Conhecer a Austrália, este imenso país continente, é um sonho que sempre acalentei; por isso, estava feliz neste fim de semana, o primeiro de minhas merecidas férias, pois iria finalmente realizá-lo. E, para torná-las diferentes das anteriores, longe dos centros urbanos, das inevitáveis aglomerações, sempre levando ao supérfluo e ao dispendioso, optei por iniciá-las de forma inusitada. Embarquei no Ocean Pacific, pronto a desbravar montanhas, planícies e desertos com cidades fantasmas, ou seja, conhecer o verdadeiro sertão australiano.
Isto significa nada menos do que viajar três dias e três noites cruzando de ponta a ponta o continente, da costa do Pacífico, em Sidney, a Perth onde, para oeste, o oceano Índico se derrama incólume até as costas da África. Representa percorrer 4.350 quilômetros e cruzar alguns dos terrenos mais inóspitos da face da terra; do vazio e seco deserto Vitória e da planície de Nullabor, na Austrália setentrional, às impenetráveis montanhas azuis das Novas Gales do Sul.
Saindo do hotel, depois de passear um pouco pela cidade, cheguei à estação central de Sidney, onde embarquei. O conforto das primeiras horas deu lugar a uma tensão que custei a controlar. Estou no coração das montanhas azuis, no trecho mais alto da estrada de ferro. No alto dos seus 1.092 metros o trem corre em um ziguezague interminável, de tirar o fôlego. Haviam construído dessa forma a estrada com o único propósito de se evitar a abertura de caríssimos túneis.
A composição sacode-se sobre os trilhos, numa velocidade desconcertante. Fui obrigado a desviar meus olhos da leitura que me entretinha e lançá-los sobre a paisagem lá fora; confesso que tive medo. Haviam me aconselhado a escolher o corredor se quisesse desfrutar uma viagem tranquila e, somente agora, compreendo a razão deste aconselhamento.
Estamos sobre a encosta de uma montanha, contornando-a a uma altura incrível. Meus olhos se perdem lá embaixo, não consigo vislumbrar os trilhos, tampouco as grades de proteção da estrada de ferro. A sensação é a de estar viajando em pleno ar, sustentado por invisíveis e poderosas asas. Enorme lago e suas longínquas águas azuis compõem quase a totalidade da minha visão. Fora isso, colinas íngremes, pedreguentas, mas apresentando alguns platôs, onde pastam quadrúpedes que mal consigo identificar dada a enorme distância.
O vagão à frente do meu é o restaurante. Começo a me arrepender de uma tola economia que pensei estar fazendo ao dispensar a cabine para esta viagem de três dias e três noites. Ali, por certo, não teria o incômodo dos garçons em seus afazeres nem do vaivém de passageiros insones em busca de um chá ou de uma conversa. Quatro horas de viagem ou pouco menos não me fizeram ainda relaxar para esta longa jornada. Antes que chegasse ao término o burburinho, pois mais e mais pessoas aninhavam-se nas mesas, decidi levantar-me e fazer o mesmo.
Neste vagão se podia fazer o que não era permitido no restante da composição. Não sendo fumante, me era difícil suportar passageiros fumarentos, portanto procurei permanecer longe deles. Mesmo assim , o ambiente impregnado acabaria expulsando-me de lá contra a minha vontade. Precisei, no entanto, deixar um pouco de lado o meu bem estar ao interessar-me pelo assunto vogante entre quase todos que ali se encontravam.
Segundo entendi, havia entre os passageiros um perigoso assassino. Embarcara no terminal junto com os demais; estava disfarçado e ninguém saberia precisar quem seria o sujeito. O que, por enquanto, fiquei sabendo é que teria fugido da prisão na noite anterior. A fim de não me tornar antipático procurei não emitir opinião sobre os rumores. A prudência sempre me sugeriu não dar crédito a comentários enquanto informações oficiais não confirmem a natureza deles.
