Eu disfarçava o tremor de minhas mãos escondendo-as por baixo da mesa.
_Ela saiu ontem de tarde de casa e até agora não voltou. Se você souber de alguma coisa, por favor, nos avise. Concordei e eles se foram. A velha bruxa passou suas mãos pelos meus cabelos e falou:
_Bom menino, você é um bom menino. A Mariana nunca foi encontrada e eu nunca abri minha boca para falar nada a ninguém. A velha pareceu ficar agradecida e todo mês me regalava com algum prato, cada um melhor do que o outro. E eu não me importava que de tempos em tempos, algum menino ou menina da região sumisse sem deixar nenhuma pista, como se tivesse evaporado. Estava completamente obcecado e viciado por aquela comida da velha, cheguei mesmo a frequentar sua casa durante uns bons anos, duas vezes por semana, onde pude aprender toda a alquimia gastronômica daquela sinistra mulher. Um dia após minha última aula na cozinha da velha, ela faleceu, com nada mais nada menos que cento e quarenta e cinco anos. Para minha surpresa ela deixou todo seu dinheiro para mim, não era a fortuna que todos alardeavam que ela tinha, entretanto, foi uma bela quantia, que me proporcionou uma boa segurança por muitos anos. Mudei-me de cidade quando completei dezoito anos, me formei, casei e abri meu negócio. E agora que a estória esta acabando me vejo sendo puxado de volta para o presente. Estou agora em 2087, regressei de minha viagem.
Essa é uma estória absolutamente verdadeira e a lembrança da minha amiga Mariana povoa minhas lembranças e me assombra em sonhos até os dias de hoje e, provavelmente, continuara assim até a minha morte. Será meu castigo por toda minha longa vida. A forma que encontrei para desafogar o que sentia no meu coração foi contar-lhes escrupulosamente, e sem rodeios, tudo o que me aconteceu no passado, sinto-me profundamente aliviado, tirei um imenso fardo de minhas costas. E mesmo sabendo que não muda absolutamente nada do que eu fiz, ou melhor, do que minha gula, omissão e covardia fizeram, só agora me sinto verdadeiramente livre. Atualmente eu resido numa cidade muito maior que a cidade de minha infância e da padaria de meu pai. Sou dono de um restaurante bem sucedido chamado Costa Filho. O prato mais apreciado da casa é o guisado com legumes, contudo, ele só é servido uma vez por mês, somente no último sábado de cada mês. Seu preparo requer ingredientes pouco comuns o que dificulta sobre maneira o seu preparo. O picadinho faz tanto sucesso que tenho vagas reservadas para todo o ano. Tenho hoje cento e treze anos, me sinto como um menino e aparento ter no máximo cinquenta. Desde que comecei a me alimentar, todos os dias, com os ingredientes que conheci com a velha bruxa nunca mais adoeci, ao contrário, a cada dia estou melhor. Vivo muito bem, apesar de todo o caos, violência e insegurança existentes numa cidade grande onde todos os dias acontecem roubos, mortes, sequestros, e desaparecimentos de crianças sem deixar qualquer vestígio.