1

     Abelardo odiava os pássaros. Não sabia o motivo exato de tal implicância, mas ele os odiava. Talvez por que tenha crescido com a janela de seu quarto bem de frente para uma enorme amendoeira, aonde as aves faziam ninhos e cantavam festivamente todas as manhãs. Talvez por ter assistido aos oito anos de idade ao filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, e temido as criaturas, assim como muitos temem palhaços devido à filmes em que eles eram vilões sádicos. Ou talvez, simplesmente por falta de afinidade mesmo.
     O fato era que desde pequeno, até os dezoito anos atuais, Abelardo, ou Abel como era chamado por seus pais e pelos poucos amigos que possuía, odiava tudo que tivesse penas e voasse. O ódio era tão grande, que quando se inaugurou uma filial do grupo de fast-food KFC, a dois quarteirões de sua casa, ele sempre cortava caminho por outra rua, só para não ver um homem que se vestia de galinha e fazia protesto contra maus tratos com os bichos. Ah, mas galinhas quase não voam! – Você diria. Mas e daí? Para Abel, elas eram ainda mais repugnantes por terem asas, penas, bicos, e não voarem longas distâncias.
     Os pais do jovem nunca entenderam essa tal raiva das aves. Espíritas Kardecistas, acreditavam que podia se tratar de sequelas de outras vidas. Porém, Abel era ateu convicto, e achava tudo sobre religião uma baboseira tamanha.
     Era um rapaz recluído. Vivia preso em seu quarto assistindo a filmes no seu computador velho, pensando na vida, desenhando monstros medievais e, um pouco antes de dormir, idealizava maneiras de exterminar todos os pássaros do mundo e assim, eliminar uma de suas maiores antipatias.
     Mas a vida de Abelardo estava para mudar. Pois no momento em que ele sonhava que era empurrado do alto de um prédio, de mais de cem andares, pelo manifestante vestido de galinha branca e bico muito amarelado, um médico era atacado por uma águia americana no zoológico da cidade. Ruth, nome dado à ave, precisava de medicamentos para uma deficiência no sangue muito rara na sua espécie. O veterinário responsável e o ornitólogo presente fabricaram juntos, um coquetel de drogas que poderia ajudá-la na cura deste mal. Semanas antes eles aplicaram uma pequena dose em Ruth, e os resultados foram ótimos... Aparentemente.
     Dias depois, o comportamento da ave foi ficando agressivo. Quando solta com as demais águias da jaula, imediatamente as atacou, matando-as vorazmente. Aquilo chamou a atenção dos responsáveis, mas era tarde. Pois dentro do organismo da águia, uma forma de bactéria se originara. E transmitida pela saliva... Ao tentar conter Ruth, o veterinário foi atacado nos olhos, e por mais tranquilizantes que o ornitólogo atirasse em forma de dardos contra a águia enfurecida, mais ela tentava dar cabo de seu médico, só parando após retirar o globo ocular do homem, e jogá-lo contra o atirador de tranquilizantes.

2
     Na manhã seguinte Abel tentava entender o sonho da noite anterior. Qual seria o motivo do manifestando vestido de galinha tentar atacá-lo? Nunca havia se dirigido a ele, nunca havia dito que as aves deviam mesmo morrer e serem comidas por aqueles que assim desejassem. Mas por fim, mastigando seu misto-quente, tentou aceitar que tudo não passava de um sonho. Levantou-se da mesa na cozinha e voltou para seu quarto. Sentia uma angustia sufocante. Sempre se sentira assim. Sua mãe dizia se tratar de ansiedade. Dizia que todo aquele seu mau humor, todas aquelas coisas que ao invés de dizer, guardava para si, poderiam estragar seu coração. Mas ele não concordava.
     Passou por seu pai no corredor de casa, próximo a escada que levava para os quartos e apenas bateu em seu ombro de leve.
     -Quando começam as aulas na faculdade, Abel?-perguntou Seu Francisco, tentando algum contato com seu filho caladão, e alisando seu bigode curvado.
     -Ah pai... Semana que vem. Não estou empolgado com isso. - respondeu rapidamente sem ao menos olhar para o pai.
     -Você precisa se animar, filho. Sua vida está prestes a mudar... Você um dia, finalmente vai achar o seu valor no mundo!
