Preâmbulo:        o texto a seguir complementa a terceira parte do conto “Não mais me verás”.
O “dr.Uílio”, a quem a comunidade trata como médico, porque ele se traja permanentemente de branco, cobiça o cargo de diretor da área de saúde, exercido por Irma - médica voluntária, vinculada à cooperativa que mantém uma bem estruturada casa de repouso para idosos.  Para ele, ocupar esse cargo é um meio de justificar o seu elogiável apelido.   Considera que, pelo caminho da calúnia, alcançará facilmente o seu intento.

 
“Dr.Uílio” está na missa da quinta-feira, contrito.  Um acontecimento estranho.  O turno noturno não é propício para o testemunho do batismo de alguma criança naquela igreja!...   Tampouco, evento algum está sendo comemorado por autoridades leigas da cidade!...  Por que motivo ele está ali, ajoelhado?!...  Um episódio louvável, embora estranho!...

Depois do “Ite, missa est”, todos saem da igreja no sentido do porto, mas o “doutor Uílio” caminha, entre os bancos, pela via contrária.  Sequer cumprimenta as senhoras mais velhas, a quem ele chama de “carolas”.

Adentra na sacristia.   – Necessito, com muita urgência, falar com o senhor... – disse, agastado, por desabituado com a lentidão da missa que acabara de assistir. 

O Cônego Alfredo, desvestindo os paramentos, cumprimenta-o e aponta-lhe uma cadeira defronte à mesa, enquanto encosta sua cadeira de rodas no lado esquerdo. Um confessionário improvisado. 

– Venho, primeiramente, pedir o seu apoio... – O Cônego responde que apoiará, sim, sempre, as causas justas. 

– A razão de que disponho, creio, é mais que justificável para o cancelamento da palestra de amanhã.  Está tudo certo para a Irma falar sobre o tema -  “A importância da família nos degraus da vida” - e ela não tem condições morais para falar sobre esse assunto em nossa comunidade! 

Continuando, desempalha suas torpes razões:

– Durante a inauguração da Casa, um hóspede, de nome Fred – que já tivera um caso com Irma, quando solteiros –, simula uma síncope e se recolhe ao seu apartamento. 

- Antes de terminar a solenidade, ela se despede e sai, quase correndo, pra se encontrar com ele. 

- Eu, macaco velho, encerrei os trabalhos e fui à sua procura.  Flagrei-os em carícias, com a porta escancarada.   Quando me viu, ele fingiu estar desacordado.  Ela, a cínica, também quando me viu, aparentou estar prescrevendo alguma medicação no seu receituário.  Destacou a folha, pôs no bolso do amante e se mandou.  Fiz que também saía, mas voltei imediatamente. 

- Aí, arrebatei do bolso do malandro, falso dorminhoco, a folha que ela deixou escrita.  Está aqui.  Não tem nada de prescrição médica, como ela quis dar a entender!...  Trouxe para o senhor ler e não confiar mais nesses vigaristas!

Encerra sua denúncia e aguarda a reação do Cônego – que já era conhecedor de que Fred sofrera uma má perfusão sanguínea e Irma, única médica presente, fora chamada para socorrê-lo nesse dia.
 
– Meu caro, vou ler o que você me traz.  Saiba, de antemão, que, sendo eu sacerdote, sou obrigado a guardar segredo do que ocorrer nesta nossa conversa reservada.

- Mas..., analisando bem..., para duas pessoas de respeito – conheço-os de perto –, não seria uma tremenda imprudência essa troca de carícias com a porta espamparada?!...

Depois de ter como resposta resmungos amuados do seu interlocutor, leu o pequeno texto, sem pressa.    No final, fez um gesto sorridente e se voltou para o denunciante: 

– Isto aqui, meu irmão, é uma prescrição médica das mais valiosas para quem aparenta reaver uma ternura impossível!  Palmas para essa mulher! 

E, brandamente, somente os dois na sacristia, vai debulhando sua resposta:  

– A mulher, quando se descobre no seu desenvolvimento pleno, sente-se alvo de prazer e realização para o outro sexo.  E o homem sabe que ela exerce o domínio total sobre essas duas forças naturais que o atraem. O prazer é dela, a realização é dela, e o homem somente os consegue através dela.  Isso torna a vida plena, mesmo que algum fracasso possa ocorrer.  Em havendo fracasso, inexoravelmente, aquele que perde investe em busca de um remoto sucesso com uma intensidade de força cada vez maior.  Você sabe que é assim a vida em todos os aspectos.  Os viciados em jogos ilustram muito bem o que quero dizer (o Cônego conhece o denunciante como um viciado em jogo de azar): quanto mais perdem, mais jogam, indo, às vezes inutilmente, em busca do todo que perderam.  

- Asseguro-lhe que esses meus dois amigos, a esta altura da vida, já estão acomodados e felizes com os seus atuais parceiros (escolhidos ou não).  As circunstâncias levaram um deles, ou ambos, à amarga sensação da perda, lá num passado distante.  Aí, nesse caso, o tempo longo da espera exerce uma força equivalente à de uma mola metálica comprimida.  Basta um leve toque para que se provoque nova e muito mais forte impulsão.   É da natureza humana. Mas, também é verdade que, às vezes, se cometem reencontros, assim inesperados, de uma forma tão pura que até deixam de ser pecado.  Os amantes voltam a ser os amigos de outrora. 

- O que esta mulher está demonstrando é que a sua feminilidade já atraiu o parceiro que a faz feliz.  Por ela, o reencontro se realizaria, agora e desinteressadamente, como bons amigos de antes... Um reencontro inesperado, saudável, não de amantes, mas de amigos antigos. Estão plenamente conscientizados de que, por maior que seja o ímpeto da mola agora detonada, esse impulso será no todo amortecido por outras forças de igual proporção.  No caso dela, seriam reunidos em sua defesa os escudos do seu atual companheiro, dos filhos e, sobretudo, da reputação que ela tão bem soube construir, com as bênçãos de Deus.
 
Devolve o texto ao denunciante, recomendando-lhe fazer o melhor uso das lições de vida ali contidas. 

O “dr.Uílio”, que nada vê sob o ângulo comportamental, frustrado e achacado, se despede com jeito de quem apenas perdeu uma batalha.  Cara de quem passou batido só na primeira rodada de um jogo de cartas.  Jogo que vai ter continuidade.
 
Depois do jantar, na pousada, o Cônego – cabisbaixo – desafia Fred para uma partida de xadrez.   Peças no tabuleiro, ele mostra que a “dama” (ou “rainha”) precisa ficar sempre perto do seu “rei”, a fim de proteger-se e protegê-lo.  Se ela se distancia, o “rei” tem as forças diminuídas e o seu reino enfraquece.  E se ela se entrega ao “rei” adversário, o seu reino desaba.

Alerta, também, para o ataque do “cavalo”, que é capaz de pular posições fortemente ocupadas a fim de alcançar o seu objetivo.

Fred sequer desconfia do porquê desses lances...

Irma nem ao menos imagina que há algo no ar...


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