Logo, era eu, ao saborear um delicioso chá com torradas, apenas um ouvinte atento, mas despreocupado. Duas elegantes senhoras compartilhavam a minha mesa. A cadeira que ocupei era uma das poucas que vi vazias e mais afastadas de pessoas que fumavam. Foi grande o meu esforço para demonstrar naturalidade e afastar delas a desconfiança de que poderia ser eu o tal assassino. Entreolhavam-se cabisbaixas, sem coragem para encarar-me; mas acho que consegui quebrar o gelo e a tensão.
Tirei disfarçadamente do bolso minha credencial e lhes fiz conhecer a minha identidade. Em seus rostos o sorriso tomou o lugar da preocupação. Pudemos então conversar com tranquilidade e sem desconfianças. Ainda assim mostravam apreensão e não deixavam de virar o pescoço e olhar assustadas cada vez que um homem entrava desacompanhado no ambiente.
- Podem ficar sossegadas - disse, recolhendo ao bolso o documento. -Assassinos não agem em vagões restaurantes; não são tão idiotas a ponto de se exporem desse jeito. Aliás, crimes dentro de trens não são cometidos de uma forma evidente.
- Moço, já que o senhor é uma autoridade, não seria aconselhável uma investigação em todos os passageiros? Não deve ser tão trabalhoso. Pelo que vimos há muito mais mulheres do que homens nesta viagem.
Foi a mais jovem das duas que me dirigiu estas palavras. Devia ter perto dos seu cinquenta e cinco anos e falava com simpatia; um chapéu rosado de belas abas dava-lhe um toque de jovialidade. A princípio achei ingênuo o seu senso de observação e senti ímpetos de dar uma boa risada, mas me contive. Logo procurei entender a defesa disfarçada que fazia do universo feminino.
- Minha senhora, desculpe a discordância e se estou sendo deselegante, mas, não são somente os homens que cometem crimes e assassinatos.
- Não digo que esteja errado, cavalheiro. Mas, veja a diferença: o senhor conhece os criminosos e eu entendo as mulheres, até porque sou uma. Não cometemos violência ou crimes de morte na mesma proporção que vocês, homens; não precisamos deste expediente, senão como última e desesperada escolha. É muito fácil provar: olhe os presídios. Quantos o senhor conhece em nosso país exclusivo para mulheres? E quantos são os destinados aos homens, exclusivamente? O senhor há de convir que tenho razão. Não precisa me responder se não quiser. Gostaria de mudar de assunto; sobre o que quer falar?
Ainda que cansado de um dia cheio que fora aquele, não tinha perdido o meu senso de humor, característica positiva que faz parte da minha natureza e que procuro manter permanentemente. Ao invés de aborrecer-me com o seu jeito petulante de falar, deu-se o efeito contrário: achei extremamente engraçado e senti novamente vontade de rir. Só que desta vez não fiz cerimônia; deixei explodir uma sonora gargalhada que chegou a chamar a atenção de alguns passageiros.
- Como o senhor pode ser tão mal educado!?
Fi-la compreender, com a máxima delicadeza de que fui capaz, que não foi minha intenção ser grosseiro. Que apenas estava tentando manter um clima de descontração em virtude da onda de insegurança que reinava a bordo. Mas, parece que isso não adiantou. Ela se levantou, chamando a outra, deixando seu chá ainda pela metade.
- Vamos, Elizabeth. Passar muito bem, meu senhor!
Antes mesmo que pudesse responder à despedida, sou interrompido pelo som vindo do alto-falante:
“Senhores passageiros, aqui fala o seu inspetor de bordo. Não sabemos exatamente o que originou o comentário que se instalou neste trem, porém, posso garantir a todos: fiquem tranquilos e aproveitem sua viagem. Em menos de trinta minutos teremos uma parada e nossos agentes farão um reconhecimento de todos os passageiros. A partir de agora, vamos encerrar temporariamente os serviços de bordo. Pedimos aos que estiverem no vagão restaurante que retornem as suas poltronas e cabines, muito obrigado.”
