O boneco de piche
O BONECO DE PICHE
Manhã de verão, o sol está a pino, meio dia se aproxima, há mais de duas horas que Wagner observava a interminável repetição de uma mesma cena. Nela, um menino de seus dez anos, no limite de suas forças, carregava um carrinho-de-mão cheio tijolos de um terreno, distante, uns quarenta metros do local, aonde acontecia a construção de uma casa. A cena era cada vez mais dura. Em volta do menino, havia um halo de vapor, seu corpo se desidratava. Durante os últimos percursos que fazia, tinha parado por duas vezes para retirar o excesso de suor que escorria pelo rosto. Com um dos lados da sua rota camisa, enxugava-se para que o salgado suor não lhe chegasse à boca. Inspirou, profundamente, e a seguir deu uma esbaforida. Pegou o carrinho e novamente cumpriu o percurso.
Wagner está na porta de um bar, aonde apesar de protegido pela sombra da marquise, devido ao excessivo de calor, já ingeriu uma garrafinha de água gelada e outra de refrigerante e ainda assim continua suando.
Outra vez, o menino saiu do terreno com seu carrinho-de-mão abarrotado de tijolos, seu corpo brilhava e, praticamente, destilava suas últimas reservas de água, parecia um boneco de piche (ainda bem que só parecia, caso contrário estaria derretido e esparramado pelo chão). Wagner foi ao seu encontro, quando o boneco de piche deu sua primeira parada para escorrer o excesso de suor, inspirar, profundamente, e a seguir esbaforir, ofereceu-lhe uma garrafinha de água bem fresquinha, teve o cuidado de esperar que ela degelasse.
O menino derramou um pouco da água na nuca, nos pulsos e bebeu lentamente o restante. Entregou a garrafinha ao Wagner e agradeceu por sua atitude.
Você não vai almoçar? Indagou Wagner.
- Sim, tão logo meu pai termine o muro dos fundos da casa.
- Qual é o seu nome?
- Winston.
- Que bonito nome!
- É, meu pai gosta muito de ler e contou-me sobre Winston Churchill, primeiro Ministro Britânico que dirigiu a Grã-Bretanha durante a segunda guerra mundial. Disse-me ainda que graças a sua coragem e inteligência, juntando forças com os Estados Unidos, conseguiram derrotar o alemão Hitler, um homem mau, pois houvera mandado matar milhões de pessoas inocentes.
- Caramba! Você é muito inteligente. Além de pedreiro o que faz o teu pai?
- No período da noite, dá aulas de história geral. Diz que é um “bico” para complementar a renda familiar e também o que ele mais gosta de fazer. É a profissão da qual se orgulha, apesar de não ser devidamente reconhecida nem respeitada condignamente. Ainda não entendo muito bem, quando ele fala sobre coisas desse tal de governo.
- Graças a Deus, é mesmo impossível entender esse tal de governo. Tenha certeza de que se você continuar a ler e se interessar pelos ensinamentos passados por teu pai, logo se tornará um cidadão de respeito e no futuro, será uma opção decente para que pais e filhos voltem a falar de governo como uma administração pública capaz de conduzir o povo em condições de vida dignas até, quem sabe... Teu pai poderá viver, exclusivamente, da renda do seu atual “bico”.
Winstooon! Gritou um homem negro e forte:
- Por que está demorando tanto, vai nos atrasar?
O boneco de piche pediu desculpas, pegou o carrinho-de-mão e perguntou:
- Qual o seu nome senhor?
– Wagner.
– O senhor desculpe-me, mas devo que seguir a minha lida. Até mais.
