Amor na Vida e na Morte
Jannerson Xavier
 
A conversa está tensa. Fizemos um grupo de discussão em meu quarto. Eu, meus sentimentos, minhas lembranças, meus medos e minhas culpas. O recinto está totalmente escuro. Toda a casa está. Eu me encontro em minha cama, deitado, com a mulher que amo a dormir em meus braços. Olho para o limbo entre eu e o teto, e para meu redor, onde todos os outros estão de pé, olhando fixamente para mim. Eu não posso vê-los, mas sinto seus olhares. É como uma terapia intensiva. O paciente: eu. Isso é uma atitude desesperada. O último dos recursos. Um trauma para me fazer abrir os olhos, para me acordar. Um choque anafilático de silêncio.
           
Minhas lembranças tratam de começar rapidamente. Elas me dizem o motivo pelo qual eu estou aqui. É como que uma injeção de dor direto no coração. Eu posso novamente sentir o odor, o calor, o amor. Tenro e fértil. Era um amor platônico concretizado, um paradoxo. Algo impossível de ser descrito. A dor é brutal. Minhas lembranças parecem carrascos me castigando como se eu tivesse crucificado Cristo. Eu não grito, sofro em silêncio. Esse é o motivo pelo qual estou aqui. Elas continuam falando como sádicas que se alimentam de minha dor. Naquela noite este mesmo divã em que estou a penar foi a Cama Real, na qual a própria rainha me elevou de plebeu a rei, a um deus. Em meio àquela penumbra que recaía como seda sobre nós, nos amamos. Tudo cessa e o silêncio volta à sala. Minha amada está um pouco fria esta noite. Não é mais a mesma coisa. A escuridão agora pesa como chumbo e é negra como carvão. Como uma calmaria após uma tormenta, meu corpo está anestesiado. Estamos progredindo.
        
    Meus sentimentos tomam a frente e começam seus discursos. Eu, como mero paciente escuto àqueles que me guiaram desde o dia em que minha vida começou a fazer sentido. Ele me diz como me senti no dia seguinte àquele, quando telefonei para minha musa e não conversamos por mais que cinco minutos. Ou no dia depois desse, no qual ela se recusou a vir à minha casa. Isso começa a me entristecer e parece que o peso do mundo todo está sobre mim. Sendo mais piedosos do que as malditas lembranças, os sentimentos esperam pacientes enquanto eu soluço e me afogo em lágrimas. Ela não me ouve. Isso parece mais um julgamento. Restabeleço-me emocionalmente, se é que ainda me lembro como é isso, e eles continuam. Recordo-me agora do dia em que, com um buquê de flores na mão, bati à sua porta e um homem atendeu. Eu não disse uma palavra e saí. Seu silêncio era a prova de minhas suspeitas.

     Uma espada, uma flecha, uma lança! Nenhuma delas encravadas dez vezes em meu coração poderia me causar tantos ferimentos. E nem a vi! Eu sangrava lágrimas e em minha casa o chão vivia úmido. Tranquei este quarto como um templo sagrado de culto à deusa do amor e da traição. O sentimento de ira, pelo qual troquei as lágrimas que derramava, volta à tona. O quarto escuro já está quase escarlate tamanho o fogo em meus olhos quando tudo pára. O telefone tocou naquele dia. Atendi. Uma voz, como que uma canção tímida do outro lado da linha, dizia que apareceria em minha casa. Teria estourado fogos de artifício se os tivesse naquele momento.

     Uma fração de momento depois ela chegou à minha casa. Eu havia preparado um champanhe para recebê-la mas ela veio como se trouxesse uma nuvem negra sobre ela. Entrou, parou em minha frente e disse para que eu a deixasse em paz. Disse que nos últimos três dias, desde que nos conhecêramos, eu não a deixava um segundo sequer. Acho que me enganei. Acho que o que entrou por aquela porta foi um aríete destruindo o que restava de minhas fortificações. Ela se virou rapidamente e seus cabelos dançaram pela minha face. Aquele aroma. Seria a última vez que o sentiria.

     Não! Meus medos, que nesse exato momento estão me olhando com sorrisos doentios, começaram a me controlar como se eu fosse um mero títere. Peguei a garrafa de champanhe, que estava próxima e a despedacei em sua cabeça. Só de me recordar, parece que estou sendo esmagado por uma prensa. Na hora, porém, eu não sentia nada. Eu não era eu. Ela, molhada, foi ao chão depois de um grito rápido, que ainda ecoa em minha cabeça. O que se seguiu foi rápido e silencioso. Lembro-me de minha vista turva indo até a cozinha, pegando uma faca e voltando até o corpo esticado no chão. Três facadas foram suficientes para satisfazer o desejo assassino de algum dos meus amaldiçoados sentimentos. Talvez por isso eles estejam mais calmos. Sinto agora que eu também estou frio.

     Sua vida já se fora a muito quando o sangue se misturava com o champanhe em sua roupa manchada. Peguei-a em meus braços e a levei para a mesma cama do meu templo imaculado. Agora ela estava ali, meu objeto de adoração. Deitei-me ao lado dela como um herege e convoquei aqueles que sempre estiveram comigo. Tudo parecia estranhamente lógico e simples. Creio que a razão que me abandonara a alguns momentos voltou para tomar as rédeas desse corpo. Maldita razão. Nos três dias que se passaram desde que a encontrei, estive imerso em um tormentoso redemoinho de amor, prazer, ódio e tristeza. Agora me encontro no escuro, esquecido, segurando a mais bela mulher em minhas mãos. Ambos imersos num soro de morte, cicuta de sangue, lágrimas e champanhe.
Peço a todos que se retirem do quarto, e assim eles o fazem, exceto a culpa. Ela se abate sobre mim como uma onda gigante. Percebo agora que há dois corpos no recinto, mas uma só vida. A culpa me penetra com o olhar e em seus olhos vejo um futuro tétrico.  Então ela sai do quarto me deixando sozinho com minha deusa.
Percebo agora que ainda estou com a faca na mão. Abro os olhos dela para que eu possa imaginar penetrar a escuridão e ver duas lindas esmeraldas. Junto minha boca à dela para que eu possa imaginar retomar a parte da minha alma que ela roubou por um beijo. Junto nossas mãos para que eu possa finalmente selar nosso destino. Com a satânica faca entre nossas mãos corto meus dois pulsos para que meu sangue possa se juntar àquele soro maligno e transforma-lo no líquido que conservará nosso amor naquela mesma cama onde ela raptou minha vida.


     No momento de minha morte, ela vive. E nos amamos. A densa escuridão é levantada como a cortina pesada de um teatro cuja peça começa grandiosa. Junto com a escuridão, tudo vai sumindo. A faca, as lágrimas, o champanhe, o sangue, o quarto, a cama, ela, eu. Nada existe mais. Nunca existiu.

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JB Xavier
Enviado por JB Xavier em 01/12/2011
Reeditado em 01/12/2011
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