     “Valor no mundo?”. Seu pai havia acabado de chama-lo de inútil ou era apenas impressão? Subiu as escadas, entrou no quarto e se jogou na cama. Ficou olhando para a janela. De fato não se sentia bem. Era como se não se encaixasse no mundo. No 2º grau, Abel fizera poucos amigos. Geralmente se aproximava dos mais esquisitos como um meio de que eles cobrissem sua própria esquisitice. Mas não dava certo. Quanto mais Abel se escondia ou tentava não chamar a atenção, mais os valentões debochavam de suas espinhas, de seus cabelos ralos e de suas pernas finas. Nem mesmo as moças o deixavam em paz. Elas eram ainda mais cruéis.
     Olhando para o céu azul através da janela, se lembrou de sua paixão por Emanuela Castro, a nerd mais bonita de todo o 2º grau. Estudara com ela da quinta à oitava série, e sempre fora louco pela menina. Seus cabelos cacheados, seus óculos grossos, mas que ressaltavam seus belos olhos azuis, e até mesmo pelo seu fungar com o nariz, devido à rinite alérgica. Achava lindo como coçava o nariz após espirrar, sem contar o espirro em si, que era todo delicado... Mas nem mesmo a linda Emanuela viu que ele a idolatrava. Na primeira, única e última tentativa de chamar a atenção da menina, cantando na festa de final de ano, Abel fora castigado pelas vaias, sacos de pipocas e latinhas de refrigerantes. Desde então, nunca mais se interessara por nenhuma garota, e nem por música. E ficou meio que com nojo de comer pipoca.
     Ao se pegar envolvido nas lembranças, voltou a si ao ouvir algo batendo contra a janela. Quem seria o engraçadinho que, após um ano, voltaria com a mania imbecil de tacar amêndoas contra sua janela? Se preparando para aumentar sua raiva diária das aves por ter de ouvi-las cantarem felizes, abriu a janela e se deparou com uma cena interessante. Desviando os olhos para o andar de baixo, viu em seu quintal diversas rolinhas caídas ensanguentadas. Por um instante pensou que havia as matado com a força da mente. Mas isso mudou ao desviar de algo que entrara em seu quarto enfurecidamente. Voando com o descontrole de um touro sem rédeas, uma maritaca batia em todos os cantos da parede, como se não tivesse controle de seus movimentos.
     Abel pegou sua raquete de matar mosquitos, daquelas que dão pequenos choques nos insetos os fazendo torrar lentamente, presente de seis anos, e ficou a postos. A maritaca posou sobre a televisão e começou a bicá-la. Num desses toques com seu bico, ligou o televisor. Um telejornal era exibido naquele instante. O âncora se aproximava da câmera e parecia nervoso. O rapaz odiava esses jornais da tarde aonde os apresentadores gritavam e queriam fazer justiça como nos tempos antigos. Mas naquele instante ele não tentaria trocar de canal. Primeiro por que a ave louca estava em cima da televisão e próxima ao controle remoto. E segundo, por que o repórter parecia estar mesmo falando sério.
     -Eu quero avisar aos telespectadores de que nunca vi algo parecido! Sei que trabalho numa emissora religiosa, porém, preciso dizer que o que vi hoje pela manhã foi obra do demônio...
     “Nem tão sério...”- pensou Abel.
     -... Milhares de pessoas estão sendo atacadas por aves que parecem estar com algum tipo de vírus. Todas essas milhares de pessoas são dadas como mortas, e minutos depois, revivem com um comportamento demoníacos. Há colegas aqui que dizem se tratar de zumbis. Não acredito nessa baboseira de Hollywood... Para mim, cheira à possessão satânica!- dizia o homem num tom de voz apocalíptico.
     Abel deu dois passos para frente o mais silencioso que pode. A ave parecia ignorá-lo. Apenas tentava catar alguns insetos presos à sua penugem.
     -Nosso cinegrafista conseguiu captar algumas imagens desses possuídos pela rua. A imagem foi feita próxima ao zoológico de São Cristóvão. E acredita-se que essas pessoas trabalhavam no próprio! São cenas assustadoras!
