Vingador
 
            A água que corria por entre as ardósias da calçada, pouco a pouco engrossava até formar uma pequena corrente que descia veloz pela sarjeta da ladeira, fazendo crescer entre as juntas do meio-fio pequenas touceiras de samambaia.
            Da rua, apesar do degrau, o aglomerado se cutucava e espremia cada um procurando a melhor posição, a fim de ver o que se passava.
            No interior do aposento, sentadas em um grande banco ou de pé, encostadas nas paredes e portais, as pessoas velavam em silêncio.
            Sobre quatro cadeiras e com uma vela acesa em cada canto, o caixão do morto confundia-se com as tábuas do assoalho, tal a posição em que o haviam colocado e a semelhança da madeira.
 
            Num céu com poucas nuvens, acinzentado pelo crepúsculo de inverno, ele veio voando. Inicialmente apenas um ponto no horizonte longínquo, depois se misturando com as andorinhas que de longe retornavam para o pouso no campanário da velha sé. À medida que aproximava, suas formas se destacavam na luz opaca do entardecer, até que, finalmente, com estardalhaço de penas entrechocando-se, pousou no meio da rua.
            Todos os olhares convergiram em sua direção. Vagarosamente, ajeitou as asas, como um jaburu acabado de pousar; depois, ignorando as pessoas ali presentes, subiu o degrau e entrou.
            Sabia exatamente o que ia fazer e como o faria. Iniciou seu trabalho com mínimo ritual. Lá fora, os vivos acotovelaram-se ainda mais. Todos queriam ver o que em outras ocasiões já tinham visto. Ninguém expressava espanto nem denotava curiosidade mórbida. Apenas acotovelavam-se, erguiam o pescoço. Queriam ver. Era tudo!
            O condicionamento psicológico, a opressão e o medo os induziam àquela apatia. Interiormente, adoravam-no, pois viam nele seu anjo vingador, contudo não exteriorizavam esse sentimento, temendo possíveis represálias.
          Terminado o serviço, o grupo começou a dispersar-se. Apenas os estrangeiros permaneceram. Esses sim estavam espantadíssimos. Alguns torciam o nariz e outros tinham náuseas. Quando ele saiu da sala, acercaram-se. Embora achassem sua figura hedionda, ele os recebeu com amabilidade. Quando abriu o enorme bico negro para cumprimentá-los, uma gota de sangue que pendia foi ao chão. Alias o vermelho enrugado de sua cabeça pelada também estava escurecido pelo sangue que começava a secar, formando trincas com o movimento da pele.
            Deformar os mortos, antes dos trabalhos funerais. Deixar suas cabeças destroçadas, com enormes buracos em lugar de olhos; as mortalhas manchadas e as flores e samambaias que, incoerentemente enfeitam a morte, com suas pétalas e folhas tintas, era o seu ofício.
            Quando interpelado pelos estrangeiros, antes de responder, coçou com o bico as asas alvíssimas, assim como o resto de suas penas. Era veterano, executava seu trabalho com grande maestria, sujando apenas o necessário. Polidamente, abriu caminho e, do meio da rua, ao alçar vôo, falou:
           
            — Venho de parte daquele que sabe com quem o morto conviveu. E assim está escrito que lhe fizeram a vida!