Após esse aviso, passei a dar crédito a tudo que ouvira e aguardar uma solução. Retornei para o meu assento, mas algo me surpreendeu: preso a minha poltrona vi um papelzinho dobrado. Abri. Era um bilhete; tinha a seguinte mensagem:
“Desça na próxima estação se quiser evitar problemas; o senhor não é bem vindo nesta composição.” Não havia assinatura. Agora tinha motivos para me preocupar. Todavia, por fazer parte da minha profissão este tipo de coisa, procurei agir naturalmente. Peguei, do porta revistas a minha frente, o jornalzinho, que ainda não lera, e me pus a folheá-lo.
Tal foi minha distração ao chegar e encontrar o referido bilhete e mesmo já há mais de dez minutos absorvido na leitura, que não havia notado a ausência do meu vizinho de poltrona. Segundo a ordem que fora dada deveria estar de volta ao seu lugar como todos agora estavam. Não me Lembro de, tampouco, tê-lo visto no vagão restaurante. Mas, logo tirei da mente esta preocupação para voltar à leitura do meu jornal. Os minutos escoaram-se com rapidez e, uma sensação de relaxamento começou a tomar conta de mim; reclinei um pouco minha poltrona, pois senti que não tardaria a entrar no sono.
Não há coisa mais desagradável que possa acontecer a um cristão do que ser despertado enquanto, tranquila e solenemente, dorme, alheio a tudo e a todos. Foi o que me aconteceu e da forma mais inusitada; a sensação é horrível e esta eu não desejo a ninguém. Foi um grito medonho, de estarrecer, vindo das profundezas do infinito, segundo minha impressão. Tido como um sonho a princípio, mas tornado real para minha agonia.
Viera da parte de trás da composição; imediatamente corri para lá. Identifiquei-me ao agente ferroviário que bloqueava a passagem para além da entrada de uma cabine onde ocorrera o crime. Estava explicada, em parte, a surpresa que tive quando retornava para a minha poltrona vindo do vagão restaurante: ali estava, caído entre a cama e o armário da cabine, com o pescoço quebrado, o meu companheiro de assento.
- Quem é o passageiro desta cabine? - o agente encarou-me estupefato diante da minha pergunta que pareceu, a ele, idiota.
- Este homem viajava ao lado da minha poltrona.
- Venha comigo, por favor - disse ele, mostrando-se ainda mais estupefato do que antes.
Trancou a porta da cabine, desculpando-se por não permitir ainda qualquer aproximação ao morto para colher impressões ou fazer outro procedimento. Acompanhando-o, atravessamos alguns vagões, cruzamos o restaurante e, no carro seguinte, entramos em uma cabine, na verdade, um camarote com mesa, poltrona e duas cadeiras de estofo avermelhado. Na pequena mesa sentava-se um senhor de idade, bem vestido, aparentando pessoa de classe social elevada. Reconheci isto pela qualidade das roupas que usava e pelo seu ar um tanto quanto aristocrático.
Seu estado físico, no entanto, não era dos melhores. Notei certa tremedeira em suas mãos, uma palidez nas faces e olhar incerto. Intui, por suas reações e pelo fato de ter sido eu levado até ele pelo inspetor, que o velho estava envolvido no qu e acontecera; mostrei-lhe minhas credenciais e procedi a um interrogatório. Sua voz era de um embargo desconcertante. Sugeri que tomasse uma água ou qualquer outra coisa que pudesse acalmá-lo antes que começássemos a conversar. Ele agradeceu-me a intenção dizendo que o já haviam servido.
- Este senhor encontrava-se junto à vítima no momento do crime - disse-me o inspetor.
- Pode me contar o que houve? - perguntei. Suas faces agora já haviam adquirido cor, ele parecia um pouco mais seguro de si; senti que minha presença dava-lhe alguma confiança.
- Não sei se poderei dizer como aconteceu. Não faço ideia, pois não vi o assassino. Soubemos, eu e meu amigo, através de uma conversa no celular, que viajávamos no mesmo trem. Convidei-o para vir a minha cabine, ausentei-me alguns minutos para ir ao banheiro quando, de repente, um baque horrível assustou-me e eu corri para ver o que era; já o encontrei caído e sem vida. Pensei, a princípio, que havia sofrido um enfarte fulminante. Foi quando, seu pescoço, terrivelmente torto, e a janela erguida convenceram-me de que um crime havia sido cometido.