     Uma imagem tremida surgiu na televisão de quatorze polegadas de Abel. Ele odiava a televisão, queria uma maior e de LCD, mas seu pai vivia adiando a compra. Na imagem, diversas pessoas vestidas de branco e com corrimentos pela boca de um liquido amarelado, muito parecido com pús, caminhavam com um andar torto e deficiente. Soltavam grunhidos de dor, mas que às vezes pareciam de raiva. Abel deu os dois passos para trás nesse momento, assustado com o que via.
     -Notem bem como eles agem. A raiva! Filma a cara desses vagabundos! Filmaaaaaaaaaaaa eles! Instrumentos demoníacos! Marionetes de satã! O mundo que conhecemos pode estar chegando ao fim, meus colegas de casa! - narrava o apresentador enquanto o que se via eram pessoas e aves atacando e sendo atacadas.
     Imediatamente Abel sussurrou involuntariamente. Na verdade, antes, ele tentou entender por que o cara vivia gritando até para notícias menos, digamos, graves. Aí, depois, Abelardo sussurrou:
     -E as pombas?
     A voz saiu quase que inaudível, porém a maritaca que até então se preocupava com suas pulgas, levantou os olhos na direção do rapaz. Num salto ela voltou a voar sem controle pelo quarto derrubando quadros e pôster presos na parede. Abelardo tentava acompanhar os rasantes, pronto para acertá-la com sua raquete. Foi então que ela sumiu. O desespero tomou conta do lugar. Abel girava em torno de sim mesmo tentando achar qualquer vestígio de onde a maritaca pudesse ter se envolvido. Olhou por cima da cama... Nada. Olhou debaixo da cama... Nada. Olhou atrás da cômoda... Nada. Lembrou-se de sua mãe dizendo que toda aquela roupa acumulada atrás da porta um dia serviria de viveiro para bichos. Sem pensar, andou lentamente até a porta. Foi puxando-a pela maçaneta vagarosamente. Não queria se fazer presente. Sua mão esquerda suava na base da raquete. Estava escorregadia. Segurou-a com mais força e, num ato de coragem, abriu a porta... Nada. Pela visão panorâmica, pode sentir que algo se movia do seu lado esquerdo. Virando a cabeça lentamente notou que do teto, caíam penas verdes. E ao levar os olhos para cima, viu a ave o encarando com um olhar vermelho e bicos ensanguentados.

3
     Os dois travaram uma briga. Abel corria por todos os cantos do quarto tentando tomar distância do bicho, mas a fera alada era ainda mais rápida. Foi então que fechou a janela e ao notar que iria ser atacado, abaixou-se num ato de reflexo e esperou a fera passar por cima de sua cabeça. Quando se virou, com toda sua força, acertou-a por trás fazendo-a chocar-se contra os vidros e cair morta no chão.
     -É por isso que eu odeio aves!- disse conclusivo e esmagando a cabeça da maritaca com a sola de seus pés.
     Com a sujeira devidamente arrumada, Seu Francisco e seu filho assistiam ao noticiário da noite. Os repórteres avisavam para que todos permanecessem nas suas casas, até que a epidemia fosse controlada.
     -Pai, se essa epidemia chegar às pombas... Ferrou!- disse Abel.
     -É muito estranho isso tudo. Olhe para essas pessoas... Olha como elas andam! Parece filme! Como chegamos a esse ponto, Abel?
     -Foram essas malditas aves! Eu sempre disse que elas não prestavam! Mas nãããão, o Abel é implicante! O Abel é mau humorado... O Abel estava era certo esse tempo todo! Não tinha nada a ver com ansiedade.
     -Sua mãe que dizia isso, filho. Sempre achei que essa raiva de aves teria algum propósito. Falando nisso, sua mãe mandou dizer que está bem. Ela e seus avós estão na casa de praia em Iguaba. Estão escondidos no porão e só sairão depois que eu ligar e dizer que está tudo bem. - avisou Seu Francisco sem notar que Abel não prestava atenção em nenhuma palavra sua.
     Enquanto seu pai falava, o rapaz parecia impressionado com a movimentação dos zumbis. Caminhavam todos juntos, comiam a vítima juntos, e nunca se atacavam. Viviam em harmonia. Para um jovem que sofreu bullying durante a adolescência, aquilo não parecia ser algo ruim. Reparou em como alguns zumbis caminhavam com dificuldade, e outros vinham parta ajuda-los. Estavam formando ali uma sociedade de mortos-vivos. E aquilo estava fazendo Abelardo ter ideias loucas.
