Opção

OPÇÃO

Mariano era universitário, como tantos outros, que buscava no conhecimento qualificado a capacitação necessária para se tornar um profissional respeitado. Possuidor de uma esmerada educação que lhe fora proporcionada no seio de uma família financeiramente abastada, tinha nas mãos todos os requisitos indispensáveis àqueles que com firmeza buscam o sucesso ou seus propósitos de vida. Sua mãe, Margareth, era muito conceituada no nobre bairro aonde morava devido às suas atividades de cunho social. Sempre preocupada com os menos favorecidos e detentora de uma enorme paciência capaz de atender a tantos quantos dela necessitasse a qualquer momento, com total imparcialidade, já desfrutava de alto conceito, era considerada uma das mais eficientes assistente-social da cidade. Artur, o pai, Meritíssimo Juiz da Comarca, era respeitadíssimo por suas decisões marcantes, tido e considerado como inimigo número um da contravenção, do crime organizado e do tráfico. Além de todas estas circunstâncias favoráveis, o jovem Mariano, ainda era inteligente, fisicamente bonito e extremamente comunicativo. Vivia rodeado por amigos e amigas, muitas das quais totalmente seduzidas pelas virtudes daquele verdadeiro príncipe encantado. Aluno do curso de engenharia e atraído pela arquitetura antiga dos prédios da Universidade Federal aonde estudava, passava suas horas livres visitando os diversos institutos que compunham o campus universitário. Numa de suas andanças, quando visitava o prédio do Instituto de Filosofia, intrigou-se com uma moça que ficava totalmente isolada, sentada à sombra em um dos degraus da grande escadaria de acesso ao prédio. Intrigou-se não por vê-la ali, naquele dia, mas por ser a terceira vez que visitava o instituto e presenciava a mesma cena, com a mesma pessoa. O comportamento diferenciado da universitária instigou a curiosidade de Mariano que não se conteve e se acercou da moça. Perguntou-lhe, após apresentar-se, porque estava sempre isolada e tão pensativa. Educadamente, respondeu-lhe que seu nome era Emília e estava no curso de filosofia por determinação. Pensava, no futuro, com os conhecimentos adquiridos na universidade, encontrar caminhos capazes de ajudarem os moradores de sua comunidade, dando-lhes cultura e principalmente uma visão de horizonte. Onde, talvez, estivessem guardadas diferentes opções de vida para seus semelhantes. Não podia aceitar que a marginalidade, os detentores do capital, os traficantes, os criminosos e os inescrupulosos, dominassem a sociedade e impusessem aos homens de bem uma situação de subserviência e incapacidade de reação. Ademais, depois de formada, deveria justificar o diploma obtido desempenhando suas funções com extremo profissionalismo, irreparável honestidade e o principal, justificar a si própria que todo esse empenho deve acabar num resultado óbvio: que é a vitória dos justos. Pediu desculpas ao Mariano por ter se prolongado tanto em suas palavras e completou, que só estava desfrutando dos bancos universitários de uma universidade federal porque um rico industriário, ex-patrão de seu falecido pai, custeou-lhe todos os estudos em escolas particulares de bom nível e terminou dizendo que era de origem muito pobre e que vivia em uma favela. Mariano a interpelou:

- Como me pede desculpas por me fazer uma exposição de motivos de extrema beleza, de coragem, de propósito de vida, de consciência e muito mais, por ser alguém que tem guardado no peito o puro e sincero amor ao próximo? Nada disso! Preciso agradecer-lhe pela oportunidade de conhecê-la e peço-lhe que me permita, a partir de hoje, compartilhar contigo de um pedaço desta sombra, nesse mesmo degrau de acesso ao prédio. Emília concordou de imediato, porque o rapaz foi capaz de escutá-la, atentamente, e nenhum momento demonstrou se sentir angustiado ou cansado com o assunto, muito pelo contrário, fitava-a com extremo interesse como uma criança diante da vitrine de brinquedos às vésperas do natal. Ali, teve início uma parceria harmônica de diferentes interesses profissionais, mas de uma afinidade de sentimentos humanos, capaz de causar inveja a qualquer Papa em busca da paz entre povos. Mariano sentia-se como que acordando para a vida diante das exposições feitas por Emília, salpicadas por meigos sorrisos e vigiadas por um par de olhos que procuravam num horizonte perdido as soluções para seus anseios e, ao mesmo tempo, guardavam dentro de si um brilho capaz de ofuscar o raiar do sol numa manhã de primavera. Emília ainda externou o seu descontentamento com a atual situação da sociedade em que os capitalistas, a grande minoria, detinham em suas mãos as rédeas do destino de todos os grupos sociais, usando-os, invariavelmente, em suas torpes ações como: o tráfico de drogas, contravenções, crimes e ainda contavam com a total desestruturação dos órgãos públicos, infiltrados por agentes da falsidade. Portanto, agindo com a certeza de jamais serem alcançados pelas garras da lei, hoje decrépita e frágil, além de vítima de uma série de omissões daqueles que deveriam dar, se preciso fosse, suas próprias vidas em defesa da população que acreditando em seus discursos irresponsáveis, acabaram por depositar suas esperanças nesses “senhores”. A sabedoria e a convicção de Emília, dia a dia, cativavam mais a atenção de Mariano que encontrava em suas palavras o coro de seus próprios ideais e assim essa parceria se tornava muito estreita, fazendo com que ele em todos os fins de tarde, após as aulas, deixasse Emília na entrada da favela aonde morava. A constância com que se encontravam e o tempo cada vez maior que usavam em suas trocas de idéias, afastavam-lhes sistematicamente dos demais colegas. Por essa razão, vários comentários surgiram sobre aquela amizade, que apesar de iniciada como uma grande afeição entre irmãos, já suscitava dúvidas em alguns colegas que juravam se tratar de um caso devidamente consumado.

