DIÁRIO DOS SONHOS
14/05
Querido diário,
Meu nome é Ana Alencar, tenho 16 anos e vivo numa pequena cidade do interior.
Moro com meu pai e minha madrasta, Fátima. Minha mãe desapareceu há onze meses. Um dia voltei da escola e ela não estava em casa. Meu pai chegou do trabalho à noite e ela ainda não tinha voltado. Passei a noite em claro esperando por ela. Meu pai acreditava que era apenas mais uma reação por causa das brigas. Ele era muito machista, gostava de sair para beber, e não levava minha mãe. Ela o acusava de ter outras mulheres e eles estavam brigando muito. Por isso, quando minha mãe sumiu, ele esperou uns dias e saiu espalhando pela cidade que ela foi embora. Fez-se de vítima.
Eu fiquei muito triste! Quis pedir à polícia para procurá-la, mas ainda não podia fazer uma queixa. Nunca me conformei com seu sumiço, afinal, ela não tinha levado nada. Seus vestidos estavam todos lá, seus livros (ela adorava ler, era professora), e ficava tentando provar a estranheza de tudo isso para meu pai, até que ele deu um basta. Disse que eu estava ficando malcriada e que se ele não me pusesse na linha, ia ficar como minha mãe. Isso assim, dito em tom pejorativo, acabou comigo. Desde esse dia, passei a ficar mais tempo trancada em meu quarto, lendo os livros da minha mãe e ouvindo seus discos, afinal, nunca tive muitas amizades, nem na escola.
Pouco tempo depois meu pai apareceu com uma namorada, disse que ela ia morar com a gente “para ajudá-lo a me criar”. Fiquei péssima, mas não deixei que percebesse, engoli meu choro e fui simpática com minha nova madrasta.
Ela me trata bem, mas não somos verdadeiramente amigas, parece que algo impede que tenhamos algum tipo de intimidade. Uma vez meu pai me perguntou como iam nossas relações e eu expliquei isso para ele. Ele disse que a culpa era minha, pois ainda pensava na mãe que tinha me abandonado.
Ver meu pai é Fátima juntos até que não era difícil, mas dói ver as fotos da minha mãe serem substituída pelas de Fátima, o guarda-roupa se enchendo novamente, e ela só não passou a usar as roupas de minha mãe porque eu as escondi.
Apesar disso nos damos bem, sinto que ela é um pouco dissimulada, às vezes.
Bom, contei um pouco de mim, mas o verdadeiro motivo para esse diário é descrever uns sonhos estranhos que eu estou tendo ultimamente, e não tenho para quem contar. Sempre achei “diário” coisa de menina boba, que não tem o que fazer, mas neste caso, vai funcionar como um amigo, e vai ser só sobre os sonhos.
Não me lembro quando de quantas vezes sonhei essa história, mas vou considerar como a primeira.
Sonho1:
Sonho que acordo, levanto-me da cama e caminho até a porta da minha casa. Sempre estou descalça e com uma camisola velha, que não conheço. Abro a porta, está chovendo e fico um tempão observando a chuva cair. Sinto a umidade vinda de fora, a noite está escura e há alguma coisa de triste no ar, meu peito está pesado, a angústia me invade e, quando parece que vou sair pela porta, acordo.
Já tive esse sonho mais de uma vez e é sempre igual.
18/05 – Sonho nº 2
Querido diário,
O sonho está cada vez mais estranho. Dessa vez eu saía da casa, coloquei os pés na terra, senti a sensação desagradável da terra molhada grudando em meus pés. Andei um pouco na chuva. A mesma sensação de angústia e tristeza me dominava. A chuva estava fria. Sentia minha pele arrepiar-se de frio e de medo.
E quando eu acordei, o pior: estava toda molhada e meus pés estavam sujos de lama!
Fui correndo tomar banho para a Fátima não perceber, mas fiquei com muito medo.
Durante o banho, enquanto sentia a água lavar meu corpo, rezei baixinho pedindo a Deus que lavasse minha alma, e para não acontecer mais isso.
Quando saí para ir à escola, percebi que realmente havia chovido de noite, como aconteceu nas outras vezes.
25/05 – Sonho nº 3
Desta vez me enfiei mata adentro, num bosque que tem perto de casa. Andava meio cambaleante, sentindo meus pés afundarem no barro, os galhos roçarem em meu rosto, uma onde de pavor me envolvia aos poucos até que acordei. Estava em meu quarto, era madrugada. Estava molhada, suja e cheia de carrapichos na roupa. O engraçado é que no sonho, eu estou sempre com aquela camisola estranha, velha, e que quando acordo, estou com meu pijama.
Desta vez não deu para tomar banho no meio da noite, pois Fátima e meu pai poderiam perceber. Troquei de pijama e escondi esse sujo. Hoje de noite, quando meu pai chegar do trabalho, vou contar para ele.
25/05
Meu pai chegou do trabalho. Eu fiquei esperando Fátima chamar, pois ia contar sobre os sonhos durante o jantar, mas, antes que Fátima chamasse, meu pai entrou em mo quarto com o pijama sujo nas mãos acusando-me de estar me encontrando com garotos à noite no bosque.
Neguei, mas ele não deu atenção. Levei uma surra que me doeu no corpo e na alma. Não desci para jantar e chorei até dormir. Resolvi não colocar pijama. Dormi de calcinha e sutiã.
28/05
Sonho nº 04
Desta vez eu caminhei por uma trilha no bosque e cheguei a uma pequena clareira. Ajoelhei-me em determinado lugar, sujando a camisola. Aparentemente não tinha porquê eu ajoelhar ali, não tinha nada naquele lugar.
Acordei, estava ensopada e meus pés estavam cheios de barro, mas não sujei a calcinha e o sutiã. Fui ao banheiro e me limpei. Não vou apanhar mais.
01/06
Sonho nº 5
Cheguei à clareira de novo, só que desta vez eu estava com uma pequena pá que minha mãe usava. Ajoelhei-me no mesmo lugar e comecei a cavar. Cavava desesperadamente, a chuva ajudava a amolecer a terra, mas acordei antes de encontrar qualquer coisa.
Acordei bastante triste. A pá me fez lembrar a minha mãe cuidando das plantas, das flores. Agora tudo morreu, o mato invadiu nossa horta. A Fátima não gosta de plantas, nem de animais.
De manhã, quando voltei da escola, a Fátima me perguntou se eu voltei a sair à noite. Eu disse que não e, assim que pude, procurei a pá no meu quarto todo. Não achei em lugar nenhum. Apesar de ter acordado suja de terra e molhada de novo, comecei a duvidar se esta parte do sonho tinha realmente acontecido. E passei o resto da tarde pensando no que eu devia fazer sobre tudo aquilo.
05/06
Ainda não tive o sonho nº 6, mas não quero sonhar mais. Por isso, resolvi que amanhã quando eu chegar da escola, vou seguir a trilha do sonho até a clareira e cavar. Sei que Fátima vai sair e, se eu demorar, digo que fui rezar por minha mãe, pois amanhã faz um ano que ela sumiu.