- Não chegou a ver o assassino, então?
- Faltou muito pouco para que o visse. Na verdade, um vulto perpassou minha visão, o que me deixou totalmente confuso. Digo assim, porque encontrei também aberta a porta de nossa cabine. Uma enorme sombra projetou-se na parede a minha frente e logo depois se dissipou.
Logicamente a dúvida que me dominava tinha a ver com as palavras do velho a respeito da janela. Considerando seu estado psicológico, era grande a probabilidade de não dar crédito ao que ele dissera. Mas, observando bem, acabei por confirmar a estirpe daquele senhor. Pertencia à nobre família que por dezenas de anos dominou os mais famosos complexos industriais de Alice Spring. E é para lá que ele se dirigia depois de desembarcar em Adelaide e fazer a baldeação para o Ghan, outro famoso trem australiano. Ao ouvir minha pergunta sobre que valores transportava em sua cabine, respondeu, com aparente tranquilidade:
Nada mais do que um colar de pérolas e alguns anéis que adquiri em Sidney e tencionava levar a minha mulher como presente de aniversário.
As joalherias de Sidney deixaram-me impressionado, tal a imponência de suas mercadorias. As poucas que visitei o fiz muito mais atraído pela curiosidade e beleza de suas vitrines do que pelo interesse da compra; esta estava mesmo descartada pelo meu padrão financeiro. Mas, para aquele senhor a minha frente, adquirir artigos de uma joalheria tinha o mesmo significado que, para mim, tinha o de fazer compras em um supermercado; apenas esse exemplo já demonstra o seu poder de riqueza.
À media que conversávamos ia ele adquirindo mais calma e bem estar. Dever ter gostado de mim, pois se mostrava muito simpático e até descontraído. Fiquei sabendo que o morto não era na verdade um amigo, mas alguém que ele conhecera em Sidney.
- Foi para mim uma ótima companhia. Acabei superando a solidão durante quase uma semana que lá permaneci. - Isto me fez pensar e, neste ato, um lampejo aguçou-me a imaginação. Imediatamente, levantei-me.
- O senhor me dê licença, por favor; não saia daqui.
Corri até a cabine, já com a arma em punho. Como eu previa: estava trancada. Dois tiros na fechadura foram suficientes para escancará-la e, ao mesmo tempo, causar gritos de desespero em alguns passageiros.
- Alto lá, ou eu atiro! -falei ao sujeito dependurado à janela.
Ele não deve ter acreditado em minhas palavras e fez o gesto que ia saltar. O trem fazia uma curva íngreme em baixa velocidade; disparei duas vezes. Após os tiros parou-se a composição. Corri ao maquinista, dando ciência do ocorrido e ordenando-o que aguardasse. Desci ali mesmo e fui até o bandido. Acertara-o nas duas pernas, o que o deixou imóvel e gemendo terrivelmente. A sua volta, reluzindo sobre a vegetação do serrado, as jóias que ele roubara; recolhi uma a uma enquanto socorriam o desgraçado.
-Aqui tem suas joias. Por pouco o senhor não retorna a Sidney ou adeus presente de aniversário - disse, entregando tudo ao velho senhor. Ele sorriu e pediu-me explicações. Tudo que fiz foi afastar uma divisória que nos separava do vagão seguinte e mostrar-lhe, deitado sobre a cama de uma cabine e ainda contorcendo-se em dores, o inspetor, ou melhor, o ladrão e assassino. Tirou a vida do inspetor verdadeiro, lançando o corpo montanha abaixo, após vestir o seu uniforme. - Quanto valiam aquelas joias? - perguntei.
- Se não me engano, algo em torno de U$40.000.
- Muito bem, um prato cheio para os dois.
-Como assim? - perguntou-me espantado.
- O seu companheiro de Sidney deu-lhe todo o serviço e, juntos, tramaram o ganho. Só que, a esperteza falou muito mais alto. Morto um, morto dois e quarenta mil dólares é muito melhor do que vinte.