Ao tomarem conhecimento do fato, os pais de Mariano começaram a inquiri-lo e pressioná-lo, porque pertencendo a uma parcela diferenciada da sociedade, aquele caso que estava tendo poderia lhe trazer sérios danos à imagem de um futuro profissional de elite. Ele tentou explicar aos pais que não se tratava de um caso e sim de uma identidade ideológica. Foi inútil porque tanto os pais como a grande maioria dos colegas, tinham seus pensamentos centrados exclusivamente em bens materiais, mídias e consumismo exacerbado. Porém, com o passar do tempo, regidos pela razão e verdade, os sadios propósitos de vida, tanto de Mariano como de Emília deveriam vencer. Durante os cincos anos de suas vidas universitárias, eles com extremo cuidado, elaboraram aquele que seria, como diziam: o “Plano para o futuro”.

Ao se formar, Mariano deixou de lado todas as mordomias e bens materiais, indo morar em um barraco na favela junto com Emília, para desespero dos seus pais e espanto de seus ex-colegas. Iniciaram de imediato a pôr em prática seus ideais e de acordo com o planejamento cuidadosamente traçado ao longo de cinco anos. Junto à comunidade, aos comerciantes e industriários da região conseguiram as adesões indispensáveis para criarem uma Associação à qual denominaram “Somos Gente”, dando o primeiro passo no sentido de agrupar os interesses das pessoas de bem e do comércio e indústria que ali geravam empregos e em contrapartida precisava de maior segurança. Recebendo quase todos os moradores da favela como associados, a maioria de desempregados, foram formando mutirões organizados pela Emília, enquanto Mariano arrecadava materiais de construção através de doações e elaborava os projetos, construindo galpões aonde passaram a ministrar aulas, criar pequenas bibliotecas e desenvolver diversas atividades sócio-culturais, todas com a participação de voluntários locais, qualificando os moradores que passaram a encontrar vagas de trabalho na indústria e comércio da região. Com o desenvolvimento e os melhoramentos inseridos na favela, além do envolvimento dos pré e adolescentes nos diferentes programas, o tráfico de drogas, os roubos e os marginais ficaram totalmente acuados sem conseguir adeptos para seus desígnios maldosos, tais como: os “guardas”, “laranjas”, ou “mulas”. Logo, esses pulhas da sociedade, perceberam essa pressão e tomaram a decisão de se mudarem porque ali não havia mais espaço para o crime.

Numa última tentativa desesperadora e acreditando poder inverter a situação, a mando de um juiz corrupto que fraudava decisões judiciais para favorecer o tráfico de drogas e os atos espúrios dos marginais, dos quais recebia vultuosas quantias em dinheiro, emboscaram e raptaram Mariano e Emília. O fato deixou a comunidade revoltada e mobilizou todos os setores policiais para resolver o problema.

Surpresos pela repercussão do seqüestro e impossibilitados de relaxar ou mesmo liberar as vítimas para não serem identificados, depois de dez dias, os criminosos efetivaram aquilo que é a mais covarde e repugnante atitude, pondo fim prematuramente àquelas duas vidas tão importantes para a região e sua população. Depois que os corpos foram localizados, examinados pelos peritos criminais e posteriormente pelos médicos legistas, ficou constatado não ter havido, além das perfurações por projéteis penetrantes, nenhum tipo de sevícia ou estupro, inclusive que Emília era ainda virgem, caracterizando-se, portanto, como crime encomendado, com a finalidade exclusiva de os eliminarem.

Na praça principal da comunidade, projetada e construída pela Associação Somos Gente e seus colaboradores, erigiram os bustos de Mariano e Emília, numa só peça, aliás, como sempre viveram com seus ideais. Na lápide ao pé do marco, lia-se os seguintes dizeres: “Como o bronze dessa estátua, dois ideais fundiram-se em favor da comunidade e das pessoas de bem, jamais um simples caso poderá alcançar tão alto desígnio”.

Presos os criminosos e o juiz mandante, próprio pai de Mariano, acabaram por ser totalmente esquecidos, restando aos demais marginais abandonarem a ex-favela.