Memórias de um último suspiro
Um flash back capaz de paralisar seus sentidos. As lembranças tomam conta da mente de um garoto. Algumas bastante vagas pela longitude dos anos e da pouca idade no passado. Outras tão claras e vívidas que parecia estar sonhando acordado.
Sentado em uma cama de hospital o garoto afaga a mão de um senhor que agoniza por ar. Um tanque de oxigênio tenta sem sucesso reparar a debilitação de um corpo que sofre com o passar dos anos. Os sinais do avanço silencioso do tempo ao qual não se consegue enganar, foram fortemente majorados pela presença constante de suas amantes mais assíduas, a bebida e a nicotina.
O garoto observa seus olhos. Em espasmos frustrados o senhor parece tentar engolir o ar, que no seu microambiente parece mais rarefeito, talvez o próprio vácuo. Por segundos o garoto para de respirar. Quem sabe aumenta a oferta de ar. Nunca imaginou quão valorozo poderia ser algo tão corriqueiro, no qual não se dava ao luxo de lembrar da existência. Agradeceu a Deus por poder respirar. Percebe nunca ter prestado atenção, ou notado, a infinitude daqueles olhos azuis.
As lembranças passam sem pedir licença. Não consegue conter a alegria de tê-las vivido. Uma lágrima corre em seu rosto já não tão jovial e tenro como o da criança das lembranças. Recorda-se das brincadeiras e da disposição que aquele senhor um dia tivera. Era noite e as horas passavam. As mãos se separaram e o garoto se foi para casa. Uma madrugada fria e pesada. Um sono conturbado, que insiste em não vir.
Ouve o telefone tocar. Ou melhor, acredita tê-lo ouvido tocar. Não era sonho, estava acordado, inebriado em pensamentos. A notícia. Aquele senhor havia dado seu último suspiro. Alma e corpo que já haviam se despedido, enfim se separam. O telefone cai sobre o aparador e ele se debruça por um instante. Em fração de segundos, seus olhos parecem embaçar. Um novo flash back parece apontar das suas memórias. Numa mistura de lágrimas e raiva, o garoto tenta entender o porquê da partida.
De volta ao hospital. Agora não mais num quarto, mas no necrotério. Ou sabe-se lá, uma sala improvisada de um pequeno hospital de uma diminuta cidade do interior. A visão daquele homem sendo preparado para o retorno. Acha estranho todo esse ritual mundano. Afinal, quem o receberia? Quase que propositalmente, há um silêncio incomum no ar. Um silêncio mórbido e angustiante. A tensão do sangue a pulsar contra as artérias pode ser ouvida, bem baixinho. A de todos, menos daquele em que o fluido da vida já se punha a esfriar. Cortando o silêncio que parecia estourar os ouvidos de tão agonizante que era, o garoto ouve o choro de um bebê. Talvez um recém-nascido. Um sopro de vida. Fez-se o equilíbrio entre morte e vida.
Na cabeça do jovem constrói-se um clipe da vida desse senhor. Ele havia deixado sim um legado; uma herança de valores incontabilizáveis. Uma vida dedicada à família, com abdicação dos seus confortos em virtude da formação dos seus. Te perguntas quem conta essa fração de uma história; quem sou eu? Eu não sou a morte. Não sou um narrador oculto. Nem mesmo um sujeito indefinido. Eu sou o garoto, neto desse senhor. E ele? Ele foi meu Avô.