A Casa - Parte I

Cheguei às quatro da tarde, ainda teria algumas horas pra me preparar, e mesmo de longe se podia sentir algo nas ruínas silenciosas do velho casarão colonial. Chegar ate lá, desde o dia em que ouvi de sua lenda, havia me tomado sete anos de pesquisas. Finalmente, depois de ouvir sua localização no ultimo sussurro de um velho moribundo, eu a havia encontrado no meio do sertão baiano.

O lugar em que repousava a velha ruína era quase impossível de se alcançar, e parecia que a própria natureza desejava assim. A velha casa jazia sobre um rochedo alto, estranha e solitariamente enterrado num campo sem pedras, não podendo ser avistada de nenhum dos pontos da planície abaixo, nem mesmo a entrada da trilha ancestral que subia o rochedo era perceptível caso não se soubesse bem onde procurar. Pra chegar ao topo do rochedo sobre o qual se enguia, com uma certa imponência bruxuleante, aquela construção, tive que contar com os préstimos de equipamentos de escalada, pois a trilha que, originalmente já não visava segurança e facilidade, havia se tornado ainda mais propensa a acidentes definitivos com o passar dos séculos.

Ao finalmente vencer a altura vertiginosa escalando pela rocha arida, lutando com a vegetação seca e de espinhos incrivelmente afiados, pude ver que de lá se via longe, em todas as direções, e percebi que esse tinha sido o motivo da escolha do local que, assim como castelos medievais e fortalezas de todas as épocas, visava resistir ao qualquer sorte de ofensiva que lhe fosse lançado.

Ao deixar pra trás o ultimo metro de escalada, firmar bem os pés e tentar tirar de mim um pouco da poeira que parecia me encher ate a alma, pude vislumbrá-la pela primeira vez. O terreno que a cercava parecia mais decadente que o resto de mata, se é que isso era possível, pois a região estava imersa naquela vegetação cinza de galhos retorcidos e mortos que caracteriza lugares de tal estiar. Mas o entorno da casa era ainda pior, a terra era enegrecida, parecia carregada de um mal todo particular, a pouca vegetação que lhe adornava era como que um jardim às avessas, galhos escuros e espinhosos, alguns meio podres, se entrelaçavam em formas grotescas que lembravam coisas nas quais eu não queria pensar. A face frontal fitava o norte, e sol que já começava a ensaiar sua saída criava um estranho jogo de luzes e sombras sob os alpendres em ruínas.

Ainda era possível ter uma idéia do esplendor que as linhas de influencia colonial haviam possuído um dia, mas que agora apenas suscitavam temores e historias antigas. A casa se dividia entre um térreo e um primeiro andar ou uma espécie de sótão, não havia como saber de imediato, e ocupava uma área de quase meio quarteirão, o que, segundo minhas pesquisas haviam revelado, abrangia cozinha, quartos, estábulo e dispensa. O transcorrer das paredes de ambos os pavimentos, tanto térreo quanto superior, era entrecortado de janelas, cada uma decorada com motivos geométricos, em sua quase totalidade, já destruídos. A frente que abrigava a porta principal, uma pesada porta dupla que parecia ainda prender-se as dobradiças quase que por milagre, tinha em seu decorrer um largo alpendre em que restavam poucos e espaçados restos de telhado.

Tanto a grande porta dupla quanto as janelas, em boa parte quebradas ou faltando, exibiam os resquícios do que um dia parecia ter sido uma cor azul, mas que hoje era apenas um negro forte e sujo pelos acúmulos do tempo. Em azul também eram, provavelmente, os motivos que decoravam as beiradas das janelas e os detalhes da fachada, mostrando que em um tempo imemoriável a beleza havia habitado o que hoje só o esquecimento habitava.

Aquela visão me impressionou de muitos modos, e enquanto um turbilhão de lembranças e sentimentos me tomava o pensamento eu me sentei ali mesmo, no ponto em que cheguei ao topo do rochedo. Eu não queria me aproximar mais, pelo menos não naquele momento, aproveitei para descansar, usar da água do meu cantil da qual bebi um pouco e usei outro para molhar a cabeça, tentando aplacar o calor e me refazer um pouco do imenso esforço da subida. Enquanto minhas mãos armavam à barraca, preparavam a fogueira e abriam as latas do jantar, minha mente abria o baú das lembranças, e entre outras milhares de historias revi mais uma vez a lenda da casa.

Kriador
Enviado por Kriador em 20/01/2007
Código do texto: T353742