Deixei o velho feliz e convicto que a lei funciona e que nela ele podia confiar. Penso que teve uma viagem tranquila até Adelaide. Quanto a mim, não posso afirmar o mesmo, pois findara ali o sonho de atravessar de trem o sertão australiano. Desceria na próxima parada, Lithgow, para entregar o criminoso. Acho que voltarei a Sidney algum dia para retomar minhas férias, mas, de trem, nem pensar.
Isto significa nada menos do que viajar três dias e três noites cruzando de ponta a ponta o continente, da costa do Pacífico, em Sidney, a Perth onde, para oeste, o oceano Índico se derrama incólume até as costas da África. Representa percorrer 4.350 quilômetros e cruzar alguns dos terrenos mais inóspitos da face da terra; do vazio e seco deserto Vitória e da planície de Nullabor, na Austrália setentrional, às impenetráveis montanhas azuis das Novas Gales do Sul.
Saindo do hotel, depois de passear um pouco pela cidade, cheguei à estação central de Sidney, onde embarquei. O conforto das primeiras horas deu lugar a uma tensão que custei a controlar. Estou no coração das montanhas azuis, no trecho mais alto da estrada de ferro. No alto dos seus 1.092 metros o trem corre em um ziguezague interminável, de tirar o fôlego. Haviam construído dessa forma a estrada com o único propósito de se evitar a abertura de caríssimos túneis.
A composição sacode-se sobre os trilhos, numa velocidade desconcertante. Fui obrigado a desviar meus olhos da leitura que me entretinha e lançá-los sobre a paisagem lá fora; confesso que tive medo. Haviam me aconselhado a escolher o corredor se quisesse desfrutar uma viagem tranquila e, somente agora, compreendo a razão deste aconselhamento.
Estamos sobre a encosta de uma montanha, contornando-a a uma altura incrível. Meus olhos se perdem lá embaixo, não consigo vislumbrar os trilhos, tampouco as grades de proteção da estrada de ferro. A sensação é a de estar viajando em pleno ar, sustentado por invisíveis e poderosas asas. Enorme lago e suas longínquas águas azuis compõem quase a totalidade da minha visão. Fora isso, colinas íngremes, pedreguentas, mas apresentando alguns platôs, onde pastam quadrúpedes que mal consigo identificar dada a enorme distância.
O vagão à frente do meu é o restaurante. Começo a me arrepender de uma tola economia que pensei estar fazendo ao dispensar a cabine para esta viagem de três dias e três noites. Ali, por certo, não teria o incômodo dos garçons em seus afazeres nem do vaivém de passageiros insones em busca de um chá ou de uma conversa. Quatro horas de viagem ou pouco menos não me fizeram ainda relaxar para esta longa jornada. Antes que chegasse ao término o burburinho, pois mais e mais pessoas aninhavam-se nas mesas, decidi levantar-me e fazer o mesmo.
Neste vagão se podia fazer o que não era permitido no restante da composição. Não sendo fumante, me era difícil suportar passageiros fumarentos, portanto procurei permanecer longe deles. Mesmo assim , o ambiente impregnado acabaria expulsando-me de lá contra a minha vontade. Precisei, no entanto, deixar um pouco de lado o meu bem estar ao interessar-me pelo assunto vogante entre quase todos que ali se encontravam.
Segundo entendi, havia entre os passageiros um perigoso assassino. Embarcara no terminal junto com os demais; estava disfarçado e ninguém saberia precisar quem seria o sujeito. O que, por enquanto, fiquei sabendo é que teria fugido da prisão na noite anterior. A fim de não me tornar antipático procurei não emitir opinião sobre os rumores. A prudência sempre me sugeriu não dar crédito a comentários enquanto informações oficiais não confirmem a natureza deles.
Logo, era eu, ao saborear um delicioso chá com torradas, apenas um ouvinte atento, mas despreocupado. Duas elegantes senhoras compartilhavam a minha mesa. A cadeira que ocupei era uma das poucas que vi vazias e mais afastadas de pessoas que fumavam. Foi grande o meu esforço para demonstrar naturalidade e afastar delas a desconfiança de que poderia ser eu o tal assassino. Entreolhavam-se cabisbaixas, sem coragem para encarar-me; mas acho que consegui quebrar o gelo e a tensão.