Wagner ficou pensativo e começou a refletir sobre o acontecimento. Como pessoas de aparência rude, maltratadas pelo trabalho que executam, guardavam dentro de si relativa cultura e conhecimento histórico? Por que deixavam suas vidas serem mantidas pelo trabalho físico para um maior conforto, não se abstendo, sequer, de parte da mordomia em defesa de uma vida cultural e socialmente favorável? Procurou uma explicação, mas não encontrou algo que justificasse com certa lógica qualquer uma das duas alternativas. Durante a noite, continuou procurando uma resposta satisfatória, porém só conseguiu perder o sono e acordar com grande indisposição. Como o cérebro é o que comanda o corpo a dúvida persistia, por isso resolveu voltar ao bar onde esteve na manhã anterior e continuar suas observações. Quando lá chegou, viu exatamente, o que vira na manhã anterior. O boneco de piche com seu carrinho de mão, cheio de tijolos, vestindo uma camisa rota, fazendo o percurso do terreno à obra e esturricando debaixo de um tremendo sol. A única diferença é que ele cantarolava ou assoviava trechos de uma sinfonia de Liszt, uma das mais conhecidas desse autor. Com isso, Wagner ficou ainda mais intrigado porque era a prova de mais cultura e mais trabalho físico, desta vez, coadjuvado pela alegria e satisfação. Por que não se sentia como o boneco de piche? Afinal, tinha condições financeiras muito equilibradas, uma casa agradabilíssima e ainda tempo suficiente para curtir algumas benesses do mundo.
Indignado com o que sentia, ficou parado na porta do bar, quando o boneco de piche com seu carrinho-de-mão, cheio de tijolos, parou para retirar o excesso de suor do rosto, enxugá-lo com uma das extremidades da rota camisa, inspirar fundo e a seguir esbaforir num ritual que exercia sempre que começava a cansar, aproximou-se dele e disse:
- Winston, estou curioso, pode responder-me uma pergunta e conseqüentemente livrar-me de uma dúvida que me persegue?
- Claro seu Wagner. Se souber respondê-lo!
- Hoje fiquei te observando e vi que apesar de estar cansado cantarolava ou assoviava alguns trechos da sinfonia de Liszt, correto?
- Sim.
- Aonde aprendeu a sinfonia e qual o motivo que te deixou tão alegre e satisfeito, se executas um trabalho cansativo pela manhã, à tarde vais para a escola e a noite ainda tens tarefas escolares?
- Desta vez o senhor me pegou de surpresa!
- Jura?
- É, porém vou tentar responder a sua pergunta por etapas. Vamos lá: em primeiro lugar aprendi a sinfonia de Liszt, enquanto fazia minhas lições e estudava, pois todas as noites meu pai, ao retornar da escola aonde dá aulas de história, fica escutando seus discos clássicos antes de dormir. Segundo, no período da tarde, enquanto estou na escola é o meu cérebro quem trabalha e o meu físico descansa. Finalmente, pela manhã ao me desgastar com o trabalho físico, a minha mente descansa e relaxa, relembrando as músicas que escutou na noite anterior, um eficiente alento. Acredito, sinceramente, que não dando tempo à ociosidade minha vida se torna mais longa e agradável, deixo de me preocupar com o que fazem as outras pessoas e cumpro meus deveres na certeza de que sou útil para a sociedade.
Wagner abraçou o menino, ofereceu-lhe uma garrafinha de água fresca e foi embora.
Depois disso, Wagner nunca mais foi visto naquele bar, tornou-se escritor, publicou vários livros direcionados aos adolescentes, dirigiu um orfanato com mais de cem crianças e seus trabalhos eram divulgados na mídia.
Mais de duas décadas se passaram, quando Wagner adoeceu e sua foto saiu nos jornais, informando à sociedade que ficariam sem o mestre e amigo das crianças.
No quarto do hospital, consciente de que sua hora chegava, ele apenas aguardava, pacientemente o momento, enquanto rezava. A porta foi aberta e um homem alto e forte aproximou-se de sua cama. Sem óculos e tendo a visão muito prejudicada pela catarata, Wagner não o reconheceu, porém, quando falou em seu ouvido que estava muito cansado e veio pedir-lhe uma garrafinha de água fresca, a reação foi mútua e instantânea, abraçaram-se, embora rindo, os seus olhos vertiam copiosas lágrimas de satisfação e alegria.
Winston colocou sobre a mesinha um pequeno rádio, ligou-o à tomada e pôs a tocar a sinfonia de Liszt. Wagner segurou-lhe a mão e disse-lhe:
- Ah! Meu boneco de piche, só mesmo você pode me dar mais esta lição.
Antes que a sinfonia de Liszt acabasse, Wagner fechou os olhos, abriu um lindo sorriso nos lábios e soltou a mão do Winston.
O boneco de piche tornou-se o diretor do orfanato onde por muito tempo Wagner trabalhou. Winston, ao longo de sua vida, certamente, encontrará e amará muitos bonecos, sejam eles de piche, gesso ou qualquer outro material existente.