     -... Temer os humanos e as aves infectadas. - dizia seu pai, só se fazendo ouvir no final da frase.
     Abel já havia se levantado do sofá e estava prostrado atrás da janela observando o movimento na rua.
     -Pai, não há movimentação de zumbis na rua. Será que os pássaros estão dormindo normalmente. - perguntou fechando a cortina novamente.
     -Não sei. Geralmente eles se recolhem perto das cinco da tarde. Já são dez da noite... Eu vou dormir. Vai ficar por aqui?
     -Vou sim. Estou sem sono. Vou ficar vendo tevê e descobrir o que está acontecendo mesmo.
     Os dois se despediram e Francisco subiu para seu quarto com dificuldades. Deitou-se na cama e começou a rezar o terço de madeira que sua esposa havia lhe presenteado no aniversário de casamento do ano anterior. Pegou no sono enquanto fitava a foto dos dois no dia do casamento, um dos dias mais felizes de sua vida.

 
Um mês depois...

     Após duas horas na frente da televisão, Abel se levantou e foi até a cozinha. Enquanto preparava seu sanduíche de peito de carne assada, o jovem continuava com seus pensamentos na cena dos zumbis se ajudando. Era algo que nunca tinha observado nos filmes. Dava medo? Sim, dava medo. No entanto, aquilo era novo. Mesmo dominados pela irracionalidade e raiva, os mortos-vivos pareciam em perfeita sincronia. Não havia preconceitos, não havia bullying e não havia divisão de classes entre eles. Todos, mesmo que inconscientemente, se respeitavam e se aceitavam. Pensou no que haveria de ruim em ser um zumbi. Andar por aí livremente, sem saber o que estaria fazendo, apenas guiado pelo instinto. Sentou-se na cadeira e comeu seu sanduíche enquanto pensava. Mais uma vez, ideias sombrias surgiam em sua cabeça, e dessa vez, mais fortes e que pareciam dispostas a deixarem de serem apenas ideias.
    Na manhã seguinte, após uma noite de sono conturbada devido à preocupação de como estaria sua esposa, Seu Francisco se levantou e ficou sentado em sua cama por alguns instantes. Apalpou o colchão e pegou o controle remoto. Ligou o aparelho e como já imaginava, todos os canais falavam da invasão zumbi. As previsões de seu filho havia se cumprido, pois muitas pessoas estavam sendo atacadas por pombos, as pragas urbanas. Uma senhora dizia em alto e bom som que fora picada e se despedia, diante câmeras, de seus parentes. De repente caiu morta e todos se afastaram. Um grupo de policiais se aproximou rapidamente e abriram fogo contra o cadáver que  saltitava no chão como um pedaço de bacon na frigideira.
      -Agora sim ela está morta! Meus pêsames aos familiares!- disse o comandante virando a câmera para o outro lado.
Minutos depois, após procurar por toda casa, Francisco chegou à conclusão de que seu filho não se encontrava ali. Desesperado, tentou contatá-lo pelo celular, mas o telefone começou a tocar ao seu lado. Abel não havia o levado consigo.
     Foi até o quarto do rapaz e encontrou tudo revirado, porém, roupas, livros, bonés, tudo ainda estava no local. A única coisa que não estava ali, como pode notar era a raquete de tênis e a pistola de espoleta que sua falecida mãe havia dado ao menino quando fizera seis anos. Próximo à televisão, ele viu algo balançar com o vento. Aproximou-se e certificou-se de que era uma carta de Abelardo. Aproximou-se da cama e sentou-se. Começou a ler aquilo que parecia ser uma despedida.

 
     
4
     “As abelhas nasceram para fazer o mel e espalhar o pólen por aí, assim fazendo crescer novas árvores e flores. Os legumes nasceram para alimentar não só os animais como a gente também. Dentre todas as coisas do mundo, incluindo o guarda-chuva, que mesmo sendo uma hipocrisia, já que não protege nada contra a chuva, eu achei uma utilidade. Achei utilidade para as doenças; Achei utilidade para os insetos; Para as fezes; Para as câimbras; Achei utilidade para as dores e para um zilhão de coisas que pareciam desnecessárias no mundo. Mas, ao final desse balanço, não achei minha utilidade. Pai,é com dor, mas é preciso que eu diga, que eu sou um completo inútil nesse mundo. Enquanto pessoas são destinadas ao sucesso desde seu nascimento, há outras que nasceram apenas para admirar e invejar essas. Eu nem preciso dizer em que grupo eu me encaixo, né?