Tirei disfarçadamente do bolso minha credencial e lhes fiz conhecer a minha identidade. Em seus rostos o sorriso tomou o lugar da preocupação. Pudemos então conversar com tranquilidade e sem desconfianças. Ainda assim mostravam apreensão e não deixavam de virar o pescoço e olhar assustadas cada vez que um homem entrava desacompanhado no ambiente.
- Podem ficar sossegadas - disse, recolhendo ao bolso o documento. -Assassinos não agem em vagões restaurantes; não são tão idiotas a ponto de se exporem desse jeito. Aliás, crimes dentro de trens não são cometidos de uma forma evidente.
- Moço, já que o senhor é uma autoridade, não seria aconselhável uma investigação em todos os passageiros? Não deve ser tão trabalhoso. Pelo que vimos há muito mais mulheres do que homens nesta viagem.
Foi a mais jovem das duas que me dirigiu estas palavras. Devia ter perto dos seu cinquenta e cinco anos e falava com simpatia; um chapéu rosado de belas abas dava-lhe um toque de jovialidade. A princípio achei ingênuo o seu senso de observação e senti ímpetos de dar uma boa risada, mas me contive. Logo procurei entender a defesa disfarçada que fazia do universo feminino.
- Minha senhora, desculpe a discordância e se estou sendo deselegante, mas, não são somente os homens que cometem crimes e assassinatos.
- Não digo que esteja errado, cavalheiro. Mas, veja a diferença: o senhor conhece os criminosos e eu entendo as mulheres, até porque sou uma. Não cometemos violência ou crimes de morte na mesma proporção que vocês, homens; não precisamos deste expediente, senão como última e desesperada escolha. É muito fácil provar: olhe os presídios. Quantos o senhor conhece em nosso país exclusivo para mulheres? E quantos são os destinados aos homens, exclusivamente? O senhor há de convir que tenho razão. Não precisa me responder se não quiser. Gostaria de mudar de assunto; sobre o que quer falar?
Ainda que cansado de um dia cheio que fora aquele, não tinha perdido o meu senso de humor, característica positiva que faz parte da minha natureza e que procuro manter permanentemente. Ao invés de aborrecer-me com o seu jeito petulante de falar, deu-se o efeito contrário: achei extremamente engraçado e senti novamente vontade de rir. Só que desta vez não fiz cerimônia; deixei explodir uma sonora gargalhada que chegou a chamar a atenção de alguns passageiros.
- Como o senhor pode ser tão mal educado!?
Fi-la compreender, com a máxima delicadeza de que fui capaz, que não foi minha intenção ser grosseiro. Que apenas estava tentando manter um clima de descontração em virtude da onda de insegurança que reinava a bordo. Mas, parece que isso não adiantou. Ela se levantou, chamando a outra, deixando seu chá ainda pela metade.
- Vamos, Elizabeth. Passar muito bem, meu senhor!
Antes mesmo que pudesse responder à despedida, sou interrompido pelo som vindo do alto-falante:
“Senhores passageiros, aqui fala o seu inspetor de bordo. Não sabemos exatamente o que originou o comentário que se instalou neste trem, porém, posso garantir a todos: fiquem tranquilos e aproveitem sua viagem. Em menos de trinta minutos teremos uma parada e nossos agentes farão um reconhecimento de todos os passageiros. A partir de agora, vamos encerrar temporariamente os serviços de bordo. Pedimos aos que estiverem no vagão restaurante que retornem as suas poltronas e cabines, muito obrigado.”
Após esse aviso, passei a dar crédito a tudo que ouvira e aguardar uma solução. Retornei para o meu assento, mas algo me surpreendeu: preso a minha poltrona vi um papelzinho dobrado. Abri. Era um bilhete; tinha a seguinte mensagem:
“Desça na próxima estação se quiser evitar problemas; o senhor não é bem vindo nesta composição.” Não havia assinatura. Agora tinha motivos para me preocupar. Todavia, por fazer parte da minha profissão este tipo de coisa, procurei agir naturalmente. Peguei, do porta revistas a minha frente, o jornalzinho, que ainda não lera, e me pus a folheá-lo.
