Valeu a pena?
Não tinha muito a ser feito, o sol adormecia e a noite começava a surgir bela e fria como no outono, mas estranhamente já era o inicio da primavera. Olhou uma ultima vez para o céu cinzento e caótico, em sua opinião não havia nada mais belo que aquilo, mas já estava tarde, ha hora chegava.
Adentrou o carro e seguiu de volta pra sua velha casa, nunca havia percebido o quanto a cidade era bonita, na verdade sempre a odiara, odiava as pessoas, odiava as casas, odiava a Avenida Castel onde estava à horrenda casinha azul celeste da família Burns. Mas naquele momento olhando através da janela do carro, ele observava as pessoas que conhecia, no final das contas, ate que não eram tão ruins assim! Cada um deles tinha seu defeito, pensou, mas quem não tinha? Na verdade nunca foi justo odiá-los sem nem mesmo conhecê-los, se tivesse a chance de se redimir... Mas ele sabia que era tarde.
Começou a chover, eram seis horas, passando pela Rua Edmund, ele viu a mansão do velho senhor Thomas, um velho carrancudo que sempre ameaçava atirar em quem entrasse em sua propriedade, deve ter o ameaçado um milésimo de vezes, e naquele momento acreditava que devia ter cumprido sua ameaça.
Ao longe viu sua velha casa e mesmo no meio da rua parou seu carro e observou tudo a sua volta. Sentiu-se melancólico, estava arrependido ter deixado a cidade há cinco anos, mas o que ele podia fazer, só estava ali pra enfrentar sua sina, alias foi esse o acordo!
Aquela velha cidade lhe trazia boas lembranças e ruins também, provavelmente esse era o fato que lhe deixava mais triste, saber que tudo que conhecia, tudo que sentiu e tudo o que pensou, se passou naquela pequena cidade.
Ele saiu do carro carregando uma garrafa de uísque, um caderno e um maço de cigarros, não fumava há anos, mas não importava mais. Entrou na casa, não perdeu tempo abrindo janelas ou algo sim, apenas colocou uma mesa do lado da poltrona, nela deixou um cinzeiro, um copo com gelo e a garrafa de uísque.
O tempo passa, mas para ele cada segundo era uma eternidade de tortura e luta psicológica para não sair correndo dali. Pensou em escrever alguma coisa no caderno, um bilhete ou algo assim, mas toda vez que começava ou pegava no lápis se enchia de fúria e não conseguia escrever nada que achasse útil, deve ter acabado com mais de trinta paginas assim, alem de metade do maço de cigarros e todo o uísque. Mas estranhamente, ele não estava bêbado!
O relógio tocou meia noite, o desespero o fez tremer. Estava pra chegar? Pensou.
Ele se levantou caminhando pela sala, procurando uma resposta, uma saída.
Uma hora, começava a pensar se fugir não era a saída! Alias, não era possível ele o encontrar tão rápido, não e mesmo?
Duas horas, uma estranha coragem surge em seu coração, coragem ou tolice? Percebeu que tudo acontecia por sua culpa, não poderia fugir do destino que criou!
Três horas, a esperança surge junto de uma euforia, uma felicidade sem tamanha, tudo era uma mentira? Ele provavelmente não apareceria!
Três e cinco.
Toc, toc, toc...
Ele sentiu um frio na barriga, não sabia o que dizer, tentou por um momento recuperar a coragem, mas era mais difícil do que parecia. Pensou em deixar a porta fechada, talvez ele se fosse embora. Não... Não podia deixar o destino de lado.
Seguiu com as pernas bambas ate a porta, puxou o ferrolho e girou a chave.
Abriu devagar a porta, através dela, viu que estava o que ele esperava. O mesmo homem de dez anos atrás. Usava o mesmo casaco velho, o mesmo sapato surrado, a única diferença era o cavanhaque ruivo que cultivou.
-Eu... Pensei que... Está atrasado!
-Desculpe, estava ocupado!
Olharam-se por um milésimo de segundo, pareceu uma eternidade olhar para aqueles olhos verdes sem expressão.
-Posso entrar?
-Claro!
Ele adentrou a casa, começou a rodear a sala ate chegar numa parede cheia de fotos começou a olhar.
-A algo que queira fazer antes?
-O que?
-Vi o caderno na mesa, mas não a nada escrito, quer deixar um bilhete ou algo assim?
Em silencio rapaz volta para poltrona e se senta, então finalmente responde.
-Eu tentei, mas não consegui pensar em nada!
-Acontece!
