A escadaria

Ainda tinha muito chão pela frente. Mas os pés estavam tão cansados de pisar! Perdera os sapatos e, descalça, caminhava depressa pelo chão seco e pedregoso. Os pés rachados sangravam um pouco das pedras pontudas que os cortaram. Chegou à maldita escada, enfim. Precisava subi-la, e estava só.

Não dava para ver onde daria. Dos lados da escadaria de pedra rústica havia mata densa. Uma cerca alta separava a escada do matagal. Começou a subir cautelosamente. A cada degrau, mais sombria ficava apesar do sol tão claro como quente, porque a mata crescia em altura e densidade. Quando terminasse uns dois degraus, não mais veria o chão atrás porque a escada mudava de direção e a mata esconderia o resto. Virou-se e mirou a parte vazia de vida de gente e planta do lugar de onde fugia: o sol brilhava sobre a rachada areia. Suspirou e prosseguiu.

Só podia ver os degraus e as sombras. O medo começou a invadir-lhe e, ofegando de cansaço e temor da solidão vulnerável a qualquer ataque, aguçou os ouvidos para superar a impossibilidade de enxergar. Ouviu apenas o canto baixo do vento passando entre as árvores e das cigarras. Canto de cigarra para ela intensificava o calor. Quando era verão, as cigarras cantavam enquanto ela ficava a sorrir à janela de casa.

Não havia mais janela nem casa. Sentiu vontade de chorar e ser abraçada pelo pai ou pela mãe, mas não havia mais nenhum deles. Estava com fome e lembrou da comida com cheiro saboroso e gosto satisfatório da avó, que a deixava mexer nas panelas sobre o velho fogão à lenha da velha casa enquanto cozinhava. Não havia mais a avó, o fogão e as panelas com comida. Queria parar um pouco, sentar, mas não podia parar de andar ou não conseguiria fugir. Era perigoso parar ali. Os pés não sangravam mais: o sangue secara. Ela também, pois não conseguiu mais chorar quando quis. As lágrimas que sentiu vontade de derramar ficaram presas como se tivessem secado antes de cair. Ela estava tão endurecida do sol como o chão que não via mais.

O breu era intenso agora. Subira já bastante. As cigarras não cantavam: apenas o vento, mais rouco e forte que antes, assoviava tristemente. Seus passos ecoavam. Escutava-os para distrair-se. Foi então que percebeu: não estava ouvindo apenas seus próprios passos. Alguém mais estava ali, podia ouvir o caminhar de outra pessoa. Um tremor pavoroso percorreu-lhe o corpo – seria possível que a tivessem seguido? Esforçara-se tanto em cuidar que ninguém a visse! Escapou e foi esperta, sabia bem cuidar para se esconder, prestara muita atenção para certificar-se de que não havia ninguém presente em sua fuga, a única a conseguir salvar-se. Eles não eram mais espertos que ela. Mas podiam estar pelo caminho, podiam ter deixado gente esperando na escada, vigiando para acabar com a vida de quem se safara. Os pés tropeçaram de pânico, quase saiu em disparada... mas a ouviriam e seria pior.

Os passos atrás de si continuavam. Apressou os seus. Os passos apressaram-se também. Seria pega de qualquer modo, pensou, e começou a correr. Corriam junto. Mais depressa, mais depressa... A escada acabou e, no topo, a mata que acompanhou o caminho da subida. Entrou, temendo algum bicho a encontrá-la antes do estranho qualquer humano que a estava seguindo. Correu por onde pôde e tanto que não mais saberia voltar. Não conseguia mais correr, que a pegassem e findasse tudo logo. Escorou-se no tronco de uma árvore muito antiga, alta e gorda. Deixou-se quedar sentada sobre suas raízes. As faces avermelhadas derramavam suor. Os pés estavam escuros de poeira. Parecia que os passos haviam cessado. Olhou em torno: estava só, novamente. Quis sorrir mas não pôde – tinha um alívio misturado com dor e frustração. Talvez não fosse tão forte a ponto de agüentar escapar com vida sozinha. Como se lhe adivinhassem os pensamentos, avistou um vulto à frente, vindo em sua direção dentre as árvores. Reconhecia um chapéu de abas pontudas. Quando chegou um pouco mais perto, viu a silhueta e a barba grossa. Agarrou-se à árvore e encarou os olhos à sua frente. Um disparo ecoou mata adentro.

O homem chegou ao pé da escadaria com os olhos cobertos de lágrimas. Em seus braços, o corpo inerte da menina. Sem conseguir mais andar, o homem arrancou o revólver das mãos da jovem e, olhando-a uma última vez, sabendo que não suportaria escapar com vida sozinho, acabou-se também.

Clarissa de Baumont
Enviado por Clarissa de Baumont em 21/01/2007
Reeditado em 21/01/2007
Código do texto: T354313
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