Tal foi minha distração ao chegar e encontrar o referido bilhete e mesmo já há mais de dez minutos absorvido na leitura, que não havia notado a ausência do meu vizinho de poltrona. Segundo a ordem que fora dada deveria estar de volta ao seu lugar como todos agora estavam. Não me Lembro de, tampouco, tê-lo visto no vagão restaurante. Mas, logo tirei da mente esta preocupação para voltar à leitura do meu jornal. Os minutos escoaram-se com rapidez e, uma sensação de relaxamento começou a tomar conta de mim; reclinei um pouco minha poltrona, pois senti que não tardaria a entrar no sono.
Não há coisa mais desagradável que possa acontecer a um cristão do que ser despertado enquanto, tranquila e solenemente, dorme, alheio a tudo e a todos. Foi o que me aconteceu e da forma mais inusitada; a sensação é horrível e esta eu não desejo a ninguém. Foi um grito medonho, de estarrecer, vindo das profundezas do infinito, segundo minha impressão. Tido como um sonho a princípio, mas tornado real para minha agonia.
Viera da parte de trás da composição; imediatamente corri para lá. Identifiquei-me ao agente ferroviário que bloqueava a passagem para além da entrada de uma cabine onde ocorrera o crime. Estava explicada, em parte, a surpresa que tive quando retornava para a minha poltrona vindo do vagão restaurante: ali estava, caído entre a cama e o armário da cabine, com o pescoço quebrado, o meu companheiro de assento.
- Quem é o passageiro desta cabine? - o agente encarou-me estupefato diante da minha pergunta que pareceu, a ele, idiota.
- Este homem viajava ao lado da minha poltrona.
- Venha comigo, por favor - disse ele, mostrando-se ainda mais estupefato do que antes.
Trancou a porta da cabine, desculpando-se por não permitir ainda qualquer aproximação ao morto para colher impressões ou fazer outro procedimento. Acompanhando-o, atravessamos alguns vagões, cruzamos o restaurante e, no carro seguinte, entramos em uma cabine, na verdade, um camarote com mesa, poltrona e duas cadeiras de estofo avermelhado. Na pequena mesa sentava-se um senhor de idade, bem vestido, aparentando pessoa de classe social elevada. Reconheci isto pela qualidade das roupas que usava e pelo seu ar um tanto quanto aristocrático.
Seu estado físico, no entanto, não era dos melhores. Notei certa tremedeira em suas mãos, uma palidez nas faces e olhar incerto. Intui, por suas reações e pelo fato de ter sido eu levado até ele pelo inspetor, que o velho estava envolvido no qu e acontecera; mostrei-lhe minhas credenciais e procedi a um interrogatório. Sua voz era de um embargo desconcertante. Sugeri que tomasse uma água ou qualquer outra coisa que pudesse acalmá-lo antes que começássemos a conversar. Ele agradeceu-me a intenção dizendo que o já haviam servido.
- Este senhor encontrava-se junto à vítima no momento do crime - disse-me o inspetor.
- Pode me contar o que houve? - perguntei. Suas faces agora já haviam adquirido cor, ele parecia um pouco mais seguro de si; senti que minha presença dava-lhe alguma confiança.
- Não sei se poderei dizer como aconteceu. Não faço ideia, pois não vi o assassino. Soubemos, eu e meu amigo, através de uma conversa no celular, que viajávamos no mesmo trem. Convidei-o para vir a minha cabine, ausentei-me alguns minutos para ir ao banheiro quando, de repente, um baque horrível assustou-me e eu corri para ver o que era; já o encontrei caído e sem vida. Pensei, a princípio, que havia sofrido um enfarte fulminante. Foi quando, seu pescoço, terrivelmente torto, e a janela erguida convenceram-me de que um crime havia sido cometido.
- Não chegou a ver o assassino, então?
- Faltou muito pouco para que o visse. Na verdade, um vulto perpassou minha visão, o que me deixou totalmente confuso. Digo assim, porque encontrei também aberta a porta de nossa cabine. Uma enorme sombra projetou-se na parede a minha frente e logo depois se dissipou.
