O Gato Negro

O gato preto desceu majestosamente a escadaria da casa, e a menina o observava. Não queria tê-lo visto, mas depois que viu simplesmente não imaginou a vida sem ele. Não tinha certeza do que lhe chamara a atenção: o pelo sedoso, o olhar superior, o miado curto e objetivo.

Era preto, completamente preto, nem sequer um pelo branco manchava a imagem, de olhos verdes esmeralda, ele parecia flutuar, seus movimentos pareciam milenares, vindos de outra era, um lugar tão distante quanto se podia imaginar, ele não era dali, não era um ser deste mundo, era de distante, era um gato diferente, sem deixar de ser gato.

Ela o olhava de longe mesmo, tinha medo de atrapalha-lo, mas precisava dele, queria tê-lo, ela amava-o, com todo seu pequeno ser, o amava com todas as forças, era mais do que essencial tê-lo, não era um querer comum, era quase existencial, sua existência se extinguiria sem ele, era como se apaixonar por uma divindade, ele certamente se compararia a Afrodite, e ela o amava, era um amor maior que qualquer outro, maior que qualquer outra coisa palpável, era amor mundo, ou tão grande quanto, até maior talvez, amor que sufoca.

Não queria ter que roubá-lo, mas não via outra maneira, se ela só de vê-lo o amou, imagina quem o tinha, jamais lhe dá-lo-iam, mas ela não poderia viver sem ele, já sabia, tinha um cão, e gostava muito dele, mas sua vida não mais faria sentido sem o gato, sua existência já dependia dele, e não de qualquer um, aquele, tinha que ser aquele.

Ela então se esgueirou pela cerca viva da própria casa, e passou por cima a cerca de madeira, se aproximou lentamente, passo por passo, tomando cuidado de parar quando o gato a viu, não queria espantá-lo, mas assim que ele deitou-se e abaixou a cabeça ela continuou, podia perceber que ele ainda a olhava, mas não se movia, então ela acreditou que já não havia mais problemas, os passos eram curtos e calculados, sempre depois de um passo dando uma olhadela rápida para conferir que o gato ainda estava lá, apenas a observando. Não houve problemas no trajeto, mas quando ela atingiu o portão da casa em frente, onde o gato esperava, sonolento, na varanda, não sabia como pegá-lo.

Sabia que caso chegasse demasiado perto sem preparação o gato iria partir, e ela provavelmente não o veria mais, porém, por mais que ela fizesse, ele nem mesmo se mexia para chegar perto dela.

Ela assoviou, gesticulou com a boca, com os dedos, ela fez gracinhas, quase chorou, mas nada, o gato nem se mexeu, apenas olhou, com os olhos caídos quase fechados. Então, pé ante pé voltou para casa, e com uma tigela de leite nas mãos praticamente correu sorrateiramente para o portão da casa em frente, depositou a tigela de leite no chão, o mais próximo possível do gato, e voltou para baixo da cerca viva, para observar, mas nada, ele nem mesmo ergueu a cabeça, teria que usar uma coisa mais interessante.

Voltou para dentro, pegou uma pedaço de bife frito de dentro da panela e voltou para o portão em frente, deixou o bife perto do leite, mas nada novamente, simplesmente nada que ela fizesse surtia efeito, absolutamente nada. Então aparentemente teria que se contentar, viver sem o gato era sufocante, mas que mais poderia fazer para tê-lo? Roubá-lo era a coisa mais complicada que existia, e ir lá e simplesmente pegá-lo não adiantaria, ai então o perderia de vez, não podia mesmo fazer mais nada, era terrível imaginar essa possibilidade, quase insuportável, um tanto dolorosa, febril até, ela sentia o ar faltando nos pulmões, sentia a dor no peito, sentia no corpo a necessidade cruel de tê-lo, era tão pavoroso o futuro sem ele, mas teria de suportar, aguentar firme e forte, teria que ser suficientemente corajosa, não parecia que seria fácil, mas era a única forma que parecia possível manter a vida.