Sempre sonhei ser famoso. Sempre sonhei me apaixonar, criar coisas que fossem inesquecíveis, mas a vida sempre me puxou para trás.     Sempre fui frustrado pelos caminhos e pelas pessoas que me cruzaram a frente. Hoje eu sei, que meu lugar não é entre os vivos. Acho que posso fazer muito mais por você e pela mamãe sem estar por perto. Sem deixá-los preocupados com meu comportamento estranho. De deixá-los desconfiados de que uso drogas ou tenho pensamentos suicidas...
     Não. Eu não quero que sofram pelas minhas neuras. Não quero que fiquem loucos por meus problemas internos. O fato é que eu nunca me aceitei. De que eu nunca achei meu lugar entre todos. No fundo eu acho que descobri o motivo pelo qual eu sempre odiei os pássaros. Não por nojo, não por seus cantos me irritarem. Acho que sempre os odiei pela liberdade. Eles voam, eles cantam. Eles parecem felizes sempre. Sempre os invejei e acho que no fundo, no fundo, sempre quis ser livre das dúvidas e das preocupações que me atormentam há anos.
     Hoje tomei uma decisão importante. Vou me transformar em zumbi. Vou me entregar aos mortos-vivos para que me infectem e eu possa viver entre eles. Aceito por todos. Com respeito da massa e o medo dos vivos. No fundo, mesmo parecendo não ligar para os outros, acho que sempre quis ser aceito. Mas nunca consegui!
     Não precisa vir atrás de mim, pai. Com certeza eu estarei melhor do que vocês! Desculpe por não ser um filho que gostava de futebol. Um filho que passeava com você e falava das garotas. Vocês foram ótimos pais. Eu que não soube ser um bom filho. Espero que, assim como vocês acreditam, a gente se encontre em outra vida. E assim, eu tenha minha segunda chance de ser um bom filho, e de me sentir útil.
     Eu te amo
     Abelardo.”
 
     Francisco abraçou a carta contra seu corpo. Esfregava-a contra o peito como se quisesse que com isso ela entrasse nele. Chorou o tempo todo e deitou-se novamente. Não podia ir lá fora, se não seria atacado. Não queria que sua amada esposa perdesse o filho e marido no mesmo dia. Começou a rezar e pedir proteção para Abelardo.

5
     A alguns metros dali, Abel caminhava apenas portando a raquete de mata-mosquito. Seus pensamentos eram mil. Pensou em tudo que havia escrito e se havia esquecido algo. Sua respiração estava ofegante. Apenas carregava consigo duas garrafinhas de água dentro de cada bolso de sua bermuda jeans, que durariam até ele realmente morrer. Queria encontrar logo algum zumbi, mas a rua estava deserta. Nem aves, nem mortos-vivos.
     Sentou-se no meio fio. Estava feliz com sua decisão. Tentava imaginar o que se passava na cabeça de um zumbi. Será que eles se lembravam de suas vidas? Será que guardavam alguma memória? Pensamentos? Dúvidas? Saudades? Suas perguntas pararam por alguns instantes quando sentiu uma coceira próxima a base de suas costas. Levou a mão direita após passar a raquete para a mão esquerda, ao local da coceira. Ao voltar para conferir no que havia tocado, pode ver um leve filete de sangue. Levantou-se imediatamente e se aproximou de um fusca que estava estacionado próximo. Pelo retrovisor do veículo pode ver que havia uma ferida ali.  Provavelmente feita pelo bico da maritaca infectada. Provavelmente, faltavam poucos minutos para se tornar um deles.
     De repente, Abel viu uma sombra se formar à sua frente. Ao se virar, teve a maior surpresa, pois, o encarando enfurecido estava, ninguém a menos que o manifestante vestido de galinha. E claramente, ele estava infectado.