Logicamente a dúvida que me dominava tinha a ver com as palavras do velho a respeito da janela. Considerando seu estado psicológico, era grande a probabilidade de não dar crédito ao que ele dissera. Mas, observando bem, acabei por confirmar a estirpe daquele senhor. Pertencia à nobre família que por dezenas de anos dominou os mais famosos complexos industriais de Alice Spring. E é para lá que ele se dirigia depois de desembarcar em Adelaide e fazer a baldeação para o Ghan, outro famoso trem australiano. Ao ouvir minha pergunta sobre que valores transportava em sua cabine, respondeu, com aparente tranquilidade:
Nada mais do que um colar de pérolas e alguns anéis que adquiri em Sidney e tencionava levar a minha mulher como presente de aniversário.
As joalherias de Sidney deixaram-me impressionado, tal a imponência de suas mercadorias. As poucas que visitei o fiz muito mais atraído pela curiosidade e beleza de suas vitrines do que pelo interesse da compra; esta estava mesmo descartada pelo meu padrão financeiro. Mas, para aquele senhor a minha frente, adquirir artigos de uma joalheria tinha o mesmo significado que, para mim, tinha o de fazer compras em um supermercado; apenas esse exemplo já demonstra o seu poder de riqueza.
À media que conversávamos ia ele adquirindo mais calma e bem estar. Dever ter gostado de mim, pois se mostrava muito simpático e até descontraído. Fiquei sabendo que o morto não era na verdade um amigo, mas alguém que ele conhecera em Sidney.
- Foi para mim uma ótima companhia. Acabei superando a solidão durante quase uma semana que lá permaneci. - Isto me fez pensar e, neste ato, um lampejo aguçou-me a imaginação. Imediatamente, levantei-me.
- O senhor me dê licença, por favor; não saia daqui.
Corri até a cabine, já com a arma em punho. Como eu previa: estava trancada. Dois tiros na fechadura foram suficientes para escancará-la e, ao mesmo tempo, causar gritos de desespero em alguns passageiros.
- Alto lá, ou eu atiro! -falei ao sujeito dependurado à janela.
Ele não deve ter acreditado em minhas palavras e fez o gesto que ia saltar. O trem fazia uma curva íngreme em baixa velocidade; disparei duas vezes. Após os tiros parou-se a composição. Corri ao maquinista, dando ciência do ocorrido e ordenando-o que aguardasse. Desci ali mesmo e fui até o bandido. Acertara-o nas duas pernas, o que o deixou imóvel e gemendo terrivelmente. A sua volta, reluzindo sobre a vegetação do serrado, as jóias que ele roubara; recolhi uma a uma enquanto socorriam o desgraçado.
-Aqui tem suas joias. Por pouco o senhor não retorna a Sidney ou adeus presente de aniversário - disse, entregando tudo ao velho senhor. Ele sorriu e pediu-me explicações. Tudo que fiz foi afastar uma divisória que nos separava do vagão seguinte e mostrar-lhe, deitado sobre a cama de uma cabine e ainda contorcendo-se em dores, o inspetor, ou melhor, o ladrão e assassino. Tirou a vida do inspetor verdadeiro, lançando o corpo montanha abaixo, após vestir o seu uniforme. - Quanto valiam aquelas joias? - perguntei.
- Se não me engano, algo em torno de U$40.000.
- Muito bem, um prato cheio para os dois.
-Como assim? - perguntou-me espantado.
- O seu companheiro de Sidney deu-lhe todo o serviço e, juntos, tramaram o ganho. Só que, a esperteza falou muito mais alto. Morto um, morto dois e quarenta mil dólares é muito melhor do que vinte.
Deixei o velho feliz e convicto que a lei funciona e que nela ele podia confiar. Penso que teve uma viagem tranquila até Adelaide. Quanto a mim, não posso afirmar o mesmo, pois findara ali o sonho de atravessar de trem o sertão australiano. Desceria na próxima parada, Lithgow, para entregar o criminoso. Acho que voltarei a Sidney algum dia para retomar minhas férias, mas, de trem, nem pensar.