DIÁRIO DOS SONHOS - PARTE FINAL

06/06

Coloquei uma roupa bem velha, para poder jogar fora depois. Levei uma sacola com uma muda de roupas normais e deixei escondido no começo da trilha, para me trocar na volta.

Enquanto caminhava parei umas duas vezes, achando-me totalmente maluca e querendo desistir. Perguntava a Deus se devia mesmo fazer aquilo. A resposta veio quando um grande pingo de chuva caiu em minha cabeça. Começava a chover, como em todos os sonhos.

Após uns trinta minutos de caminhada, cheguei ao local, ofegante, ensopada e cheia de coceira por causa do mato molhado.

Olhando bem a clareira, percebi que um objeto se destacava na terra escura. Era a pá pousada sobre um pequeno monte de terra, que eu escavei no meu “sonho”. Vi as marcas dos meus joelhos na terra e, aproveitando seu molde, comecei a cavar. A terra era um pouco arenosa e, como no sonho, a chuva facilitava meu trabalho. Perdi a noção de quanto tempo cavei, parando, às vezes, para descansar. Cavei muito fundo.

Estava quase desistindo quando senti alguma coisa diferente. Extraindo forças de algum lugar desconhecido de mim, embalada por sensações que iam do medo à coragem extremos, cavei agressivamente até conseguir retirar a terra de toda a extensão do objeto. Era comprido e, quando faltavam apenas dois dedos de terra, comecei a desconfiar que não era um caixote cheio de ouro.

A chuva ajudava a lavar a terra que restava, senti que apalpava a superfície de algo macio, gelado e firme, um cadáver! Me dei conta que olhava para seus pés.

O susto inicial foi grande. Meu coração batia descompassadamente enquanto eu deslizava vagarosamente o olhar sobre o cadáver.

Observando bem, notei que vestia uma camisola, que era igual à do meu sonho, mas estava mais esfarrapada.

Paralisada de terror, cheguei ao rosto e tive o maior choque da minha vida. Um grito de pânico ficou sufocado em minha garganta e lágrimas brotaram dos meus olhos, deixando minha visão tão embaçada, quanto anuviada estava minha mente.

Minha mãe!!! Uma dor aguda invadiu minha cabeça e caí para o lado da cova, sem palavras e quase inconsciente de tristeza.

Não sei quanto tempo fiquei ali. As lágrimas escorrendo pelo meu rosto, a chuva caindo lentamente, como se chorasse junto comigo, as folhas das árvores balançavam de um lado para outro, sussurrando um cântico fúnebre. A tristeza tomou conta de mim. Naquele momento, não havia mais nada. Sentia-me pairar no espaço, com um fundo preto.

Fiquei muito tempo ali, deitada, querendo morrer, querendo só desaparecer.

Quando me senti um pouco mais controlada, levantei-me para olhar novamente. Fora os trapos, seu corpo estava razoavelmente conservado, assim como seu rosto, e parecia olhar-me assustada. Fiquei pensando porque meu pai não me contou, porque deixou-me com a esperança de um retorno, porque não deu um enterro digno a ela...

Conforme esses pensamentos me passavam pela cabeça, eu ia reparando nas peculiaridades do corpo, quando percebi marcas em seu pescoço, cortes, machucados. Reuni toda minha coragem, olhei mais de perto e vi que havia restos de alguma coisa envolvendo seu pescoço. Apesar das náuseas, coloquei a mão na cova e, delicadamente, puxei esses restos que, descobri ser uma corda. Um pensamento veio imediatamente à minha mente: ENFORCADA!

Senti novamente o desespero me invadir e comecei a imaginar quem poderia ter feito isso.

Teria ela se matado? Mas, apesar de todas as tristezas de sua história, ela sempre dizia que o maior bem que temos é a vida, e que ela tinha outra benção maior: a minha vida. Ela tinha me gerado em seu ventre e me dizia da maravilhosa sensação de estar grávida, pois nunca se sentira tão viva! Não! Ela não poderia ter se matado! Mas então quem fez aquilo? Meu pai? Não podia acreditar que ele seria tão mau! Mas já tinha ouvido tantas histórias de pessoas que parecem normais e, de repente, matam a família inteira...

Comecei a olhar o corpo com o máximo de atenção para procurar qualquer outra coisa atípica e reparei que uma de suas mãos estava fechada.

Levantei seu braço e comecei a abrir os dedos com sacrifício. Em minha luta com a mão inerte, percebi que, à medida que eu abria os dedos e os segurava para não se fecharem, uma pequena correntinha pendurou-se.

Arrancando-a da sua mão, olhei com calma e reconheci na hora. Era a corrente que tantas vezes eu vira no pescoço de Fátima nos porta-retratos espalhados pela casa.

Minha mãe morrera enforcada, mas teve tempo de arrancar de sua inimiga uma última lembrança, para deixar que alguém achasse e buscasse a justiça.

Um misto de ódio e medo me envolveu: teria meu pai compactuado com isso?

Não me lembro direito do que aconteceu depois. Só lembro que saí correndo e cheguei à cidade indo para delegacia.

Acordei num hospital, uma semana depois. Sedaram-me, pois eu estava em estado de choque.

Fátima foi presa e está sendo processada.

Meu pai não sabia de nada, foi me visitar no hospital e me pediu desculpas por não ter confiado em mim. Chorou muito e disse que, de agora em diante, seríamos apenas eu e ele.

Esta noite sonhei com minha mãe. Passeávamos por um jardim florido, ela usava um vestido muito bonito, conversávamos e ríamos muito, e nesta noite não choveu.