O homem pega uma cadeira e se senta na frente do rapaz.
-Engraçado! Os outros costumam correr, costumam berrar, se ajoelhar e implorar, mas você não! Pergunto se você é corajoso ou um louco?
De repente o rapaz foi tomado por uma estranha coragem, provavelmente o medo misturado com a aceitação criou um sentimento novo. E após uma risada ele responde.
-Acho que louco! Fui eu que te trouxe aqui, por que diabo iria fugir?
O homem coça a barba e franzi as sobrancelhas grossas.
-Interessante!
-Acho que sim!
O silencio permanece por alguns segundos.
-Você é um rapaz ousado, corajoso e honrado! Gosto disso filho!
-Não sei, será que devia agradecer?
-Não e necessário! Mas gostaria de perguntar algo!
-Fale?
-Valeu à pena?
-O que?- perguntou o garoto coçando a cabeça e confuso.
-Perguntei se valeu à pena vendar a sua alma para ficar ao lado daquela garota?
O rapaz começou a pensar, olhou na mesa ao lado, procurando algo na garrafa para lhe dar mais forças, estava vazio.
-Valeu cada segundo!- O rapaz não tinha coragem de admitir aquilo, que iria morrer pela mulher da sua vida... Que o deixou há dois anos! Triste, parecia uma ironia.
O homem olhou desconfiado, e disse:
-Gosto de você rapaz, vou ate mesmo lhe oferecer uma dádiva!
Uma dádiva antes de uma maldição, nada mais justo!
-O que isso quer dizer?
-Que vou realizar um ultimo desejo.
-Hum, posso escolher como vou morrer?
-Desculpe, não, mas posso fazer ser rápido!
-Mesmo?
-Sim, algum de meus companheiros tem métodos particulares pra cumprir o contrato. Alguns estrangulam seus contratantes, outros o estripam ainda vivo, eu sou... Digamos um pouco mais misericordioso!
-Que lindo! E bom saber que um demônio, ou seja, lá o que você for tem compaixão!
O homem começa a rir.
-Agradeço pela observação! Vamos acabar com isso?
O rapaz suspirou e se levantou, quando o homem fez o mesmo o rapaz não se controlou, começou a chorar e caiu de joelhos.
-Eu não queria que tudo tivesse sido em vão! Eu nem sei por que fiz essa droga contrato!
-Calma!- o homem passa a mão na cabeça do rapaz- Tudo vai acabar em breve.
-E depois? Eu vou sofrer o resto da eternidade? Vou perder minha alma queimando eternamente? Merda, eu não mereço isso...
-Fique calmo, eu admito no começo a dor parece insuportável, mas com o tempo, passa! E chega uma hora que você encontra a paz! Você só precisa ser forte.
-Mesmo?
-Mesmo!
No começo as palavras pareciam vazias e sem sentido, mas elas o confortaram lhe deram força quando tudo lhe colocou para baixo.
Ele se levantou, limpou as lagrima, o medo havia morrido, estava na hora de semear o que plantou.
-Pronto?
-Pronto!- Disse após um suspiro.
O homem deu um passo à frente, colocou a mão sobre o peito do rapaz.
De repente a dor começou, era realmente terrível, parece que seu corpo entrou em colapso, ele se agarrou no braço do homem e a outra mão começou a aranhar o seu rosto. Como que estivesse tentando se salvar.
Ele olhou os olhos do homem por uma ultima vez, o que ele viu podia ter o aterrorizado.
Um olhar triste, sem esperança, um olhar igual à dele mesmo quando respondeu, “Valeu cada segundo!”. Um olhar de mentiroso, que tentava provar a existência de algo impossível.
Aquilo não o aterrorizou nada mais o faria, nem mesmo o sofrimento infernal. No final percebeu que não tinha arrependimento, não havia valido cada segundo, mas valeu cada um ao lado dela, e ele podia dizer que talvez estivesse errado, mas faria de seu erro sua força!
O homem se espantou ao ver um sorriso no rosto do rapaz enquanto morria.
Ele sorriu para a morte.
Seu corpo já estava no chão sem vida jogado enquanto o homem pegava um cigarro ainda acesso do cinzeiro, ele se agachou e olhou de novo para o sorriso imortalizado naquela face morta.
O homem sorriu, e partiu deixando o corpo ali, a alma já estava em outro lugar, tudo que deixou foi o cigarro, e uma assinatura em nome do falecido no caderno:
“Pode não ter valido a pena, mas encontrou a paz no local mais improvável”