Lá vem a tempestade
Lá vem a tempestade...
Era tardinha? Não me lembro direito. Eu estava na janela do andar superior de uma casa a beira da praia. No quintal eu via uma menina de uns cinco anos brincando sozinha, cantando para o vento. Eu ouvia as batidas do mar cada vez mais fortes, parecendo querer engolir a terra, e entrar casa adentro. Algumas nuvens escuras se juntaram a outras girando ao redor da praia, da rua, da casa, ameaçando tudo e todos, como se estivessem zangadas e desejassem despejar todo o seu amargor ao povo da pequenina cidade balneária.
Começaram a cair do céu alguns grossos pingos de chuva, eu desci rapidamente as escadas, abri a porta e mandei a menina entrar: - Vai logo, mudar de roupa, se não quiser ter logo um resfriado. A menina correu para o quarto, e logo voltou com algumas peças de roupa na mão pedindo para eu ajuda-la. A chuva caia forte, raios, trovões, relâmpagos, uma forte tempestade de verão. A energia elétrica acabou. Só se ouvia o barulho forte da chuva caindo, e as ondas do mar, rugindo como um leão bravo e indomável.
Ficamos lado a lado, por muitas horas, não sei? As grossas gotas chuvas que caíram com a tempestade, lavaram tudo, levaram as lembranças, as alegrias, as dores, as tristezas, as esperanças, os sonhos, os planos.
Abro a janela, já não vejo no quintal a menina de antes. Hoje vejo uma jovem mulher retirando a roupa do varal, e outra menina brinca no quintal. É diferente da menina de outrora. Esta tem os cabelos louros, encaracolados, não sabe cantar para o vento, brinca com as mãozinhas na fina areia de praia nos fundos do quintal.
A tempestade de verão varreu o passado. Só consigo lembrar de uma voz infantil, cantando canções para o vento, de cabelos negros e lisos voando, enquanto seu corpinho mimoso ia para lá e para cá, balançando-se entre as goiabeiras no fundo do quintal. Estranho tudo ao meu redor. A casa era de madeira, tinha um rancho ao lado, onde meu pai guardava os apetrechos de pesca, tinha um fogão a lenha, e muita lenha estocada. Aonde de vez em quando, uma gambá vinha se esconder. Tudo está tão diferente. Onde era o rancho, agora é uma garagem enorme, com dois automóveis importados, o fogão a lenha desapareceu, ficou no seu lugar uma bela churrasqueira. Nem eu sou mais a mesma. Meus cabelos brancos, não param de cair. Meus dentes há muito já se foram, tenho algumas próteses. Sem contar, nas amiguinhas, que antigamente passavam para conversar um pouco ou trazer algum peixe fresco, ou uma dúzia de siris.
Naquela tarde, a tempestade trouxe aquele maldito homem para nossa casa. Lembro-me mamãe o acudiu por pena, e ele violando todas as regras de conduta, abusou de minha mãe, depois de dar-lhe socos e pontapés. Ela gritou muito e depois ficou imóvel e toda ensanguentada, calada, com um pouco de areia nos lábios. Meu pai chegou, travou uma luta ferrenha com o desconhecido, em vão. Meu pai desmaiou e ele aproveitou-se para fugir. Assisti a tudo escondida atrás da casa. Depois da tempestade, jamais voltei a cantar para o vento, nem a brincar no balanço entre as goiabeiras. Meus tios tomaram conta da casa, de mim e de meu pai que se tornou um alcoólatra. Aí uma tarde quando eu vinha da lagoa, caminhando pela praia, eu o encontrei. Dez anos ou mais tinham se passado, ele estava bem ali na minha frente, rosto queimado pelo sol, cheio de rugas, os cabelos desgrenhados, cacheados, enormes, feito uma juba. As roupas sujas e surradas. Estava andando depressa, parecia que vinha ao meu encontro. O medo instintivo de mim se aproximou, relembrei-me de tudo o que ele fez com minha mãe, e dei-lhe tantos golpes com a faca que trazia em uma das mãos, que logo ele caiu ao chão, vomitando sangue. Corri, corri, corri. Quando cheguei a casa, as gotas de chuva já caíam fortes. Fui até a cozinha, disfarcei lavei bem a faca suja do sangue daquele homem nojento, tomei um banho, troquei de roupa. Lá fora, a tempestade, corria contra as ondas do mar que se debatiam e quebravam na praia.
Hoje outra tempestade se aproxima, vejo nuvens muito negras em cima de minha cama, elas se aproximam rapidamente, em uma das nuvens negras vejo a figura do homem maldito, me ameaçando com gestos e palavras ininteligíveis, do outro lado das nuvens, vejo uma luz brilhante, e ouço a voz gentil de minha mãe a chamar-me: - Venha filha, não tenhas medo, Deus é misericordioso e te perdoará. Fecho os olhos, sou a menina no balanço, e me reencontro com minha mãe e seu hálito de hortelã, juntas caminhamos descalças pela praia, onde o mar sereno com suas ondas beijando a areia forma uma paisagem de calma doçura. Sigo com minha saudosa mãe, além do horizonte, na esperança de receber o perdão dos meus pecados.
Vejo ainda uma tempestade se aproximando ao longe, minha mãe insiste para que eu cante para o vento, pois me ensina que as canções cantadas para o vento têm o poder de afastar as tempestades. Sigo ao seu lado cantando para o vento, pelas ruas do país de minha infância tão longínqua.