Afastou-se do zumbi o mais rápido que pode. Pensava se deixava ser mordido só para garantir, ou lutava contra ele. Não queria que seu “rival” fosse seu passaporte para o mundo dos mortos-vivos.
     Resolveu correr.
     Enquanto corria, Abelardo observou que os zumbis começavam a aparecer na rua. Seguiam o frango-humano como súditos. Pareciam feras mortas de fome. Todas tortas e correndo da maneira que conseguiam, com seus pés tortos e corpos curvados. Abel entrou em um beco e subiu pelas escadas abandonadas de um prédio comercial. Já havia adentrado ali com sua mãe anos antes, para fazer exame de sangue. Lembrava-se de ser um lugar chique e muito moderno, e não aquele salão abandonado com vidros quebrados e corpos pelo chão.
Parado sem saber para onde ir, só voltou a correr depois que viu mais zumbis surgirem pela porta da frente, incluindo o Homem-Galinha. Correu na direção dos elevadores, mas lembrando-se de que estariam desligados, desviou no meio do caminho e foi para as escadas de emergência. Seriam dezesseis andares.
     Enquanto subia, tentava entender para onde estava indo. Subir não seria a solução. Subir o deixaria encurralado. Ao mesmo tempo, pensava em como seria melhor, já que queria se tornar um zumbi. Queria e não queria ao mesmo tempo.   Sentia-se como uma criança no trampolim de uma piscina prestes a pular. Por um lado quer pular para gozar da nova aceitação dos amigos e ser considerado corajoso, mas por outro, o medo o segurava. A incerteza do que encontraria lá embaixo. E se algo desse errado? E se a piscina fosse rasa demais? E se ser um zumbi fosse algo baseado em fome insaciável e sofrimento?
     Continuou subindo até que chegou ao terraço. Andava de um lado para o outro e viu que não havia portas para isolá-lo ali. Corria de um ponto a outro e tentava pensar em algo. Aproximou-se da beira e viu que era alto. Se pulasse poderia morrer... Poderia não, certamente morreria. Mas se morresse, seria em vão. Aí sim, se arrependeria da vida que levara até então, e de todas as vezes que voltou atrás nas decisões. Resolveu então se ajoelhar e esperar pelos zumbis.
     Enquanto esperava, lembrou-se de Emanuela. Talvez se tivesse acreditado, se tivesse insistido, poderia estar casado com ela. Morreria aos dezoito anos sem nunca ter se apaixonado novamente. Sem nunca ter tido um momento feliz, além daquele que se tornaria um trauma adolescente.
     Na porta do terraço, surgiu o homem-galinha. Enquanto caminhava na direção de Abelardo, o rapaz apenas lembrava-se de tudo que vivera. Perguntava-se Deus existia e de porque o fez para se sentir um nada. Seria Deus um cara cruel? Seria Deus realmente um garotinho com uma lupa, apenas guiando dor para aqueles que julgasse merecer? Lembrou-se de seus pais e da frase que seu pai vivia repetindo:
     -Abel, tenha calma. Um dia você finalmente vai achar o seu valor no mundo...
     Mas quando? Estava prestes a morrer e até então esse valor não estava evidente. O zumbi finalmente aproximou-se e estendeu as mãos em sua direção. Pegou Abel com as duas mãos e o ergueu com uma facilidade invejável. Parecia que ia jogá-lo lá de cima. O rapaz fechou os olhos com toda força. Podia sentir o hálito podre da galinha-humana que sempre odiou. Rapidamente lembrou-se que odiava o KFC.
     Quando sentiu que ia ser jogado... Ouviu um estalo.

     Após o estalo, Abelardo sentiu que havia caído dos braços do morto. Zonzo após bater a cabeça no chão, pode apenas ver que o zumbi estava de pé, bambo, e com um furo parecido com o de um tiro no meio da máscara de galinha. Ele então caiu de joelhos e parecia morto de vez.
     Abelardo então, desmaiou.
    
6
     Aplausos, muitos aplausos foi o que fizeram Aberlado acordar após mais de doze horas dormindo. Ao abrir os olhos, se viu dentro de um quarto de hospital um tanto diferente. Cheio de telas em LCD, e alguns painéis, ele se sentia num quarto futurístico. Mexia os olhos tentando encontrar alguém que o pudesse explicar o que fazia ali. Lembrava-se apenas de mais uma vez sonhar que era atacado pelo homem-galinha que vivia manifestando na frente da loja KFC, em cima de um prédio muito alto.
