Delírio Noturno
O luar entrava pela janela, tingindo todas as coisas de um ar surreal. Diana tinha acordado de repente, no meio da noite, depois de ter ido para a cama cedo, como sempre. Ela tinha que acordar muito cedo para se arrumar e ir trabalhar, e geralmente dormia como pedra desde o momento em que colocava a cabeça no travesseiro. Ficou dando voltas na cama, de olhos fechados, tentando voltar a dormir, mas depois de um tempo percebeu que não conseguiria, pelo que se levantou e foi até a sala. Ela não gostava muito de perambular pela grande e velha casa, que tinha sido de seus avós, durante a noite, mesmo em noites claras de luar como aquela. As coisas parecem diferentes à noite, e o silêncio é tão grande que qualquer barulho parece estridente. E ela não gostava do ranger das escadas de madeira enquanto descia, ranc, ranc, a cada pisada que dava.
Na sala, ela deitou no sofá e ficou pensando se ligava a televisão ou pegava um livro. Enquanto decidia, seu estômago doeu, pelo qual se dirigiu à cozinha para preparar um copo de leite para acalmar a fome. Enquanto caminhava pelo estreito corredor que ligava a sala e a cozinha, ela ouviu um barulho. Era diferente dos sons habituais de uma casa adormecida. Como a casa era velha, o corredor não tinha iluminação, fato que ela tinha pensado mudar algumas vezes, colocando pelo menos um abajur na mesa que ficava perto da porta da sala. Mas sempre se esquecia do assunto apenas saia de casa. Correu para a cozinha e acendeu a luz. Tudo parecia normal, a pequena mesa de tampo de mármore no lugar habitual, com a toalha de mesa surrada e as cadeiras que não combinavam. Começou a se servir o leite, tirou uns biscoitos da prateleira e colocou tudo num prato azul de cerâmica, para levar de volta ao sofá. Nesse momento, porém, alguma coisa aconteceu. Ela sentiu uma rajada súbita e penetrante de frio, um frio que parecia não provir de lugar algum, algo totalmente diferente. Tremendo bastante, ela procurou entradas de ar na cozinha, embora soubesse que o frio que sentiu não foi provocado pelo vento. Sua casa tinha muitas janelas, mas ela as fechava sempre, e conferia duas ou três vezes que estivessem bem trancadas antes de deitar. Indo de uma janela à outra, ouviu de novo o barulho, sentiu de novo o frio gelado e não soube de mais nada.
Quando acordou, não conseguiu saber onde se encontrava. O luar que tinha banhado a casa com seu toque de irrealidade a rodeava ainda, envolvendo-a em sua luz branca, de forma que parecia que um fantasma a tinha abraçado. O quarto estava claro, na verdade, e percebeu que estava na sua casa. A cozinha voltou a tomar forma ao seu redor, as coisas voltando aos seus lugares. Seu copo cor-de-rosa, cheio de leite, estava ao lado da pia. Porém, alguma coisa estava diferente. O vento gemia forte no lado de fora da casa, e seu lamento parecia pairar sobre ela. Percebeu que todas as janelas estavam abertas. Foi à sala, onde encontrou de novo todas as janelas abertas. Uma coruja piou na árvore em frente à janela. Começou a fechar as janelas uma por uma, mas parecia que tinham sido grudadas nos seus lugares. Não conseguia movê-las. Indo de uma janela à outra, se deu conta de que o luar a perseguia. Mesmo estando no meio da sala, longe das janelas, ou então indo pelo corredor da cozinha, sua pele tinha o mesmo brilho pálido e azulado. Não entendeu o que estava acontecendo. De repente, ouviu de novo o mesmo ruido estranho das vezes anteriores, desta vez tão perto que deu um pulo e olhou automaticamente para atrás. Viu um camundongo cinzento, pequeno e de olhos brilhantes, que parecia estar olhando fixamente para ela. Ela correu para a cozinha, procurando por uma vassoura para espantar o animal, mas quando entrou no aposento, parou em seco. Tudo tinha mudado de lugar. A mesa estava embaixo da janela, arrumada para jantar, com o copo de leite e o prato de biscoitos em cima. As prateleiras estavam vazias, as janelas escancaradas, a porta batendo com o vento. Cada vez mais assustada, Diana correu para fechar a porta e as janelas. A porta fechou, mas as janelas estavam emperradas, como aquelas da sala. Percebeu que o chão da cozinha, que antes era de tijolos pretos e lustrosos, agora era de madeira rangente e manchada. Na pia, uma montanha de louças que não lhe pertenciam enchia tudo, até a bancada. Ela sentiu desfalecer. Alguém devia ter entrado na sua casa. Esqueceu o camundongo e tentou ligar para a polícia, mas o celular estava sem bateria.
Saiu para a rua, para pedir ajuda aos vizinhos. Tudo estava em silêncio, as nuvens tinham coberto parcialmente a lua, que aparecia como coberta por um véu marrom. Correu até a casa dos vizinhos, mas parecia que nunca chegava à casa deles. A rua ficou cada vez mais comprida, as árvores se mexendo ao som de um vento que não a atingia, nenhum carro passou, mas viu muitos gatos correndo de um lado ao outro. De novo o piar da coruja chegou aos seus ouvidos. Se arrependeu de ter saído de casa. As coisas estavam mais irreais aqui fora do que lá dentro. Tentou voltar atrás. Depois de muito tempo vagando pela rua irreal, conseguiu voltar à casa. Quando entrou, porém, sentiu que esta desabava sobre ela, as paredes azuis começaram a derreter, o chão se rompeu com um som surdo, os móveis se moveram, as escadas rangeram sozinhas. Ela sentiu o barulho misterioso de novo, e um frio cortante encheu seu corpo até os ossos, e sentiu-se dentro de uma geladeira. Sua mente estava girando, não entendia mais nada, se sentia presa dentro de um pesadelo irreal interminável. Começou a gritar, totalmente em pânico. Estava isolada, sozinha, delirando em um turbilhão de acontecimentos inexplicáveis. Os gritos vieram do mais profundo do seu ser, um atrás do outro, até que o único que se ouviu foi um único uivo continuo, mais semelhante ao de um animal que ao grito de angústia de um ser humano. Entre um grito e outro, o mesmo barulho de sempre veio atrás dela, agora sem interromper-se, e o frio penetrou cada vez mais profundo nela, parecendo atingir sua alma. Ela correu até a cozinha, onde tudo estava desabando também, o chão de madeira desconhecido, as janelas agora fechadas, a pia vazia, as paredes tremendo, os mantimentos caindo das prateleiras. Ela soube que o barulho a alcançaria, e que quando isso acontecesse, o frio que estava cortando-a congelaria seu ser. Ela gritou, gritou até não ter mais voz. Pediu ajuda, mesmo sabendo que era pouco provável receber auxilio algum. Saiu de novo para a rua e correu, desta vez sem rumo fixo, e percebeu no seu delírio que sempre passava pela mesma árvore, que estava presa num mesmo segmento de rua tenebrosa. Sua pele brilhava de luar, e ela correu.
No dia seguinte, a vizinha encontrou Diana, morta, na porta da sua casa. O médico legista não encontrou nenhuma causa para a sua morte. Quando os amigos entraram na sua casa, para arranjar algumas roupas para o funeral, encontraram tudo em ordem. Ninguém nunca soube a razão da sua morte, e ninguém suspeitou que sua última noite sobre a terra tinha sido um completo delírio noturno.