Então foi para casa, com aquele sufoco no peito, aquela dor na alma, não teve vontade de mais nada, por todo resto de dia, simplesmente não havia mais nada que pudesse querer, tudo se resumia ao gato, se ela tinha fome não comia, pois a fome não superava a dor de não tê-lo, se queria brincar não brincava, pois a vontade de brincar não superava a falta de ar que não tê-lo trazia, se ela sentia sede, queria ver televisão, ligar para as amigas, ir com a mãe na padaria, comer doces, tomar leite, refrigerante ou suco, nada, nada superava não ter o gato, e na hora de dormir, nem mesmo ao sono cedia, pois nem a dor nos olhos e o cansaço do corpo superavam não ter o gato, então viu as horas passarem, segundo por segundo, sem nada poder fazer para tirar a angustia de não ter o novo motivo de sua vida com ela.

Até que aconteceu, ela ouviu, baixo, mas claro, do outro lado da janela, o miado, curto e objetivo, e antes de vê-lo sentado na calçada em frente à janela do quarto ela pode senti-lo, o que a fez levantar, já sabia que não adiantava fazer nada para que ele entrasse, e entendeu que não bastava ela quere-lo, ele teria que quere-la, então apenas deixou uma fresta da janela aberta e voltou para a cama.

A esperança a fez dormir, senti-lo tão perto, tão ali, aliviava a angustia e a dor, era mais fácil viver sabendo que talvez, só talvez, quando acordasse ele estaria deitado ao lado dela, dormindo como um gato dorme. Assim ela dormiu, com esperança, e um tanto de alegria, e quando abriu os olhos o viu, envolto de seu casaco de pele dado por deus, respirando como deveria ser um anjo dormindo, e o que antes era tomado pela dor de não tê-lo se preencheu por uma alegria incondicional, uma felicidade um tanto que anormal, tão deliciosa (ou mais) quanto um pedaço grande de bolo de chocolate com calda quente escorrendo, gostosa como algodão doce no carnaval e pêssegos no natal, como jabuticaba direto do pé, como subir no pé de manga e comer a fruta dele lá mesmo, era uma alegria infantil, mas que trazia tanta responsabilidade que a tornava ainda melhor, nunca sentira uma felicidade como aquela, era como ter o mundo aos pés, e abrir o presente de aniversário, não existia coisa tão profunda no mundo, tão forte, mas ela acalmou a alegria, sabia bem que tinha que guarda-la para a vida, pois não o deixaria partir, não permitiria que escapasse. Trancou a janela, e a porta, foi até a cozinha, pegou leite e colocou em uma tigela, levou para o quarto, o gato ainda dormia, então fechou a porta, não ousaria abrir novamente até à noite, quando fosse dormir. Saiu, comprou ração e uma coleira nova, antes de entrar olhou para a casa em frente, imaginou o quão triste estaria quem quer que fosse que morasse ali, mas não podia fazer nada, e se podia não queria, o gato agora era dela, e o egoísmo não parecia tão ruim quanto não tê-lo, egoísmo é suportável.

Uma semana depois soube: o morador da casa em frente estava morto já há alguns dias.

***

O gato estava lá, olhando para ela, do outro lado do corredor, parecia esperar um movimento, mas ela não se movia, o gato tinha que pertencer a ela, não existiria mais vida sem ele, mas depois de tentar “n” coisas ele não se moveu, e com uma angustia interminável voltou para a casa, sem mais vontade de nada, e de noite, enquanto não dormia ouviu o miar curto e objetivo, ele estava na pequena sacada, abriu uma fresta da porta-janela, voltou a deitar, acordou com o gato aos pés. Alguns dias depois soube, a mulher do apartamento em frente havia morrido.

Amanda França
Enviado por Amanda França em 22/12/2011
Código do texto: T3400880
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.