     Ouviu a maçaneta da porta ser girada.
     -Como está o nosso herói?- perguntou o doutor se aproximando. - Vamos dar uma olhada nesse curativo.
     O médico mexeu exatamente aonde Abel havia sentido uma coceira e que parecia ter sangue.
     -Foi uma picada de leve... Mas e você? Como se sente Abelardo?
     -Eu... Eu virei zumbi?
     O doutor riu.
     -Você? Nem de longe! Abel, você é o herói brasileiro, e porque não, mundial! Você nos salvou!
     Abel começava a ficar confuso, e sua cabeça doía.
     -Como assim herói?
     -Meu jovem, graças à você. - graças ao seu sangue - Encontraram a cura!
     -Não é algo com o que se brincar, doutor!
     -Não estou brincando, querido! Você foi mordido e não se contaminou. Parece que foi atacado por uma maritaca, segundo seu pai. Seu corpo não sofreu alteração! Você é imune!
     Abel tentou se sentar.
     -Eu não viro... Eu não posso virar zumbi?
     -Não! E você é a possível cura para a epidemia! Lá fora todos querem lhe agradecer! Todos querem conhecer o herói! Você virou lenda nas ruas! Você nos salvou! Com seu sangue, vamos descobrir como evitar a proliferação da bactéria e criar um antibiótico superpoderoso que vai curar até mesmo os já infectados há bastante tempo. Parabéns!
     Nesse momento, Seu Francisco e Dona Antônia, pais de Abel entraram no quarto acompanhados por uma enfermeira que parecia tentar evita-los.
     -Deixe-os entrar, Fátima. Deixem-nos abraçarem o herói deles!
     Os pais se debruçaram sobre o filho. Choravam juntos de alegria.
     -Pensei que tivesse te perdido, Abel! Eu estava desesperado!- dizia Seu Francisco enquanto alisava o rosto do filho.
     -E que história é essa de sem valor,Abel? Você sempre nos deu muito orgulho justamente por ser assim, diferente dos demais jovens! Dou aula para pessoas da sua idade que se comportam como retardados. Você, não por ser meu filho, faz a diferença!- comentou Dona Antônia se afastando do filho e se aproximando do médico.
     -Fiquem tranquilos que amanhã, após os últimos exames, ele vai ter alta. Depois só precisará ir ao laboratório doar amostras desse sangue valioso! Vocês vão ficar ricos!
     Abel sorriu. Parecia que finalmente sua vida fazia sentido. Sua raiva do mundo, sua insegurança, seus sonhos, seus medos e raivas, tudo se encaixava.
     -Você tem seu lugar no mundo, filho. Só precisava esperar. Com paciência nós descobrimos muita coisa. Tudo tem seu tempo.
     Abel sabia que seu pai estava certo. Talvez tudo o que passara no passado o fizera no futuro, se convencer a se entregar à morte. Se não tivesse passado por tudo aquilo, talvez nunca tivesse coragem de se entregar aos zumbis e assim, descobrir que seu sangue poderia salvar o mundo.
     Seu Francisco se aproximou um pouco mais do filho. E sussurrou ao seu ouvido.
     -Abel, sua vó cantava uma música para você quando bebê, chamada A natureza das coisas. Nessa música, tinha uma parte que dizia: “Toda caminhada começa com o primeiro passo. A natureza não tem pressa, segue seu compasso. Inexorávelmente chega lá!” -Talvez ela quisesse dizer algo com isso, né?
     Os dois sorriram.
     Lá fora, em diversas partes do Brasil, milhares de pessoas eram capturadas e utilizadas em testes com a medicação feita com o sangue de Abel. Aves eram abatidas com tranquilizantes, para que fossem feitos testes mais eficazes usando as substâncias do sangue do rapaz. Um jovem que nunca achou seu lugar no mundo, quando na verdade, era o mundo que precisava achá-lo. Um rapaz que salvou a todos e enfim se convenceu de que tudo tem o seu valor. Até mesmo os pássaros.
 
 
                             FIM
 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 07/11/2011
Reeditado em 07/11/2011
Código do texto: T3323124
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.